A saudade e a nostalgia que comparecem neste A estrela fria, sexto livro (o terceiro de poemas) do pernambucano José Almino, só remeteriam àquele lirismo convencional de que se vale a poesia como expressão do sujeito no tempo se, ao revés, não condissesse com a impressão do tempo no sujeito, a proferir, portanto, e por pressão, o quadro álgico de seu aniquilamento (“Por inteiro, ninguém vive; e aos pedaços, esquartejado?”). Tratar-se-ia, assim, de uma espécie de saudade daquele sujeito que morreu sem ter sequer nascido, porque — de contorno sempre cindido ou em promessa — permaneceu apenas como idéia, ideal talhado nos emblemas semânticos da infância. Chamada, pelo poeta, de estrela fria, ela assumiria aqui mais do que uma dimensão temporal, mas a condição de lugar imagístico no qual e a partir do qual um passado de impossibilidades figuraria — a todo instante, na sede de quem escreve — como um futuro realmente possível de infância. Não à espera da efetivação; presente apenas por ausência, quando ausência; através da via de uma negatividade afirmadora dessa estrela que ilumina enquanto permanece opaca; que aquece enquanto fria.
Neste sentido, tal irônica “saudade do que não foi” parece judiar da própria voz lírica por flagrá-la já subvertida pela história, isto é, por seus homens e feitos (e defeitos) anuladores de uma (perfeita) interioridade de poeta estanque do meio social — “biografia malpassada como um bife malpassado”. Esfacelado, o impossível e exilado sujeito se compreende nesta dialética entre si e o outro: “os rostos sebosos,/ os livros sebosos,/ a palavra cachorro/ o cheiro do esgoto/ constrangem o poeta”. Ou ainda: entre o nem-si e o tudo-é-outro, no que esse “outro”, sendo “tudo”, tem de projeto permanentemente adiado por um sujeito sempre dejeto ou, a um só tempo, objeto. Em tal aporia epistemológica, o que seria encontro entre subjetividade e objetividade se revela encontrão, esbarrão, disputa, luta nas folheadas de um livro tomado de citações de autoria alheia — seja de escritores e poetas, seja de um “flanelinha” de estacionamento: “Deixa solto, doutor” é o fragmento de um dos poemas onde José Almino põe em questão o ego, tornando-o tão-somente eco e deixando-o — literalmente — solto.
Dessa forma, tamanha intertextualidade vem sugerir no livro menos um recurso poético da moda do que o percurso de uma voz nos (des)limites de sua abertura ou, no eco de um “flanelinha”, estacionado pela sua soltura. Essa algaravia de falas que não são do poeta diz, por isso mesmo, melhor o que ele é (isto que não é; isto que só pertence ao alheio: “uma fala aquém ou para além da fala”), tanto no plano ontológico quanto sociológico, na medida em que a compreensão mais vertical da poesia de Almino se dá quando no horizonte da compressão; das opressões e repressões da sociedade brasileira (basta recorrer ao fato de que o poeta partiu ao exílio com a família aos 19 anos, o que impregna sua escrita de memórias de fundo político). Todavia, a fartura de frieza de boa parte da história do país não apaga a estrela da delicadeza em seus poemas, não raro doces, até nos momentos de maior amargor: “o que ganhei em luz/ esqueci/ à sombra das rameiras em flor”. Certo registro coloquial, por sua vez, também não se insinua obra do espontaneísmo, mas fidelidade à ressonância dos corpos falantes — sejam eles eminentemente eruditos ou imanentemente populares — em seus versos, razão pela qual dentro de um mesmo texto as dicções formal e informal muitas vezes se misturam, tal como a cena urbana do Rio de Janeiro, contemporânea, se articula ao cenário pernambucano de ontem.
Caberia, entretanto, um pouco mais de atenção a poemas do livro que comprometem um pouco o calor da estrela de outros e, enfim, a constelação da obra. Principalmente porque não se trata de um livro de estréia e porque, a despeito da extensa produção individual de José Almino, muito se produz e se publica no gênero poesia atualmente (ainda que prossiga pouco vendável). Os poucos leitores, frente a tantos títulos, fatalmente se tornam mais exigentes mesmo com aqueles que já possuem uma carreira estabelecida. Em nome da estrela calorosa, mesmo quando fria, da poesia, gostaríamos de um livro – tal o excelente poema um domingo de Almino – mais “ávido de si”, “rútilo”, “em pêlo/ e sem mais sentido: à espreita de uma surpresa,/ de algum deleite”. Por ora, e no reconhecimento de termos em mãos uma obra que não perde o trato com a palavra, satisfaz algum “doce mandato da alegria/ que vez por outra acalenta a alma”.