Porta ou espelho?

A leitura pode colocar em perspectiva o que a gente sente e acha que sabe sobre o mundo e também sobre nós mesmos
Ilustração: Thiago Lucas
01/03/2021

No último episódio da minissérie Faz de conta que NY é uma cidade (Netflix), dirigida por Martin Scorsese, a escritora Fran Lebowitz fala dos livros e de seu amor pela leitura, algo que já havia aparecido, aqui e ali, nos episódios anteriores. Embora ela não publique nada inédito há mais de duas décadas, continua sendo uma leitora entusiasmada, que acredita que os livros são quase como pessoas e tem dificuldade de compreender por que buscamos, no encontro literário, algo que também vemos acontecer nos demais campos da vida: uma busca autocentrada, que valoriza no outro apenas aquilo que já temos em nós mesmos. Quanto a isso, Lebowitz diz: um livro deveria ser uma porta, não um espelho.

A frase me fez pensar em outra de que gosto muito, porque talvez a complemente, talvez funcionem bem em conjunto. Franz Kafka disse, uma vez, que um livro deveria ser como um machado capaz de quebrar os mares gelados da nossa alma. Para dentro (Kafka) ou para fora (Lebowitz), as duas frases apelam para a possibilidade de expansão da literatura, e não de mera confirmação ensimesmada. Falam de sondagem, de curiosidade, de descoberta de novos mundos, qualidades extraordinárias, e por vezes esquecidas, que a leitura pode nos oferecer.

Na vida, como na literatura, muitas vezes nos identificamos apenas com aquilo que é familiar — e, nesse sentido, também narcísico. Preferimos conviver com pessoas que pensam parecido com a gente, com quem compartilhamos uma visão de mundo, um conjunto de valores. É mais confortável e menos solitário assim, ou ao menos nos dá impressão de que seja. Daí veio a expressão que temos ouvido ou lido de forma recorrente: a tal da “nossa bolha”.

Sair da nossa bolha nos expõe à pluralidade incontestável do mundo e nem sempre temos condição de suportar todo barulho que vem com esse movimento. Mas, no território seguro da literatura, quando continuamos em nossas poltronas ou em nossos lugares de estimação, quando permanecemos em nossos corpos, talvez possamos experimentar um pouco mais, ir um pouco além. Essa pode ser uma boa estratégia para começar a praticar o reconhecimento da legitimidade das diferenças.

Quer seja na leitura de ficção ou de não-ficção, os livros podem nos oferecer portas para conhecer ou apenas espiar outras realidades, outras formas de vida, de pensamento, de interpretação. E, ao conhecê-las, ainda que discordemos delas, temos a chance de nos enriquecer, de repensar nossas ideias ou, até mesmo, de seguir discordando, mais e melhor.

Claro, existe aí um dilema importante: se nosso tempo é finito, as possibilidades de leitura, felizmente, são ou parecem ser infinitas. Então quando escolhemos ler a biografia de alguém como Hitler, estamos deixando de ler a biografia de alguém como Gandhi. Se é possível ler ambas, não é possível ler exatamente ao mesmo tempo. Então é natural que a maior parte de nossas leituras acabe sendo orientada por afinidades — não apenas por quem somos hoje, mas por quem queremos vir a ser um dia, e que as obras que a gente lê podem muito bem ajudar a construir. Ainda assim, talvez tenhamos espaço para acomodar um pouco do que nos soa estrangeiro, esquisisto ou apenas diferente, pois não podemos saber de antemão quais leituras são mesmo transformadoras e, muitas vezes, um livro que não esperávamos nos pega de surpresa.

A leitura pode colocar em perspectiva o que a gente sente e acha que sabe sobre o mundo e também sobre nós mesmos. Quantas vezes comecei uma leitura com resistência, mesmo com preconceito e má vontade, e, no meio do caminho, acabei tendo que dar o braço a torcer: não é que aquele livro não apenas valia o meu tempo, como estava me abrindo outras portas que jamais imaginei que encontraria ali? Muitas vezes isso acontece sem que a gente tenha que concordar com as ideias da pessoa que escreveu ou que está narrando a obra. A gente pode se manter alinhado aos nossos princípios, e até mesmo ter mais convicção deles, depois de conhecer melhor outras sensibilidades e realidades. Não precisamos ter medo de nos perder no caminho.

Um dia, quando eu ainda estava na faculdade, passei por uma pequena livraria e encontrei o livro Bom dia, angústia, do filósofo contemporâneo André Comte-Sponville, que até então eu não conhecia. Estando eu mesma angustiada na ocasião e buscando formas de enxotar essa angústia, foi com surpresa que vi o cumprimento de boas vindas a esse sentimento que o mundo parece querer recalcar e, também por isso, acaba gerando mais e mais.

O livro era uma antologia de ensaios com abordagens nada óbvias para alguém que, como eu, estava chegando então à vida adulta, fazendo ainda a travessia. Para Comte-Sponville, em alguma proporção, a angústia é algo inevitável — diante da condição humana, seríamos angustiados por muito menos —, como também saudável: sem ela, talvez não teríamos saído da caverna. Hoje essa visão me acompanha, e aquelas linhas, lidas e relidas algumas vezes, fazem parte de mim de tal forma que, se eu abrir o livro, encontrarei um espelho. Mas, na época da minha primeira leitura, não foi assim. Na época, encontrei uma porta.

Mais tarde, conheci outro título provocativo do mesmo autor: Felicidade, desesperadamente. Um livrinho inspirado numa palestra proferida por ele que já perdi a conta de quantas vezes retomei, de quantas vezes indiquei e dei de presente para pessoas queridas. A princípio, fiquei muito interessada porque a felicidade me parecia cada vez mais um imperativo e uma meta social, ao mesmo tempo que, em sua perfeição, é algo inalcançável. Pois é justamente a palavra desespero, tanto quanto a palavra felicidade, que Comte-Sponville examina nessas páginas, e ao juntá-las assim, consegue propor uma forma de pensar que retoma ideias da Antiguidade Clássica e costura à filosofia oriental para chegar a questões próprias do nosso tempo.

Quando Felicidade, desesperadamente foi publicado, a internet e as redes sociais ainda não existiam da forma que as conhecemos hoje, mas isso não faz com que a obra se torne datada ou incompleta. Ao contrário. Impressiona que, ao relê-la hoje, no século 21, em 2021, muitos dos processos descritos e analisados continuem não apenas válidos, como ainda mais intensos, ainda mais velozes, ainda mais relevantes. Eu não sabia de nada disso antes de abrir as páginas do livro, mas encontrei ali ideias que passariam a me habitar e a me constituir por todos os anos que se seguiram.

Um livro que é uma porta nem sempre se torna um espelho. Pode ser que se torne o oposto disso, um território ainda mais estrangeiro, que a gente queira manter cada vez mais distante, e a leitura pode nos ajudar a construir essa distância de forma mais sólida, mais consistente. Mas, às vezes, acontece de um livro começar como uma porta e acabar se tornando um espelho de quem ainda viremos a ser, quando aquelas palavras passarem a fazer parte de nós de tal modo que já não possamos mais viver sem elas, que já não possamos distinguir. A questão é: se a gente não abre a porta, jamais poderemos descobrir. É preciso arriscar.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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