Czeslaw Milosz. Muitos leitores provavelmente não inscrevem esse autor no panteão dos defensores dos ideais humanistas e libertários. Isso porque, ao contrário de George Orwell e Arthur Koestler — dois gigantes da crítica ao totalitarismo — Milosz se notabilizou por sua obra poética. O resto é história: o discurso do senso comum é poderoso o suficiente para contaminar os corações e mentes ao sugerir que, grosso modo, os poetas e os artistas são alienados políticos. Ou, ainda, de serem teóricos em demasia ao tratar de questões objetivas como a opressão e a tortura. Ledo engano. No caso de Milosz em particular, o trabalho do poeta se destaca pelo misto de contundência e sobriedade com que ele defende as premissas da liberdade de expressão e de pensamento. Em Mente cativa, isso ocorre não em forma de verso, mas na prosa ensaística que, para além do conteúdo político, demonstra capacidade de imaginação, criatividade e estilo ao elaborar uma análise que, embora tenha sido composta no século 20, ainda merece ser lida hoje em dia.
Ao todo, são nove textos que não apenas elegem o debate político como tema central, mas, também, demarcam o território da força das idéias e a sua influência junto aos chamados formadores de opinião. Em outras palavras, o alvo de Milosz não é o regime arbitrário em si, mas a capitulação de mentes privilegiadas ante as grandes teses desses regimes totalitários. Em linguagem menos agressiva, poder-se-ia dizer que o autor ataca a racionalização dos discursos totalitários. Isto é, o fato de alguns artistas, por exemplo, defenderem regimes de exceção em nome do povo, ou, ainda, de escritores se recusarem a criticar ditaduras porque estas lutavam contra a opressão do imperialismo, entre outras distorções interpretativas. É comum, aliás, ouvir que os intelectuais são aqueles que pensam a sociedade de maneira mais sofisticada. Em Mente cativa, esses pensadores são observados essencialmente por serem dotados dessa capacidade, digamos, superior de leitura crítica — mas que, em muitos casos, acaba por se tornar inócua.
Assim, em A pílula de Murti-Bing, primeiro texto do livro, Milosz utiliza o argumento central de um romance de Stanislaw Ignacy Witkiewicz (Insaciabilidade, aparentemente sem tradução para o português) para apontar as conseqüências da ideologia política para o pensamento crítico. Desse modo, o autor escreve:
Sob a atividade e inquietação do cotidiano, encontra-se a constante coincidência de uma escolha irrevogável a ser feita. Deve-se ou morrer (física ou espiritualmente), ou renascer de acordo com um método prescrito, em outras palavras, a ingestão das pílulas Murti-Bing.
As pílulas, nesse sentido, representam, tal como uma das cápsulas do filme Matrix ou a ‘’Soma’’ de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, a chave para a aceitação da brutalidade, do comportamento mais bestial, a fim de tornar os humanos mais estúpidos. Aqui, embora no campo da metáfora, Milosz escreve que as premissas totalitárias podem se tornar sedutoras desde que sejam envolvidas por uma espécie de esperança na felicidade — um desses resquícios da Revolução Francesa, que ainda permeia o imaginário de alguns pensadores mundo afora.
Leste e oeste
Adiante, em Fitando o Oeste, o autor questiona a visão parcial que alguns europeus do leste possuíam acerca dos ocidentais. Hoje em dia, diante do triunfo ideológico da globalização, soa risível essa divisão entre Leste e Oeste. No auge da Guerra Fria, no entanto, essa divisão era real tanto na esfera da política quanto na esfera da cultura. Milosz apresenta isso de forma provocativa, indicando, a princípio, os motivos que sustentavam essa avaliação: “O homem do Leste não consegue levar os americanos a sério porque eles passaram por experiências que ensinam os homens o quão relativos seus julgamentos e pensamentos são”. E a seguir, o escritor provoca: “Sua resultante falta de imaginação é impressionante”. Curiosamente, os jovens do Maio de 68 francês clamavam por isso: imaginação no poder. Evidentemente, não havia qualquer relação direta entre a alusão dos jovens das barricadas e o texto do poeta polonês. Ainda assim, cabe a reflexão sobre o significado desse conceito de imaginação.
Sem especular muito, pode-se afirmar que a imaginação mencionada por Milosz é exatamente a capacidade de escapar das amarras ideológicas. Dito de outra forma, a possibilidade de pensar o mundo não somente de acordo com a vulgata esquerdopata — e isso é impossível para certa camada da intelligentsia, que aprendeu a conceber o mundo apenas dessa forma, sem abstrair do esquema. Milosz, por seu turno, avança e, nos textos subseqüentes, perfila o pensamento de referências intelectuais de seu tempo, sem citá-los nominalmente. Assim, em uma espécie de sátira, o autor descreve a atitude servil de personagens à luz do regime de ocasião. É nesse tom que o autor escreve acerca de Delta, o trovador: “Ninguém sabe a sua origem. Ele modificava sua biografia adequando-a às necessidades do momento. (…) O limite entre fantasia e realidade não existia para Delta”. De forma cifrada, mas não menos assertiva, Milosz acusava a fraqueza moral de personalidades de peso no pensamento dominante. Daí um motivo para o livro ter sido banido na Polônia, embora tivesse encontrado um mercado promissor entre as obras consideradas subversivas à época.
Mente cativa, mesmo não sendo uma obra de ficção, está inscrito como peça literária genuína, especialmente por apresentar um olhar criativo para o curso determinista do trabalho intelectual. Por extensão, seu autor também é daqueles que pertencem ao seleto grupo de escritores cuja pena se dedica não apenas ao estilo, posto que defende também um ethos do artista, tal como um comprometimento com a cultura e os valores mais elementares da humanidade. Em uma época que os autores são incensados tanto pela sua cegueira quanto por seu silêncio, chama a atenção um livro que assume posição não somente contra o consenso, mas, sobremaneira, em favor do dissenso.