Todos títeres

"Sanga menor" mostra as ligações invisíveis que nos prendem ao passado e ao imobilismo
Cíntia Lacroix, autora de “Sanga menor”
01/08/2010

Chego ao fim de Sanga menor, livro de estréia da gaúcha Cíntia Lacroix, com um pouco menos de raiva de seu principal protagonista, Lírio Caramunhoz. Não posso dizer o porquê nessa resenha, para não estragar o prazer da leitura, mas tenha certeza: você odiará o cagarolas Lírio, o Liroca da mamãe, até quase o fim. E, quando conta com um personagem de quem se sente raiva, um livro vale a pena ser lido.

Sanga menor é uma cidade nascida em uma encosta de morro no fundão do Rio Grande do Sul, a mais de 600 km de Porto Alegre. Sanga é um termo regional gaúcho para indicar um pequeno ribeiro alagado e de pouca água, de acordo com o dicionário Michaelis. O Priberam ainda classifica sanga como um arroio. É à beira dessa sanga que nasce a cidade de Sanga Menor, também ela protagonista do romance de Cíntia. É uma cidade pequena como milhares de outras no país, onde todos conhecem todos, inclusive seus segredos, e onde aparentar é quase ou tão mais importante que ser.

Lírio Caramunhoz é um homem de 31 anos e dois metros de altura que se comporta como um bebê, um ser incapaz de tomar qualquer atitude em relação à vida. Quem o mantém assim e também longe do julgamento público é sua mãe, Rosaura. Claro, a senhora tem alguns motivos para isso. Rosaura tem medo de que aconteça a Lírio o que aconteceu ao seu pai, Percival, que sofreu um derrame cerebral e ficou condenado a viver em uma cadeira até o dia de sua morte. Uma pneumonia que ele teve aos 11 anos serve de motivo para Rosaura protegê-lo do mundo com medo de que sua saúde continuasse frágil.

Junto a Lírio e Rosaura mora Margô, tia de Rosaura, que se mudou para o chalé dos Caramunhoz no dia seguinte ao derrame de Percival, que aconteceu quando Rosaura estava grávida de Lírio. Margô é uma mulher ressequida, amarga, que esperou em vão por um amor que lhe fizesse sentir o corpo tremer como nos romances que lia — um amor que nunca veio. Margô é a única crítica do comportamento de Lírio, e é ainda mais crítica quando ela e a irmã falam do dinheiro – curto —usado para pagar o curso superior de Geografia por correspondência feito por Lírio.

Mas por que Lírio se torna um ser covarde e desprezível? Porque tem como modelo o pai, que, na sua letargia, fica encostado em um canto da sala, boca entreaberta com um permanente fio de baba escapando dela, e isolado, dentro de si, dos perigos do mundo. Lírio queria ser como o pai e, enquanto sua mãe estiver por perto, é o que ele será.

E tudo seria assim se Rosaura não tivesse uma irmã libertária, Caetana Ilharga, artista que não se conformava com as coisas como elas eram e que via Sanga Menor como uma prisão de pessoas e almas. Caetana teve um filho, Gilberto, que mais tarde se tornou um gênio da publicidade e ficou milionário. Ambos, em sua maneira peculiar de viver, desafiaram toda a cidade de Sanga Menor, mesmo à distância e durante muito tempo, mesmo depois da morte. E é essa presença libertária voando ao redor de todos que trará as modificações que o leitor praticamente suplica que aconteçam a Lírio.

Este é o grande mérito de Cíntia. O primeiro parágrafo do livro causa um pouco de medo no leitor, principalmente pelo uso de algumas palavras pouco comuns (tristes tempos os nossos em que um escritor com domínio e conhecimento da língua causa espanto), como se ela fosse enveredar pelo arcaísmo para mostrar conhecimento. Mas se passarmos pelo “poltrão”, pelo “estremunhado” e pelas viscosidades do primeiro parágrafo, não pararemos mais.

Tempos diferentes
Cíntia não se utiliza tanto da ação no seu romance. Seu foco é narrar o que se passa na cabeça de seus personagens, as suas personalidades. Há um momento do livro em que a autora revela esse descompasso entre o tempo na cabeça e o tempo real:

O sol continuava a derramar toda a sua inclemência sobre a praça da igreja. Conferindo o relógio de pulso, Lírio constatou, surpreso, que haviam se passado apenas quinze minutos. Absurdo! Poderia jurar que uma vida inteira tivesse transcorrido desde o momento em que se pusera a caminhar sobre o verdor do gramado.

Sanga menor transcorre em tempos diferentes do real, indo e vindo ao sabor dos acontecimentos, com a autora retornando sempre ao passado para explicar melhor o porquê dos comportamentos de seus habitantes.

Cíntia também utiliza com habilidade a profissão (ou o talento) de Caetana para explicar a vida dos protagonistas de Sanga menor. Ela era conhecida como Caetana dos Fantoches, artista que criava enredos que entortavam a cabeça, primeiro, dos habitantes de Sanga Menor e, depois, de alguns de Porto Alegre, por conta de suas mensagens nem sempre simples de entender. Para Caetana, todos somos títeres de um ser superior que manda e desmanda em nossos destinos, e nós nos iludimos ao achar que temos algum controle sobre nossas vidas. Cíntia mostra que os destinos dos protagonistas estavam ligados por fios invisíveis e que, para mudar alguma coisa, era necessário cortar um ou outro fio, sob a pena de permanecer para sempre na situação em que se estava. Para o leitor, essa situação é mais clara, e é por isso que ficamos com raiva de Lírio, pois vemos claramente o fio que o prende à sua imobilidade, sabemos até como cortá-lo e queremos que ele o corte, mas o bunda-mole não faz nada.Fazer-nos sentir raiva do personagem é um dos méritos de Cíntia.

Santa menor só é pequeno no nome, pois é um grande livro. Esse trabalho foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura 2010, na categoria Melhor Livro do Ano — Autor Estreante. Entre os finalistas há outro livro muito bom, Mundos de Eufrásia, de Cláudia Lage, já resenhada neste Rascunho. E, se as duas são uma amostra dos escritores que estão surgindo, podemos reservar um pouco de nosso tempo para lhes dar a atenção merecida.

Sanga menor
Cíntia Lacroix
Dublinense
256 págs.
Cíntia Lacroix
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1969. Formou-se em direito na UFRGS e cursou jornalismo na PUC. Em Roma, estudou direito internacional e literatura italiana. Participou da oficina de criação literária ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil, publicando contos na coletânea Contos de oficina 28, e freqüenta os seminários de criação literária coordenados por Léa Masina. Trabalha como Procuradora da Fazenda Nacional, na Advocacia-Geral da União.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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