🔓 Um grande acontecimento literário

Em “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, o Brasil real, em carne e osso, é a personagem central, para além das suas personagens particulares
Detalhe da capa de “Torto arado”
01/02/2021

O romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, livro sobre o qual todo o mundo já falou, mas não é redundante voltar a fazê-lo — a obra merece-o! —, foi o grande acontecimento literário da língua portuguesa em 2020. Para comprová-lo, bastaria citar o facto de ter vencido, nesse ano, dois importantes prémios da nossa língua comum: Jabuti e Oceanos, os quais se juntaram ao Prémio Leya 2018. Mas, além dos prémios, que são importantes, mas nem sempre significam tudo, Torto arado é, sem sombra de dúvidas, um tremendo romance.

Li o livro de Itamar Vieira Junior — autor de quem nunca tinha ouvido falar — em março do ano passado, na minha casa em Luanda, depois de tê-lo comprado em Lisboa em fevereiro, quando regressava a casa depois de ter participado no encontro Correntes d’Escritas na cidade da Póvoa do Varzim. A minha curiosidade foi naturalmente suscitada pelo facto de o mesmo ter ganho o Prémio Leya no ano anterior. A isso acresce a circunstância de se tratar de um novo autor brasileiro, pois, sendo eu um apreciador da literatura brasileira, há muito que não lia nenhum dos seus autores mais recentes.

Não vou, esclareço, fazer uma recensão literária do romance de Itamar Vieira Junior. Outros, mais competentes do que eu, já o fizeram e, provavelmente, continuarão a fazer, inclusive em outros idiomas, que não o português, para os quais o livro já foi ou será, como é previsível, pelas suas enormes qualidades, traduzido.

Como mero leitor, tenho de confessar o meu profundo espanto, à medida que ia lendo o livro. Há muito que não lia um recente autor brasileiro, publicado a partir dos anos 80/90 do século passado, quando morei no Rio, que me desse tanto prazer. A propósito, gosto particularmente de uma palavra que conheci com Manuel Bandeira: alumbramento. Foi a minha impressão, quando terminei a leitura de Torto arado.

O Brasil que eu tinha na memória há anos, desde que, ainda criança, lia as revistas Cruzeiro e Manchete, assim como a poesia de Jorge de Lima, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto e os romances de Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, e que, durante a minha vivência no país, raramente encontrei na mídia mainstream (e, contudo, estava vivo nas relações sociais e pessoais), está todo no notável livro do baiano Itamar Vieira Junior.

Quando morei no Brasil, tive oportunidade de acrescentar às minhas leituras anteriores outros extraordinários autores brasileiros, entre os quais menciono Ferreira Gullar, Moacyr Félix, Orides Fontela e Leminsky, na poesia, bem como Rubem Fonseca, João Ubaldo, Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Dalton Trevisan e Milton Hatoum na prosa, apenas para citar uns poucos. Entretanto, ao ler certos autores posteriores, deixei de sentir o Brasil que via nas ruas e nos meus contactos com os brasileiros, nas inúmeras e diferentes viagens que tive a oportunidade de fazer pelo país. A cabeça desses autores estava (está) em Nova Iorque ou então permanece enredada nos seus meros e muitas vezes diletantes exercícios.

Literatura, todos o sabemos, é linguagem. Mas, se não tiver vida (terra, carne, paixão, ódio, luta, esperança), não serve para nada. Em Torto arado, o Brasil real, em carne e osso (ou pelo menos um certo Brasil, mas que continua a ser fundamental no início do século 21, pois o país está estruturado com base naquele tipo de realidade), é a personagem central, para além das suas personagens particulares. Pela parte que me cabe, o romance fez-me reencontrar a literatura brasileira que sempre apreciei.

Para mim, que procuro fazer da lição de Bakthin — “o conteúdo está na forma” — a minha bússola enquanto escritor, a estrutura tem de estar ao serviço da estória (esta depende, em termos de eficácia, daquela). É o que Itamar Vieira Junior faz em Torto arado: a construção, criativa e requintada, na qual a polifonia desempenha um papel decisivo, não oblitera a estória: realça-a.

Uma nota final, para dizer que o livro em causa não é apenas um acontecimento literário. Como todo o grande livro, é também um acontecimento político.

A maioria dos críticos e leitores em geral (pelo menos aqueles que li até agora) tem realçado a resiliência e a força das personagens femininas de Torto arado. Eu permito-me chamar a atenção para outro aspeto: no livro de Itamar Vieira Junior, os negros (quilombolas) falam de si mesmos na sua própria voz, sem precisarem de intermediários, por mais bem intencionados que estes sejam.

Nesse sentido, Torto Arado, escrito entre 2017 e 2018, antecipou as lutas que os negros de todo o mundo desencadearam em 2020, depois do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, para reescreverem a(s) narrativa(s) a seu respeito.

* O autor escreve conforme o acordo ortográfico e consoante a variante angolana da língua portuguesa.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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