Querido/a leitor/a, muitas vezes não sei se as coisas que rememoro ocorreram ou simplesmente as invento. Deve ser assim com você também – e isso me tranquiliza. Há uma passagem no excelente A cartuxa de Parma, romance do francês Stendhal, em que o protagonista – não posso garantir que a passagem seja exatamente essa, afinal, li este livro no alvor da minha vida e não o revisitei – em que Fabricio Del Dongo perde uma de suas botas durante um violento e enorme combate. Está um frio terrível e ele simplesmente abandona a luta para procurá-la em meio à lama e aos corpos destroçados dos companheiros e dos cavalos, porque, sem ela, seu pé vai congelar e gangrenar… A grande preocupação de Fabrício é manter-se vivo – obviamente, ele não sabe que aquele combate passará à história como a Batalha de Waterloo, que marca efetivamente o fim do século 18…
Talvez tenha sido Hegel – debochado/a leitor/a sou um homem simples, de hábitos simples, e minhas citações, impressivas, imprecisas – talvez tenha sido Hegel que, de maneira genial, escreveu que nós, os seres humanos comuns, vivemos imersos na História, sem dela ter consciência, porque os fatos históricos só se tornam históricos a posteriori. Ou seja, a maioria absoluta daqueles soldados que combatiam no campo de Waterloo, um lugarejo perdido na Bélgica atual, assim como Fabricio Del Dongo, não tinha noção de que a derrota de Napoleão Bonaparte iria ditar mudanças fundamentais na história política, econômica e social da Europa. Apenas uns poucos possuíam alguma consciência de seu papel de sujeito histórico e intuíam que ali não estava sendo disputada apenas mais uma batalha, mas jogava-se com o destino do mundo.
Que estranho este 2020! Nunca imaginaríamos, nem em nossos pesadelos mais mórbidos, a tragédia que nos aguardava, quando brindamos no dia 31 de dezembro de 2019 sua chegada, com tudo que um novo ano carrega, simbolicamente, de promessas e expectativas. Vidente algum – nenhum, crédulo/a leitor/a! – passou nem longe de predizer que, naquele momento, ventos do Leste já carregavam a peste que dizimaria, até agora, cerca de 1,7 milhão pessoas em todo o mundo – mais de 190 mil somente no Brasil – e que a economia mundial registraria, em média, um encolhimento de 4,4% – no Brasil, o PIB deve fechar com crescimento negativo de 5,2% e o número de desempregados deve ultrapassar a marca de 14 milhões de pessoas.
A única lição positiva – se é que essa é uma lição positiva – que podemos obter desse fatídico 2020 é que, por conta da superexposição à informação a que estamos todos submetidos, talvez seja a primeira vez na História da Humanidade que até mesmo nós, os seres humanos comuns, temos consciência do momento histórico que estamos vivendo, ou seja, até nós, seres humanos comuns, sabemos que estamos participando de um evento que, sem dúvida alguma, assinala um novo paradigma coletivo. Assim que a pandemia for controlada, a Humanidade irá, pouco a pouco, se recompor e muita coisa deverá mudar. Se para melhor ou pior, só o tempo dirá.
De qualquer forma, fica aqui o meu desejo, sincero e profundo, de que 2021 seja um ano bom o suficiente para que ofusque as tragédias de 2020. Os meus votos, faço-os corroborando os versos de Manuel Bandeira que seguem aí embaixo.
Luz na escuridão
Fernando Cesário, romancista: “Sinos para os suicidas: este é o título do romance sobre o qual tenho me debruçado, desde o ano passado. A história se passa entre 1968 e 1974; portanto, no mais terrível momento de toda a nossa História. Os cenários? Ouro Preto e Rio de Janeiro. Dois jovens completamente diferentes, Tomás e Marília, são colocados pelo acaso frente a frente, em meio ao rebuliço das manifestações estudantis, dos acontecimentos políticos que assolaram o pais. Esperam-lhes a paixão e talvez a morte. Eros e Thánatos…”
Parachoque de caminhão
“Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude.”
Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa (1896-1957)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Manuel Bandeira
(Recife, PE, 1886 – Rio de Janeiro, RJ, 1968)
Belo Belo
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas
[estrelas cadentes.
A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.
— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais
[simples.
(Lira dos cinquent’Anos, 1940)