Do que é feito o seu riso, Dôra?
Nas noites anteriores ao seu suicídio, Dôra teve muitos pesadelos. Perseguições. Tiros. Torturas. Segundos relatos de pessoas próximas, ela parecia bem. Depois de quase um ano internada numa clínica psiquiátrica por causa de surtos frequentes, o tratamento parecia ter surtido efeito, e ela voltou para casa.
As imagens de Dôra (Maria Auxiliadora Lara Barcelos) no documentário Relato de uma tortura, feito no Chile anos antes, em 1971, a mostram sorrindo. Sorrindo ao descrever como foi torturada pela ditadura militar civil brasileira, há poucas semanas.
Dôra levantou a blusa para mostrar as marcas da tortura.
No exílio, a amnésia cobriu pouco a pouco sua mente durante o dia, enquanto a noite era cada vez mais assombrada pelos pesadelos. Em 1976, Dôra se jogou na frente de um trem na estação de Berlim.
Do que é feito o sorriso de Dôra?
As perguntas que nos movem
Busco na memória da infância algo sobre a ditadura militar. Nada. Quase nada. Uma palavra ronda a minha mente, dita por não sei quem, não sei quando: terroristas. Uma palavra perigosa. Eu já tinha idade para saber o que era o terror. Uma palavra perigosa sem contexto, solta no tempo e espaço.
Eu tinha 20 anos e estava na aula de astrologia (estudei, por alguns anos, esse olhar simbólico sobre o universo e as nossas experiências). Aparecida, a minha professora aquariana com ascendente em gêmeos, falava de Plutão. Ela tinha sido presa e torturada, mas eu não sabia, quase ninguém sabia. Na mitologia grega, Plutão é associado ao deus Hades. No mito sumeriano, antecessor do mito grego, à grande deusa Eresquigal. Contam os mitos que uma pessoa ao entrar em contato com a energia de Plutão, ou de Hades ou de Eresquigal, vivencia a perda de tudo que até então definia a sua identidade. Plutão, a morte, o inconsciente, os subterrâneos — e foi exatamente nessa hora, que a Aparecida falava sobre os subterrâneos, que de repente ela paralisou. O seu corpo tremeu, como se sentisse frio. As palavras irromperam.
Muitos anos depois, me deparei por acaso na internet com uma foto de uma guerrilheira morta. Ela estava nua, de olhos abertos.
Por que nua? Por que os olhos abertos? Por que morta?
O que o silêncio esconde
Busco informações sobre a fotografia e a guerrilheira. Ao mesmo tempo, pego Barthes na minha estante. Às vezes, leio-o como um oráculo. Toda foto é contingente, ele diz, ela só tomará sentido ao se tornar uma máscara. Olho de novo a imagem. Barthes, leitor de Italo Calvino, conta que máscara é a palavra que o escritor, no conto A aventura de um fotógrafo, usa para designar aquilo que faz de um rosto um produto de uma sociedade e de sua história. Numa matéria de jornal, leio que nada naquelas fotografias dos guerrilheiros mortos é “natural”, foram forjadas para parecer acidente, suicídio, ou uma morte comum, uma morte qualquer. Volto à foto. Tudo que não podemos ver está ali, em seu negativo, uma máscara ao avesso. Os olhos abertos, uma solidão monstruosa.
A escrita da perda
A partir desta foto, comecei a escrever o romance O corpo interminável. Um rapaz busca a história de sua mãe desaparecida na ditadura civil-militar brasileira. A mulher nua e morta de olhos abertos seria a sua mãe? Seria a mãe de outra pessoa? Seria mãe? Seria? Ele não encontra a história, encontra o desaparecimento. A palavra desaparecer é escrita várias vezes no decorrer das páginas, como se a repetição pudesse forjar a existência.
Desde a época da pedra e do pergaminho, a escrita sempre foi uma forma de lutar contra a fatalidade da perda, disse Roger Chartier. No meu romance, a perda, além de ser aquela provocada pelo esquecimento e pela ação do tempo, é também a provocada pelo silenciamento, pelo gesto bruto de apagamento da história de alguém, de um gênero, de uma etnia, de um país.
Mas se escrever é uma forma de lutar contra essa fatalidade da perda, como escrever quando essa fatalidade já aconteceu? O que escrever, diante do vazio?
As guerrilheiras voltaram para casa em silêncio?
Em 2011, na Comissão Nacional da Verdade, iniciativa do governo da presidenta Dilma Rousseff, guerrilheiros e guerrilheiras contaram suas histórias diante de muitas pessoas, inclusive militares. Algumas vezes, diante de seus torturadores. Ao ver algumas imagens pela TV, tive a sensação de presenciar o impossível. Hades e Eresquigal vindo à tona?
Cartas, diários, as guerrilheiras escreveram muito na prisão e no exílio. Submersas na experiência, a escrita criava uma espécie de tempo próprio, um tempo fora do tempo, um tempo íntimo, salvador. Mas e depois? A palavra escrita pública foi na maioria masculina. Sob esse olhar, as guerrilheiras eram namoradas, musas, fetiche sexual, raro ter algum registro da atuação política dessas mulheres, as suas ideologias e questionamentos.
Não à toa, os livros, relatos, entrevistas das guerrilheiras que encontrei, mais tarde, possuíam essa dupla consciência: de que contavam a história a partir do lugar de quem viveu uma experiência vital para a própria vida e para o país, e de que essa experiência tem sido duplamente silenciada.
A guerrilheira como personagem
Antonio Candido nos fala que as pessoas são por natureza misteriosas, inesperadas, e nunca poderemos acessar a totalidade de alguém, apenas fragmentos. Por isso, raramente olhamos alguém sem a consciência ou a desconfiança de que há mais do que vemos. Há sempre a suspeita de um universo inteiro invisível que anuncia de alguma forma a sua presença. E seriam esses os personagens construídos com maior profundidade.
Em sua conhecida classificação de personagens, Foster distingue os personagens “planos”, construídos a partir de uma única ideia ou qualidade, dos “esféricos”, que possuem dimensões e complexidades, “capazes de nos surpreender”.
Como um ciclo de eterno retorno, a minha mente sempre volta para o trecho do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, no qual o narrador diz que qualquer outro escritor poderia escrever aquela história, “mas teria que ser homem, porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”. E, dito isto, Clarice escreveu um dos livros mais perturbadores e complexos da nossa literatura.
A exaustão, o incômodo de ser vista como um personagem plano.
Não ser devorado é o sentimento mais perfeito
Em 1960, Clarice Lispector escreveu a frase acima no conto A menor mulher do mundo, que narra o encontro entre um pesquisador branco, europeu, e uma mulher negra, africana da tribo dos Likoualas, no Congo Central. Em 1550, Padre Manuel da Nóbrega disse em uma de suas cartas que os índios eram como o papel branco, onde tudo se podia escrever. Índios, foi assim que os portugueses nomearam os nativos desta terra, julgando que haviam chegado às índias. Décadas depois, os negros escravizados trazidos da África perdiam imediatamente seus nomes de origem, forçados a adotar o nome dado por seus senhores. Marcel Pretre, o explorador francês do conto de Clarice Lispector, olha para aquele ser “escura como um macaco” e a chama de “A Pequena Flor”.
Lembro de Foucault: nomear o outro é também um modo de o constituir, de o cercear.
De o devorar?
Volto ao conto: O explorador batizara a menor mulher do mundo “com uma delicadeza de sentimentos que sua esposa jamais o julgaria capaz”.
“Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida”, Clarice escreveu.
“Se escrever é uma forma de lutar contra essa fatalidade da perda, como escrever quando essa fatalidade já aconteceu? O que escrever, diante do vazio?”
Des-cobrimentos
Anistia. Palavra mais recorrente no Brasil desde o início do início. Nossa última anistia, a conhecida lei de 1979, perdoou igualmente guerrilheiros e militares, torturados e torturadores. Em nome da família, a anistia de 1945 perdoou todos aqueles que “foram contra as leis”, inclusive todos os crimes praticados pela polícia no Estado Novo.
Em 1895, Rui Barbosa disse, num de seus discursos, em relação aos crimes políticos cometidos nos primeiros anos da República, que “anistia é o mesmo que desmemoria”. Para ele, todos os crimes praticados sob o comando de Floriano Peixoto não só não deveriam ser esquecidos como punidos. O mesmo Rui Barbosa que, cumprindo ordens da Monarquia, mandou queimar documentos e registros do país de origem dos homens, mulheres e crianças escravizados e trazidos da África para o Brasil. Em nome da honra da pátria, foi a justificativa do abolicionista.
O incêndio ordenado por Rui Barbosa impede que um afrodescendente saiba o seu sobrenome e o seu país africano de origem.
O mundo não está à tona
Em 1971, a militante do POC, Lúcia Coelho, professora da faculdade de medicina da USP, foi presa e levada à sala de interrogatório. “O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra era o mais terrível, ela conta em seu depoimento, porque vinha com uma conversinha: minha filha, como é que você foi se meter numa coisa dessas, você é de boa família — e, de repente, inesperadamente, ele lançava uma bofetada.”
Outra militante, Amelinha Teles, do PCdoB, relata: “Ele levava meus filhos para uma sala, onde eu me encontrava na cadeira do dragão, nua, vomitada, urinada. Meus filhos tinham 5 e 4 anos. O que é isso?”.
Em abril de 2016, o atual presidente do Brasil exalta o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra em pleno congresso nacional, antes de dar o seu voto para afastar a então presidenta Dilma Rousseff do seu cargo. Dilma, como Lúcia e Amelinha, foi uma das militantes torturadas pessoalmente pelo coronel Ustra.
P.S.: A imagem de um buraco cavado na terra surge em minha mente diversas vezes durante a escrita do meu livro. A primeira associação foi com a toca do coelho de Alice, personagem do livro de Lewis Carroll, presente no meu romance de diversas formas. Só depois, durante a escrita, percebo: o buraco também era uma cova.
Nunca seremos gente sossegada
Natalia Ginzburg escreveu a frase acima no ensaio O filho do homem, um ano após o fim da Segunda Grande Guerra. Ginzburg perdeu o marido, torturado e assassinado pelo regime nazista, dois anos antes de escrever este texto. “Jamais se esquece a experiência do mal”, ela disse. “Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas.”
Para ela, para a sua geração de escritores, não se podia mais viver nem escrever negando a precariedade da vida, disfarçada sobre uma falsa aparência de solidez, assim como é falsa a ideia de que alguma forma a controlamos. “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos, e talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. […] Nós estamos perto da substância das coisas.”
Essa proximidade é tão necessária para a escrita quanto perigosa. Uma descida ao reino de Hades ou Eresquigal, sem a certeza de poder voltar, como Perséfone, para participar da época do plantio e da colheita.
(Perséfone, raptada por Hades, seu tio, e levada ao submundo à força, consegue voltar à superfície apenas seis meses ao ano, para ajudar Deméter, a sua mãe, deusa da agricultura.)
Escrever é uma pedra lançada no poço fundo
Escreveu Clarice Lispector no romance Um sopro de vida. Como Ginzburg, Lispector também chegou perto demais da substância das coisas. “Tenho medo de escrever, ela disse, é tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto, e o mundo não está à tona.”
P.S.: Vou encontrando, em meio ao processo criativo, outras referências à imagem do buraco cavado na terra. Agora Clarice diz que este buraco é um poço, e me ocorre que, as pedras lançadas ao fundo tanto podem se deparar com a terra seca como submergir na água subterrânea, mas também é da natureza do poço ir à tona e matar a sede e lavar as roupas. Alguma esperança de, como Perséfone, ser possível voltar à superfície com algo fecundo nas mãos.