— Você já leu esse livro?
— Qual?
— O que está no seu colo?
— Já, já li, sim.
— Gostou?
— Por quê?
— É que eu gostei demais.
— Mesmo?
Quem me interroga é uma mulher que, saberei quilômetros ou horas depois, se chama Consuelo.
— Eu conheço o Schroeder.
— Mesmo?
— Na verdade, não o conheço pessoalmente, mas leio o que ele escreve. Então, naturalmente, conheço o autor. Por que o autor é o que ele escreve, não concorda?
— Pode ser…
— Esse escritor só fala de desajustados…
— Desajustados?
Consuelo sentou na poltrona da janela, ao meu lado, durante uma viagem de ônibus de Curitiba até Florianópolis, no sábado 26 de junho de 2010. Anteriormente, eu sequer sabia que uma mulher como ela poderia existir.
— É, o Schroeder fala de desajustados, logo, acho que ele é meio tantã…
— Tantã?
— Sim.
— Eu li apenas duas vezes o livro e ainda não tenho opinião a respeito dos personagens que ele inventou, nem mesmo a respeito dele…
— Basta ler uma vez pra sacar tudo…
— Sacar tudo?
— Sim. Qual o seu nome?
— Marcio.
— Sabe, Marcio, talvez você tenha de pensar mais no que leu. Não precisa ler duas vezes. Eu leio uma vez só…
— É que eu…
— Os personagens dele são todos uns ferrados…
— Ferrados?
Consuelo pergunta por perguntar, mas, tenho a impressão, na realidade ela quer só falar; pergunta e responde e começo a ficar tonto — estamos próximos do final do ônibus, e o aroma que sai do banheiro toda vez que alguém abre a porta está me deixando enjoado.
— Marcio, o que você acha dos personagens do Schroeder?
— Acho que ele criou personagens complexos, muito diferentes uns dos outros.
— Por exemplo?
— Ele fala de amor, morte, traição, desejo e, para tornar isso compreensível, criou personagens que enfrentam ou sofrem situações específicas…
— Ei, Marcio, você está teorizando. Não entendi lhufas do que você falou…
— Lhufas?
— Sim, sabe Marcio, ao comentar literatura, sempre, mas sempre, tem dois problemas…
— Dois?
— Pelo menos dois. Se o comentarista literário for muito simplório, todos os interlocutores vão ter a impressão de que ele, o que fala, é um Conselheiro Acácio, que só diz obviedades. E, quando o entendido quer se fazer passar por sabichão, daí, é melhor sair correndo… Geralmente só rola blablablá, embuste, saca?
— Mais ou menos…
— Mas, de qualquer forma, Marcio, tente falar algo, tente…
— No conto Indie, há uma personagem que é fã do Leminski e ela gosta de tudo que parece ser da moda, da maneira aparentemente correta de quem se acha, de quem se acha diferente, mas é apenas juvenil, e pensa que reinventou a roda…
— Boa, Marcio, assim você começa a falar pra eu entender, apesar de eu discordar do que você fala…
Consuelo abre a mochila, tira uma garrafa de Jack Daniels, bebe um, dois, três goles no gargalo e me oferece um trago, recuso, estou enjoado, agradeço, ela me olha e diz que careta, hein?
— Marcio, vamo lá, quero sacar…
— O quê?
— Como você sacou o texto do Schroeder?
— O quê, em especial?
— Qual é, pra você, a do texto dele?
— O Schroeder é um escritor em busca, em constante busca.
— Busca? Até parece acadêmico enrolando…
— Digo em busca porque ele desenvolve textos com possibilidades diferentes, e parece ser um leitor…
— Claro, Marcio, é lógico que ele é leitor, se não, não escreveria…
— De maneira geral, neste As certezas e as palavras, ele cita autores e fez contos conversando com obras literárias.
— Conversando?
— O conto Adorável apresenta uma metáfora bem sacada. O narrador cita Manhattan, filme de Woody Allen, em que uma ponte, que liga duas cidades, simboliza o acesso entre um homem e uma mulher.
— Acabamos de passar por uma ponte, Marcio. Será que é coincidência o que você fala ou você está me cantando?
— Não estou te cantando.
— Não?
— Falava de um narrador do Schroeder, e tem outros, alguns deles citam autores, como Ricardo Piglia, Borges, e o resultado é bacana.
— Bacana?
— Sim.
Consuelo fica em silêncio. Não sei por quanto tempo por que não uso relógio. Ela segue a beber, no bico, doses de Jack Daniels, diretamente da garrafa. Olha pela janela. Eu, mesmo sentado no banco do corredor, leio em uma placa, na rodovia, que nos aproximamos de Camboriú.
— Sabe, tem um conto do livro, ambientado nesse trecho da rodovia, entre Curitiba e Camboriú…
— Claro que sei, Marcio, é o segundo conto…
— Que também está no livro Como se não houvesse amanhã, organizado por Henrique Rodrigues.
— Sei, sim, Marcio. É um conto que, para usar uma palavra que você usou, “conversa” com a canção “Há tempos”, da Legião Urbana.
— É um conto lindo.
— Belíssimo mesmo, Marcio. Fala de perda, de amor, de sentimento de irmandade, da perplexidade diante do mundo, da falta de sentido de tudo…
— É uma grande e interessante conversa do Schroeder com o texto do Renato Russo.
— Ô, Marcio, agora fiquei de cara…
— Só agora?
— Interessante? Você falou interessante. Interessante não quer dizer nada, sabia?
— Não sabia…
— Interessante, contemporâneo, curioso, bacana e outras palavras desse tipo não dizem nada, e são usadas por resenhistas para falar de obras recentes, que os resenhistas não conseguem sacar…
— Você lê resenhas?
— Passo os olhos, e acho tudo muito ruim, Marcio.
— As resenhas?
— Sim, prefiro ler os livros. Resenhistas me enchem o saco.
Consuelo bebe mais um gole e acaba com o Jack Daniels que havia dentro da garrafa.
— Eu ainda não sei o seu nome…
— Pensei que não iria perguntar…
— Desculpe, como você se chama?
— Consuelo.
— Bonito nome.
— Obrigado.
— Mas, Consuelo, gostaria de completar um raciocínio…
— Por favor…
— Quando eu falei que o Schroeder é um escritor em busca, é porque ele ousa, ele procura desenvolver uma linguagem própria, nada do que ele escreve lembra, necessariamente, outras vozes…
— Vozes, vozes, vozes. Tudo são vozes, Marcio…
— Vou abrir aqui ó, na página 49…
— O que tem na página 49?
— Uma bela frase. “Como se a vida fosse isso, uma passagem de ônibus sem volta.”
— O que você está querendo insinuar com isso, Marcio?
— Estou apenas lendo a frase de abertura do conto Sem rodapés. Não quero dizer nada. Só que é uma frase linda.
— Só isso?
— Tem ainda a última frase do conto: “Um rodapé é um buraco na memória, o gozo antecipado. Um blefe de truco. Não importa, é um rodapé.”]
— Gostei disso, cara, gostei.
— É lindo.
Consuelo boceja e fecha os olhos. Cochila durante um trecho da viagem. Uma placa avisa que a menos de dez quilômetros está o destino final da viagem, a cidade de Florianópolis. Então, ela se acorda.
— Dormi muito, Marcio?
— Pouco.
— Pouco quanto?
— Não sei, não uso relógio.
— Eu também não.
— Consuelo, o livro do Schroeder inclui temas contemporâneos, o Festival de Curitiba, bandas pop, uma obra do Paul Auster, brigas entre amigos, tem muito a ver com, sei que você não gosta, mas com a contemporaneidade…
— Marcio, se você usar mais uma vez essa palavra, acho que eu poderei vomitar…
— Então pouparei você desse ato…
— Estou falando sério, não dá…
— Te irrita? Falar contemporâneo te irrita?
— Só não irrita mais do que problematização…
— Não gosta de problematização, Consuelo?
— Pô, nada a ver. Pra que pensar em problemática? O negócio é a solucionática… É uma frase do…
— Do Dario, um sujeito da época em que havia futebol arte no Brasil…
Consuelo fica em silêncio por uns instantes. A ponte Hercílio Luz fica visível. Em instantes, a rodoviária de Florianópolis.
— Bom, Consuelo, estamos chegando…
— Sim, foi legal conversar contigo…
— Foi?
— Apesar da contemporaneidade e de outras coisas…
— E você?
— Eu?
— O que você acha do livro do Schroeder?
— Já disse, no começo da nossa conversa. Gostei. Demais. Acho uma solucionática. Um barato, cara, um barato.
— Bacana…
— E você, Marcio, o que te traz a Florianópolis?
— Vou passar uma tarde e voltar para Curitiba.
— Sério?
— Sério.
— Mas e esse sol, essa temperatura de verão. Não vai pegar uma praia?
— Hoje não…
— E você, Consuelo?
— Eu vim pra encontrar em alguma gaveta, de um algum quarto de hotel, cartas que algum homem escreveu.
— E como sabe que isso vai acontecer?
— Intuição, Marcio, intuição.
— E se não encontrar?
— Talvez, então, eu encontre um mapa raro no armário de algum hotel.
— Se não encontrar?
— Daí eu durmo, e sonho que encontrei.