Um governo é eleito democraticamente em um país na América Latina no século 20. Uma das plataformas de campanha é a justiça social, por meio da reforma agrária. A posição incomoda os Estados Unidos, que decidem intervir. A fórmula escolhida envolve obter apoio do empresariado, espalhar mentiras e mobilizar o exército. O resultado, claro, é um golpe militar. Não, não é a história do Brasil, nem do Chile, menos ainda da Argentina. Embora o roteiro tenha se repetido no continente, desta vez o país é a Guatemala, localizado na América Central. É nele que acompanhamos a narrativa de Tempos ásperos, o mais recente romance de Mario Vargas Llosa.
Ganhador do Nobel de Literatura em 2010, Llosa é mestre no romance histórico envolvendo sociedade e política. O caminho já foi executado magistralmente em A guerra do fim do mundo (1981) e A festa do bode (2000). O primeiro relata a Guerra de Canudos, no Brasil, e o segundo, a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana. Tempos ásperos não decepciona quem já conhece a literatura do autor. Mais do que isso, deve surpreender quem começar a lê-lo por este trabalho.
Os locais nos quais acompanhamos o desenrolar da história são muitos, como Guatemala, Honduras, Nicarágua e até mesmo Japão. Não bastasse isso, a lista de personagens também é longa. São pessoas como Martita Parra, Efrén García Ardiles, Juan José Arévalo, Carlos Castillo Armas e Johnny Abbes García. Você não os conhece? Eu também não os conhecia. E isso pouco importa: ao final do romance, eles estarão tão próximos a ponto de você temer que uma bomba exploda o seu carro. Uma vitória do autor.
Talvez imaginando a dificuldade de contexto para os leitores, Tempos ásperos vem com uma espécie de prefácio e posfácio, chamados Antes e Depois por Llosa. No primeiro, fala sobre Edward Bernays, o homem que foi um dos pais da publicidade e que atuou para a United Fruit Company, a empresa de frutas que, entre outros negócios, foi a responsável por levar banana para os Estados Unidos; e sobre Sam Zemurray, o dono da companhia. Juntos, nos anos 1940, eles tramaram a expansão dos negócios usando a ajuda do governo e da imprensa dos Estados Unidos a partir de um expediente: a mentira — e financiando políticos corruptos. No caso da Guatemala, em resumo, a United Company emplacou a narrativa de que o país era um satélite da União Soviética, que os presidentes eleitos democraticamente eram comunistas. A imprensa estadunidense acreditou, bem como o empresariado guatemalteco. O resultado foram golpes militares, mortes e perseguições. É a história da América Latina, sempre ela.
Em Depois, conhecemos um pouco do método de trabalho do escritor peruano, que viajou aos Estados Unidos para entrevistar Martita Parra, hoje uma senhora na casa dos 80 anos. Esta parte pouco importa para a narrativa, mas é algo curioso para quem se interessa por processo de pesquisa e escrita. Se fosse cortada do livro, não faria diferença, mas, já que está ali, agradecemos. Nesse (quase) posfácio, aliás, fica bem claro que o romance talvez tenha mais mentira do que verdade. “Confesso que estou um pouco nervoso”, registra o autor, antes de se encontrar com a personagem. “Passei dois anos imaginando essa mulher, inventando-a, atribuindo a ela todo tipo de aventuras; desfigurando-a para que ninguém — nem ela mesma — a reconheça na história que fantasio.”
O golpe
Progressistas e civis alheios à política estavam cansados da ditadura militar que a Guatemala vivia sob o general Jorge Ubico Castañeda desde 1930. Em 1944, forças que queriam a democracia levaram à presidência o professor Juan José Arévalo, que ficou no poder entre 1945 e 1951. A chegada dele ao cargo mais importante da República incomodou os Estados Unidos. A situação piorou ainda mais porque o político elegeu o sucessor, o general Jacobo Árbenz Guzmán, um democrata cujo principal desejo era fazer do próprio país uma nação semelhante aos EUA. Para isso, duas medidas se faziam urgentes: a reforma agrária e a cobrança de impostos de empresas que não pagavam nada. Na visão dele, desenvolvimentismo. Na visão dos estadunidenses, comunismo demais. Adivinhe qual ponto de vista emplacou?
É a partir do governo de Guzmán, distribuindo terras aos agricultores e indenizando os proprietários, que o fio da narrativa se desenrola, e faz todo sentido ter o Antes no começo do livro. Mentiras começam a ser espalhadas e golpes começam a ser planejados entre 1951 e 1953. A CIA quer derrubá-lo, mesmo sem prova concreta de participação do governo soviético ou algo semelhante. Constituído por republiquetas de bananas, os EUA desejavam o controle do continente em um contexto de Guerra Fria, não importando o expediente usado.
Entre revoltas, tiros e brigas, o coronel Carlos Castillo Armas chega ao poder, apoiado pelos Estados Unidos, CIA, Nicarágua e outras ditaduras. É por uma delas, aliás, que ele vai morrer: a de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana, que já conhecemos desde o romance A festa do bode. São golpes dentro do golpe, romances conversando entre si.
O fio narrativo
Mario Vargas Llosa usa um narrador onisciente para descrever a história. Entretanto, personagens completamente diferentes entram em cena, o que torna o livro diverso, dando ritmo ao que é contado. Martita, por exemplo, chamada de Missa Guatemala desde que nasceu, é uma das figuras encantadoras. Aos 15 anos, engravidou de um médico, amiga do pai dela. Abandonada pelo genitor, Martita deixa o marido com quem foi obrigada a casar, além do próprio filho, e se torna amante do ditador Castillo Armas. Outra figura importante para contar a história é Johnny Abbes García, dominicano, uma espécie de faz tudo para Trujillo e que, por conta da presença dele na Guatemala, a história muda. Partindo de pontos diferentes, os personagens se encontram e ajudam a construir o retrato de um período conturbado na história da América Latina. Llosa é mestre nos diálogos.
Tempos ásperos tem 31 capítulos, além do Antes e Depois. Em um deles, há uma aula de narrativa. No capítulo oito, deixamos a Guatemala e estamos na República Dominicana, junto ao ditador Rafael Trujillo. Ele se reúne com Abbes García para lhe dar uma missão. Enquanto ocorre um diálogo entre os dois, Trujillo se lembra de uma conversa que tivera com o ditador guatemalteco Carlos Castillo Armas. Não há marcação indicando a mudança no tempo, apenas alteração de parágrafos. O leitor, portanto, não é subestimado, e esse estilo narrativo é o que separa as crianças dos adultos.
Embora haja a interferência dos Estados Unidos, mentiras propagadas pela United Fruit Company e outras situações no macro, o micro também é lembrado. Todos os personagens se conhecem, de modo geral, dando um toque de humanidade aos fatos históricos. Não à toa, ressentimento, mágoas e egos feridos também são motores de ação social, que levam desde mudanças estruturais a assassinatos sem motivos claros. Um personagem em determinado momento diz algo como “não há local seguro para quem vive em países da América Latina”. Ele está certo. O romance de Llosa é um mundo.
Indo além
É pública a história de rompimento entre Gabriel García Márquez, morto em 2014, e Llosa. Amigos na juventude, eles se separaram nos anos 1970 por motivos não muitos claros até hoje. Sabe-se que a morte do autor de Cem anos de solidão mexeu com o peruano. Tempos ásperos evoca a América Latina como local em que tudo acontece, o que lembra Macondo, a terra descrita por García Márquez em Cem anos. Embora a referência não seja clara, há um determinado momento em que a estrutura de um parágrafo lembra o romance mais conhecido do colombiano.
Muitos anos depois, evocando esses primeiros tempos de sua vida, Martita só lembraria vagamente, como chamas que se acendiam e apagavam, a grande inquietação política que, de repente, começou a ocupar as conversas daqueles figurões que vinham disputar esses jogos de cartas de outros tempos nos fins de semana.
Posso estar exagerando, mas tenho lá minhas dúvidas se não é uma homenagem póstuma.
Também me soou impossível não relacionar o romance ao Brasil atual, um lugar cuja propagação de mentiras tem sido mais efetiva que o noticiário, um país onde o empresariado costuma se aliar a forças atrasadas para impedir a melhoria de boa parte da população, uma região tomada por podres poderes. Embora retrate o passado, o livro de Llosa é um alerta para nós quanto ao presente. Não é exagero dizer: também estamos vivendo tempos ásperos.
Por fim, mas não menos importante, aqui vai uma informação ao sujeito desavisado para o qual dei o alerta no início do texto: Mario Vargas Llosa é um homem de direita, liberal. Pode parecer ingênuo, mas, em tempos como o nosso, a posição política de cada pessoa tem sido aplicada à leitura do trabalho dela, o que gera desgastes e desperdícios desnecessários. Em outras palavras: sim, leitor(a), é possível ser alguém crítico à esquerda, às ditaduras de direita/militares e aos Estados Unidos, ou ao menos escrever dessa forma. Não acredita? Leia os romances do peruano, então.