“Nossa humanidade é sem dúvida tentada a pensar, como fazem os americanos, que o que aconteceu há trezentos anos não conta mais, não tem mais nenhuma importância para nós”, diz Umberto Eco em Não contem com o fim do livro, no qual dialoga com seu amigo roteirista, cineasta e também bibliófilo Jean-Claude Carrière. Eco está na pista certa. Vivemos o tempo do esquecimento, o tempo da substituição instantânea, muitas vezes irrefletida, do velho (que agora envelhece com uma velocidade vertiginosa) pelo que é ou parece ser “novo”.
Nos anos 90, escrevi um ensaio de repercussão no meio acadêmico, que atentava para o problema da “obsessão em decretar o fim de tudo”. Atravessávamos então a era das finalizações. A sociologia, a psicanálise, o socialismo, a história, a arte, a ciência, Deus etc. etc. estavam sendo condenados à extinção. Como numa equação físico-química, os profetas estabelecem linhas limítrofes para tudo o que se acelera e se desacelera no espaço-tempo, ou sofre inflações e deflações na capacidade de influir no destino dos seres.
Sem argumentos sólidos, bandos de profetas seguem afirmando que não se pode mais (ou não se deve mais) relativizar, porque também este — o relativismo — já deu o seu último suspiro. Toda essa ansiedade coletiva extremada e contínua parece não considerar o termo “fim” no sentido de finalidade, o que poderia nos ajudar a evitar modismos, estigmas e distorções. Os jactantes, tão convencionais quanto dogmáticos, devem ter tentado infundir em você também a ideia de que leitores de livros em papel não passam de outsiders nostálgicos.
Atacam-se teoremas inextricáveis tanto quanto invenções seculares. O objeto-livro, tal como o conhecemos atualmente, é uma das invenções sob bombardeio cerrado dos apologistas das tecnologias que propiciaram esta nossa Era da Informação. Até aí, nada de “novo”, diriam os céticos. O problema é que os exagerados franco-atiradores não apontam suas metralhadoras apenas para o livro em papel. Querem nos fazer crer que a narrativa — também ela — acabou. Fim. Será?
É provável que o livro (o objeto, a mídia, a coisa) deixe de existir no longo prazo, como ocorreu com o aparelho de telex, por exemplo, que perdeu função há pelo menos três décadas. Extinguiu-se a tecnologia, que foi substituída por outra, mas não a necessidade de comunicação escrita em rede. Ao contrário, o fax e o e-mail surgiram exatamente devido à demanda crescente por um tráfego ágil de dados. Então, se o objeto-livro deixar mesmo de existir (algo factível), a humanidade perderá o interesse pelo seu passado ou por história(s)?
Provavelmente não. Máquinas como iPads e Kindles estão aí para mostrar a grande importância que a sociedade atual confere à informação e à narrativa. Mas o registro escrito em papel ainda é o meio mais confiável de retenção e conservação do conhecimento humano. Como mídia, o livro é uma invenção revolucionária, e permanece tão insubstituível quanto a bicicleta e os óculos, em termos de funcionalidade e durabilidade (os aprimoramentos continuam, mas não alteram mais a função intrínseca).
A velocidade, sim, a velocidade das mudanças é de tirar o fôlego: da escrita ao códice foram 4,3 mil anos; do códice aos tipos móveis, 1150 anos; dos tipos móveis à internet, 524 anos; da internet aos sites de busca, 17 anos; dos sites de busca ao algoritmo de relevância do Google, sete anos. E nunca é demais lembrarmos o óbvio: os manuscritos ainda eram publicados até muito tempo depois da invenção da prensa móvel por Gutenberg; os jornais não acabaram com o livro; a televisão não destruiu o rádio; a internet não fez os telespectadores abandonarem suas tevês; e as telas dos e-readers ainda não são tão amigáveis quanto uma página impressa.
“A capacidade de resistência do códice à moda antiga ilustra um princípio geral da história da comunicação: uma mídia não toma o lugar da outra, ao menos no curto prazo”, afirma Robert Darnton em A questão dos livros. A “máquina” mais antiga de todas, o livro, continua dominando o mercado de leitura. Segundo o Bowker’s Global Books in Print, um milhão de novos títulos em papel serão publicados este ano no mundo.
Darnton argumenta que “todas as eras foram uma era da informação, cada uma a seu modo”, e que “a informação sempre foi instável”:
A nova tecnologia deveria nos forçar a reconsiderar o próprio conceito de informação. Não deveríamos encará-la como se assumisse a forma de fatos objetivos ou pepitas de realidade prontas para serem garimpadas em jornais, arquivos e bibliotecas, mas como mensagens que são constantemente remodeladas em seu processo de difusão.
República das Letras Digitais
Há alguma mensagem reconfortante de continuidade nesse cenário de proliferação de novas invenções? “Não”, Darnton responde. “A explosão dos modos eletrônicos de comunicação é tão revolucionária quanto a invenção da impressão com tipos móveis. Estamos tendo tanta dificuldade em assimilá-la quanto os leitores do século 15 ao se confrontarem com textos impressos.” Ele cita o classicista italiano Niccolò Perotti, que escreveu o seguinte a Francesco Guarnerio em 1471:
Percebo, contudo — oh, esperanças falsas e tão humanas —, que as coisas tomaram um rumo bem diferente do que eu imaginava. Como agora qualquer um é livre para imprimir o que bem desejar, em geral eles desconsideram aquilo que é melhor e escrevem, meramente para se divertir, aquilo que ficaria melhor se fosse esquecido ou, melhor ainda, apagado de todos os livros.
Qualquer semelhança entre o conteúdo deste trecho de carta e o atual estado de proliferação de informações na internet não é mera coincidência. Volumes por si só geram desconfiança, e a confiabilidade é um dos problemas da era digital. Blogs criam notícias, e notícias podem assumir a forma de uma realidade textual que supera a realidade que vemos com os próprios olhos. “A notícia se desprendeu de seus alicerces tradicionais, criando possibilidades de disseminar informações errôneas em escala global. Vivemos num tempo de acessibilidade sem precedentes a informações cada vez menos confiáveis.”
Estudantes costumam fazer o download de textos sem se perguntar de onde vieram, e muitas vezes acabam baixando versões deturpadas. Mas esse problema não é novo, e não atinge somente os jovens. Enquanto a Geração Download evita a biblioteca, o bibliófilo tenta inutilmente conter sua obsessão por reter (mais até do que conservar). Os colecionadores autênticos se interessam mais pela busca do que pela posse, como o caçador autêntico se preocupa em primeiro lugar com a caçada e só depois, eventualmente, com as carnes.
“Conheço colecionadores (e observe que coleciono tudo, livros, selos, cartões-postais, rolhas de champanhe) que passam a vida inteira formando uma coleção completa e que, uma vez formada essa coleção, a vendem ou até doam a uma biblioteca ou a um museu”, Umberto Eco assume. Robert Darnton, por sua vez, fixa atenção no século 18, no iluminismo, época de fé no poder do conhecimento e no mundo das idéias — aquilo que os iluministas costumavam chamar de República dos Livros.
O século 18 imaginava a República das Letras como um reino sem polícia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto as determinadas pelo talento. Qualquer um podia fazer parte dela exercendo os dois atributos principais da cidadania: ler e escrever. Escritores formulavam idéias e leitores as julgavam. Graças ao poder da palavra impressa, esses juízos se difundiam por círculos crescentemente amplos e os argumentos mais sólidos venciam.
A palavra se difundia também através de cartas manuscritas. O século 18 foi o ápice da era do intercâmbio epistolar. As correspondências de Voltaire, Rousseau, Franklin e Jefferson — cada uma preenchendo cerca de 50 volumes — são a encarnação daquele tempo. Os quatro autores debateram as questões de seu tempo num fluxo constante de cartas que cruzava a Europa e os Estados Unidos e se espalhava pelo mundo. Darnton:
Longe de funcionar como uma ágora igualitária, a República das Letras sofria da mesma doença que corroeu todas as sociedades do século 18: o privilégio. Os privilégios não se limitavam aos aristocratas. Na França, eles se aplicavam a tudo no mundo das letras, inclusive aos ramos de impressão e comércio de livros, dominados por guildas exclusivas, e aos próprios livros, que não podiam ser publicados legalmente sem o privilégio real e a aprovação de um censor.
A outra República das Letras, consolidada pelo século 20, é muito mais aberta e abrangente.
A abertura vem se operando por toda parte, graças aos repositórios de “acesso livre” de artigos digitalizados disponíveis gratuitamente, à Open Content Alliance, ao Open Knowledge Commons, ao OpenCourseWare, ao Internet Archive e à Wikipedia. Agora a democratização do conhecimento parece estar nas pontas dos nossos dedos. Podemos tornar realidade o ideal do Iluminismo.
Google Book Search
O templo da República das Letras são (eram) as bibliotecas, que existem para promover o bem público, o “encorajamento do saber”, a educação “aberta a todos”. Hoje os estudantes ainda respeitam suas bibliotecas, mas as salas de leitura estão praticamente vazias em alguns campi. Nos Estados Unidos, os bibliotecários têm oferecido poltronas para os usuários relaxarem, bebidas e lanches para voltar a atrair os alunos. Estudantes (modernos ou pós-modernos) fazem a maior parte de suas pesquisas hoje em computadores. O conhecimento, acredita-se, está online, e não no espaço físico de uma biblioteca.
A solução para o desconforto da sobrecarga de informações e do excesso de futilidades seria uma biblioteca sem livros? Darnton vê a biblioteca como a cidadela e a internet como espaço aberto. “As bibliotecas nunca poderão conter tudo entre as suas paredes porque a informação é infinita e se estende por todos os cantos da internet; e para encontrá-la é preciso usar um mecanismo de busca, não um catálogo de fichas. Mas isso também pode ser uma grande ilusão.”
Não é exagero pensarmos bibliotecas com cada vez mais terminais de computadores e cada vez menos estantes. Os computadores permitiriam o acesso a bancos de dados gigantescos por meio de mecanismos de busca perfeitamente afinados. Na verdade, isso já está sendo implementado. O projeto Google Book Search, por exemplo, consiste em digitalizar os acervos de dezenas de bibliotecas, criando uma megabiblioteca digital com milhões de obras, algo talvez maior do que o próprio Borges contemplou em suas ficções.
Dos sete milhões de títulos digitalizados até novembro de 2008, um milhão é de obras em domínio público; um milhão está protegido por copyright e em catálogo; e cinco milhões são livros sob copyright mas fora de catálogo. Esta última categoria fornecerá a maior parte das obras a serem disponibilizadas. Qualquer pessoa em qualquer lugar poderá ler e baixar, por exemplo, uma cópia digital da primeira edição de Middlemarch (1871), de George Eliot, pertencente à biblioteca da Universidade de Oxford.
Todos lucrariam com isso, inclusive o Google, que obteve receita de anúncios ligados ao serviço. O Google também digitalizou um número cada vez maior de obras de bibliotecas que estavam protegidas por copyright, o que detonou uma ação judicial movida por um grupo de autores e editores. Em 28 de outubro de 2008, após negociações extensas e complexas, os reclamantes e o Google chegaram a um acordo, que ainda não foi aprovado pelo Tribunal Distrital de Nova York.
Segundo o acordo, as receitas (anúncios, assinaturas etc.) provenientes do serviço gratuito serão distribuídas assim: 37% para o Google e 63% entre os detentores dos direitos. Enquanto isso, o Google continuará disponibilizando livros em domínio público aos seus usuários, seja para ler, baixar ou imprimir, sempre de forma gratuita. “Mas o caráter coletivo e popular do acordo torna o Google invulnerável à competição”, adverte Darnton. “Exceto pela Wikipedia, o Google já controla os meios de acesso à informação online.”
A maioria dos autores e editores americanos detentores de copyright está automaticamente incluída no tal acordo.
Podem escolher ficar de fora; mas, façam o que fizerem, nenhuma outra iniciativa de digitalização poderá ser iniciada sem obter seu consentimento caso a caso (uma impossibilidade prática), ou sem acabar se envolvendo em outra ação coletiva. Se aprovado pelo tribunal — um processo que pode levar até dois anos —, o acordo concederá ao Google, na prática, controle sobre a digitalização de todos os livros protegidos por copyright nos Estados Unidos.
A preservação do conhecimento
O fato é que nem tudo o que existe nas bibliotecas mundo afora estará logo disponível em suporte digital, até porque esse modo de “congelamento do passado” continua sob suspeita. Os meios eletrônicos padecem de decrepitude precoce. A diluição do presente, de que fala Umberto Eco em Não contem com o fim do livro, não se deve apenas ao fato de as modas, que antigamente duravam anos, durarem hoje uns poucos dias. Deve-se também, segundo ele, à obsolescência dos próprios objetos e do conhecimento que temos de adquirir para operá-los.
Você dedicava alguns meses da sua vida para aprender a andar de bicicleta, mas essa bagagem, uma vez adquirida, era válida para sempre. Agora, você dedica duas semanas a compreender alguma coisa de um novo software e, quando arduamente o domina, um novo é proposto e imposto. Logo, não é um problema de memória coletiva que se perderia. Seria antes, para mim, o problema da labilidade do presente. Não vivemos mais um presente plácido. Passamos a maior parte do tempo nos preparando para o futuro.
Jean-Claude Carrière, interlocutor de Eco, lembra que nos anos 1980 os videocassetes se deterioraram rapidamente; e, no início da década de 1990, o CD-ROM prometia ser a solução como “suporte durável”. “Quando surgiu o DVD, achamos que tínhamos finalmente resolvido para sempre nossos problemas de armazenamento e acessibilidade. Uma tendência da nossa época é colecionar o que a tecnologia peleja para descartar. Tudo isso para dizer que não existe nada mais efêmero do que os suportes ditos duráveis”, Carrière completa.
É fato que somos capazes de ler hoje um texto que foi impresso há cinco séculos, mas temos dificuldades de ler, ou ver, um cassete eletrônico ou um CD-ROM com apenas poucos anos de existência. Imaginem agora o mundo ameaçado por uma catástrofe climática gigantesca que exigisse a salvação em local seguro, e por tempo indeterminado, de inúmeros objetos de cultura. Se não podemos proteger tudo, carregar tudo, que objetos escolheríamos e qual o suporte de armazenamento?
“Por que correr o risco de nos atulharmos com objetos que correriam o risco de permanecer mudos, ilegíveis?”, Eco questiona.
Temos a prova científica da superioridade dos livros sobre qualquer outro objeto que nossas indústrias culturais puseram no mercado nesses últimos anos. Logo, se devo salvar alguma coisa, que seja algo facilmente transportável e que deu provas de sua capacidade de resistir às vicissitudes do tempo. Eu escolheria o livro.
A resistência do livro é extraordinária. Desde a invenção do códice, por volta do nascimento de Cristo, ele se provou uma “máquina” maravilhosa — excelente para transportar informação, cômodo para ser folheado, confortável para ser lido na cama, soberbo para armazenamento e incrivelmente resistente a danos. Não precisa de upgrades, downloads ou boots, não precisa ser acessado, conectado a circuitos ou extraído de redes. Seu design é um prazer para os olhos, e sua forma, um deleite.
De tão conveniente, o livro tem sido a ferramenta básica do saber por milhares de anos, mesmo quando precisava ser desenrolado para ser lido (na forma de rolos de papiro, diferentemente do códice, composto de folhas reunidas por encadernação) muito antes de Alexandre, o Grande fundar a biblioteca de Alexandria, em 322 a.C. Por essas e outras razões, Robert Darnton, diretor da secular biblioteca da Universidade Harvard, prefere aumentar as aquisições das bibliotecas a confiar ao Google Book Search a preservação de livros futuros em prol das gerações futuras. Ele argumenta:
Obsolescência é uma característica intrínseca das mídias eletrônicas. O Google define sua missão como a comunicação da informação — agora mesmo, hoje; não se compromete a preservar textos por um período determinado. Isso pode ser um problema, pois as empresas entram em declínio rapidamente no ambiente de mudanças velozes da tecnologia eletrônica. O Google pode desaparecer ou ser eclipsado por uma tecnologia superior.
Num mundo onde livros nascem digitais e leitores são nativos digitais, as bibliotecas não mais precisarão estocar quantidades imensas de textos atuais em formato impresso. Impressão sob demanda e e-readers aprimorados talvez sejam suficientes para satisfazer as necessidades mais imediatas. De uns dez anos para cá, ficou fácil poupar espaço físico ou agilizar o consumo de bens culturais, mas a conservação do conhecimento no longo prazo continua sendo uma questão séria.
Embora o “antiquado” livro pré-moderno ainda seja o sistema de preservação mais adequado e confiável, a profecia do fim do livro vem sendo repetida desde 1945, quando foi projetado o primeiro “e-book”, uma aberração batizada de Memex. Desde então o livro convencional foi declarado morto tantas vezes que os vaticínios caíram em descrédito. Até Bill Gates, comandante da Microsoft, confessou recentemente que prefere um material impresso às telas de computador para leituras mais extensas.
Um trocadilho é inevitável: o “mundo digital” ainda não saiu do papel. E não se trata de conservadorismo, nostalgia ou obsessão pelo “velho”, mas sim de uma impossibilidade. A idéia de um sistema de comunicação infinito, com hiperlinks que se estendem por tudo quanto existe, ainda não pode ser efetivada plenamente. “Produzimos uma quantidade de informação muito superior ao que conseguimos digitalizar e, de qualquer modo, informação não é conhecimento. Para conhecer o passado, precisamos escavar seus restos e aprender a deles extrair sentido”, Darnton pondera.
UMBERTO ECO nasceu na Itália, em 1932. É semiólogo, professor e escritor. É autor de O nome da rosa, O pêndulo de Foucault, Sobre a literatura, A misteriosa chama da rainha Loana, História da beleza, História da feiúra e Baudolino, entre vários outros livros.
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE nasceu na França, em 1931. É escritor, dramaturgo e roteirista, tendo trabalhado com Luis Buñuel e Peter Brook.
ROBERT DARNTON nasceu em Nova York, em 1939. Filho de jornalistas, graduou-se em história em Oxford. Foi professor de história européia na Universidade de Princeton. Atualmente é professor da Universidade Carl H. Pforzheimer e diretor da Biblioteca da Universidade Harvard. É autor de O beijo de Lamourette, Boemia literária e revolução, Edição e sedição e O iluminismo como negócio, entre outros.