Um grande exorcismo

Resenha do livro "A boca da verdade", de Mario Sabino
Mario Sabino, autor de “O vício do amor”
01/07/2010

No começo do mês, foi publicado no blog de José Saramago o seguinte texto:

Há momentos assim na vida: descobre-se inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem na nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens e outras gentes.

Quando se lê o livro A boca da verdade, de Mario Sabino, a impressão é de que a perfeição realmente é essa esfera fugidia, capaz das maiores revelações em um momento e de abandonar o escritor à própria sorte e em sua mais simples banalidade no momento seguinte. Não existe uma constância nos contos de Mario Sabino. Existem grandes momentos, realmente incríveis, com imagens maravilhosas e a palavra certa no lugar certo, e outros simplesmente banais e dispensáveis, em que as idéias e imagens são boas, mas a necessidade de se usarem palavras para criar, no texto, um efeito plástico ou mesmo matemático tira a graça da coisa.

A irregularidade também se estende ao tamanho dos contos, que varia de uma página e meia a dezenas de laudas, e no número de personagens, que pode se resumir a uma pessoa em um diálogo interior, como no caso de Das profundezas, ou envolver outras personagens, que passam boa parte da história sem se comunicar e, quando o fazem, é por meio de diálogos cortados por muitas reticências, marcando os silêncios constrangedores.

Os temas dos contos são muito bons. Originais e interessantes. Em alguns, Sabino parece não ser adepto das grandes reviravoltas, sua questão é mais a da constatação de uma verdade a partir de uma frase do que a de gerar um clímax, o grande acontecimento. Em outros, a surpresa vem com força e tira o fôlego do leitor, que fica ali, embasbacado. O suspense é incrível.

De todo jeito, tanto no título quando nos intertítulos que dividem o livro, o escritor foi sincero na sua intenção. Realmente é um livro sobre a verdade que negamos, que incomoda. Como Sabino diz no posfácio, sobre como “na literatura podemos descobrir que por trás da máscara não há nada — e isso não nos faz piores do que já somos”. Para ele, a boa literatura vem da infelicidade. Da hipocrisia, do sujo e feio. Escrever é colocar o dedo na ferida das relações entre pai e filho, tão complexas, tão sutis. Também na relação entre um homem e uma mulher, trazendo uma perspectiva muito interessante e pouco abordada do ponto de vista masculino, mas também em relacionamentos muito mais exóticos do que esse, como, por exemplo, o de um homem com sua própria consciência enquanto aguarda para subir a um palco, cercado por lembranças estranhas, uma ereção inexplicável e uma súbita vontade de defecar.

A grandeza dos contos mais interessantes vale e sobra pelos momentos medianos ou extremamente abstratos. É o caso do conto A visita que Edward Hopper recebeu dois anos antes de morrer, que começa com uma grande divagação sobre a validade da abstração na pintura, mas, depois de passado esse trecho mais denso e hermético, segue com uma relação muito interessante entre um pintor que se assume medíocre e o homem que ele acredita ser o diabo e que o inspira a realizar a obra-prima de sua carreira. Afinal de contas, por que a arte é coisa dos deuses e não do diabo?

Outro assunto que Sabino aborda de maneira original e muito coerente aparece no conto O grande impostor, sobre o bispo ateu a quem queriam fazer papa. A linha de raciocínio que Sabino estabelece para justificar que, de fato, um papa ateu é o melhor que poderia acontecer à Igreja é incrível. Vale a comparação com o Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago.

Sabino descreve a leitura do Paraíso, da Divina Comédia de Dante como um exorcismo intelectual. O mesmo parece ser o caso dele com A boca da verdade. Um grande exorcismo e um grande treino, para algo muito maior que talvez esteja por vir, inspirado pelo diabo e cheio de pecados ateus.

A boca da verdade
Mario Sabino
Record
143 págs
Roberta Ávila

É jornalista. Escreve no blog http://ficcoesdaminhavida.blogspot.com.

Rascunho