Depois de, no século 19, Sílvio Romero e Capistrano de Abreu terem elogiado Joaquim Felício dos Santos, o autor de Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio foi banido para o purgatório da memória nacional, semelhante ao que ocorreu com João Francisco Lisboa — sobre quem escrevemos no Rascunho de agosto —, voltando a ganhar atenção nas escassas monografias que tratassem da história de Minas Gerais ou em poucos artigos, manuais e coletâneas. A cronologia das edições que o livro mereceu fala por si: após serem publicadas n’O Jequitinhonha — periódico de índole republicana, do qual o cronista era proprietário e praticamente único redator —, do início de 1861 a setembro de 1862, e reproduzidas por Quintino Bocaiuva no Diário do Rio de Janeiro, de março de 1861 a dezembro de 1862, os textos foram reunidos em volume no ano de 1868, conhecendo novas edições em 1924, 1956, 1976 e 1978. A penúltima, aliás, continua disponível nas livrarias, sinal do estrondoso interesse que a obra desperta.
A curiosidade dos leitores, no entanto, não é o melhor termômetro para se medir o valor de um livro, bem sabemos, e essa posição acanhada e decorosa no rol dos “mais vendidos” ajusta-se à pessoa de seu autor, definido por Alexandre Eulalio — o principal estudioso da obra de Joaquim Felício dos Santos no século 20 — como “introspectivo e ponderado” ou preso ao “retraimento” e à “timidez”.
Tais características não impediram o escritor, um liberal clássico, de participar da vida política, ainda que isso tenha representado para ele, em diferentes oportunidades, apenas decepção. Após uma derrota nas eleições à assembléia da província mineira em 1861, elegeu-se à Câmara dos Deputados para o período 1864-1866, legislatura que abandonaria logo nos primeiros meses, ao ver seu projeto de reforma constitucional para abolir a vitaliciedade dos senadores recebido com absoluta indiferença. Anos mais tarde, em 1890, seria eleito senador por Minas Gerais. Aclamado como presidente dos trabalhos que preparariam a Constituinte republicana, diz Alexandre Eulalio, “cabe-lhe regulamentar a nova lei eleitoral. Concluída esta, é, no entanto, considerada pouco oportuna naquele momento, dadas as garantias ‘excessivas’ que fazia cercar a expressão da opinião, inclusive por atribuir demasiada ênfase às medidas contra as fraudes eleitorais”. Nosso recalcitrante autor não havia aprendido que a política, no Brasil, não é o ambiente mais adequado a incorruptos e defensores da liberdade individual. Teimoso — Alexandre Eulalio o chama de “obsessivo” —, Joaquim Felício dos Santos reapresentaria, em 1891, o seu Projecto de Código Civil, texto que, desde os últimos anos do império, enfrentava a morosidade típica do legislativo brasileiro e, ainda segundo Eulalio, o ressentimento de Pedro II com “o republicano vermelho, que o atacara sempre com ardor”.
Este último comentário merece breve entreato. O comportamento do monarca se devia ao fato de Joaquim Felício dos Santos também escrever n’O Jequitinhonha textos de corrosiva sátira contra a política e a família imperiais, as Páginas de Historia do Brazil escriptas no Anno de 2000: publicadas de agosto de 1868 a setembro de 1872 no jornal, foram esquecidas até que Alexandre Eulalio reproduziu alguns excertos na Revista do Livro, em junho de 1957. Antes, Carlos de Laet, polêmico monarquista católico, já considerara as Páginas insultuosas, e seu autor, “um invasor de reputações”. Contudo, ao ler os trechos transcritos por Eulalio, que merecem ensaio à parte, descobrimos o quanto de sense of humour faltava a Pedro II.
Voltando ao Projecto, este seria tirado do esquecimento por Clóvis Beviláqua, que se inspirou, parcialmente, nos seus 2.692 artigos para preparar o famoso Projeto do Código Civil Brasileiro.
Usurpações
O ideal político de Joaquim Felício dos Santos pode ser encontrado no Memórias do Distrito Diamantino, cujos capítulos recuperam a história da região, começando pelos aventureiros que buscavam ouro e o conseqüente surgimento do Arraial do Tijuco, até chegar ao fim da chamada Demarcação Diamantina, em meados do século 19, concentrando-se na descoberta das pedras preciosas e sua extração febricitante.
Em momento algum o cronista se abstém de fazer críticas mordazes ao despotismo exercido pela Coroa portuguesa durante o período colonial e à maneira como os estados transformam a cobrança de impostos num ato de extorsão. Irônico, ele comemora a soma incalculável de diamantes que, no transcurso dos anos, foi vendida por contrabando: “É verdade”, pondera, “que esse capital foi extraviado do cofre da Nação, mas este é tão mesquinho em seus favores para os lugares distantes da capital, que naturalmente não se tem grande empenho em enchê-lo”.
Joaquim Felício dos Santos radiografa um país que nasce sob a égide do desrespeito à propriedade privada, no qual a tutela do Estado — no seu pior sentido, de sujeição vexatória — se sobrepõe às vontades individuais; e a definição do absolutismo, que o escritor colhe no História da fundação do Império Brasileiro, de J. M. Pereira da Silva, nos permite descobrir as raízes do Estado que, inclusive nos dias atuais, ousa se imiscuir em questões de foro íntimo, acreditando-se pai, mãe e mestre dos cidadãos: “O absolutismo folga de manifestar-se por regulamentar sobre tudo e a propósito de tudo. A sua pretensão à previsão de todos os incidentes e circunstâncias imposta a negação do livre-arbítrio, e aí funda ele a principal base do seu poder”.
Tal política se exacerba ao focalizarmos a relação metrópole-colônia — e, principalmente, quando na última se descobre ampla região diamantífera. A partir desse momento, o governo se torna “infatigável” em termos de proibições, diz nosso autor, editando bandos, ordens e portarias sem conta, a ponto de criar um enclave policial no interior da administração tirânica: “Pôs-se em execução tudo o que o gênio migalheiro do despotismo podia inventar, descendo aos mais minuciosos detalhes de prevenção”. Se quem ousava levar ouro para fora de Minas sofria uma dupla pena — confisco dos bens e degredo por dez anos —, quando os diamantes são descobertos a demarcação transforma aquelas terras num cisto no qual novos impostos surgem todos os dias, seguidos de regras cada vez mais severas, mais duras, de maneira a atender ao Estado insaciável. O controle incluía limitar os pontos e horários em que as escravas poderiam vender seus quitutes, proibir o uso de qualquer instrumento que permitisse o trabalho de minerar e, chegando a extremos, incentivar a delação, incluindo a dos escravos contra os senhores, pagando-se a esses denunciantes com ouro e alforria. As milícias detinham o poder de invadir residências a qualquer momento — e bastava, para decidir as penas, somente a suspeita do crime, pois os processos dispensavam provas. Era a plenitude do que Joaquim Felício dos Santos descreve com dramaticidade ao falar sobre o nascimento do Arraial do Tijuco, aos pés do morro de Santo Antônio:
Conta-se que no ponto mais culminante desta planura elevava-se outrora, no tempo do descobrimento do Tijuco, um magnífico e gigantesco coqueiro, que se avistava de longe balançando sua soberba ramagem no horizonte. Os índios davam-lhe uma idade fabulosa, e veneravam-no como uma árvore sagrada, debaixo de cuja sombra se reuniam os chefes guerreiros, quando tinham de tomar alguma deliberação importante. Obrigados a fugir ante os invasores de sua pátria, a sagrada palmeira caiu no poder destes, que a cortaram como objeto de superstição e idolatria, e no lugar plantaram um cruzeiro que tem sido renovado até nossos dias. Era com o sagrado símbolo da redenção, que o ávido português assinalava suas usurpações.
Em determinado ano, quando o volume de pedras extraídas supera as expectativas do mercado mundial, fazendo o preço do diamante despencar na Europa, a Coroa, inflexível, simplesmente ordena que a extração pare, condenando cerca de três mil mineradores e suas famílias a buscar trabalho em outras regiões. Diante da grave crise social que se instala, os administradores locais invocam um pouco de bom senso do Erário Real, mas recebem esta resposta:
Tornem esses moradores para as suas antigas habitações nas quatro comarcas das Minas. Vão fazer diligência para novos descobertos, com que enriqueçam a si e a pátria, como fizeram seus antepassados; pois todos os descobertos grandes foram feitos por homens de pouca força, que se aventuraram a procurar meios de se estabelecerem. Deixem repousar a demarcação diamantina, dando graças a um Soberano, que, em vez de lhes impor castigos mais severos, os manda livres a buscar melhor fortuna.
Tratava-se de um rei paternal, sem dúvida.
Joaquim Felício dos Santos nos relata esses fatos baseando-se em fontes primárias. Explica os inúmeros detalhes da tributação, mostra as formas encontradas para burlar a lei — exaltando, como veremos a seguir, os garimpeiros que conseguiam romper o controle da Coroa —, deplora abusos e injustiças, critica severamente o rei d. João V e os que o sucederam, analisa os poderes quase absolutos de certos burocratas, cita os viajantes que falam da região e, principalmente, liberta-se da frieza dos documentos, assumindo o papel de verdadeiro cronista, sensível a revelar as personalidades por trás da assinatura, do discurso, do ato de heroísmo. Jamais esconde sua emoção e pode, ao final de um relato acerca das perseguições contra garimpeiros, exclamar: “Quanto ainda os campos diamantinos alvejam com os ossos de nossos infelizes patrícios, testemunhando a bárbara tirania, que sobre nós pesou outrora!”.
Intérprete que não teme tomar partido, ao analisar a cobrança dos impostos indiretos contextualiza sua lição — mostrando como, em pleno Segundo Império, nada mudara — e assume um tom profético: “Quando imposições mesmo indiretas são excessivas, sem que os contribuintes tenham uma retribuição igual aos sacrifícios que fazem, a conseqüência é a elevação dos preços dos projetos tributados, o definhamento das indústrias, o desânimo, a miséria pública”. E ao lembrar a constante publicação de novas disposições, “sempre no sentido do arrocho, favoráveis ao Fisco e ampliativas das penas estabelecidas”, insiste:
Hoje dá-se o mesmo: há os regulamentos [grifo do autor], que só diferem em ser expressão moderna: é por eles que o poder executivo, quando quer, interpreta, amplia, restringe, modifica, altera, revoga as disposições legislativas, quebra-lhes as asperezas para se poderem executar, cria direitos novos, impõe obrigações que não existiam, enfim exerce as funções do legislador.
Fantasia e história
Mas questões políticas, ainda que tratadas de forma apaixonante, constituem somente uma parte do Memórias do Distrito Diamantino. Na verdade, há uma clara dívida do autor para com a ficção, gênero que não lhe era estranho, pois além das novelas e contos que publicou entre 1861 e 1873 nas páginas d’O Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos também escreveu peças de teatro e o romance Acayaca, lançado em folhetim no ano de 1862, depois no formato de livro em 1866 e, recentemente, reeditado pela PUC de Minas Gerais, sob os cuidados de Valéria Seabra de Miranda e Oscar Vieira da Silva.
A fantasia está presente no Memórias desde as páginas iniciais, quando o autor reconstrói, de maneira romântica, o clima de aventura enfrentado pelos primeiros exploradores que chegaram à região:
Onde se achavam? Era preciso sabê-lo para não perderem o rumo. Mas não traziam bússola, não possuíam relógio, não conheciam as estrelas: e para quê? Olhavam para o Itambé, que se assoberbava sobranceiro no horizonte, com seu pico sempre coroado de vapores, como o cone gigantesco de um vulcão extinto perfurando as nuvens: era o farol granítico dos viajantes, era o centro de um círculo de sessenta léguas de diâmetro, que podiam revolver sem receio de se extraviarem.
Na verdade, perpassa todo o livro certa tensão entre fantasia e história, definida por Alexandre Eulalio como uma “premência criativa ao mesmo tempo de ficcionista e repórter”. Assim, o empenho do autor não se concentrará apenas no resgate dos costumes — momentos nos quais prevalece o olhar do cronista que sabe identificar o fato curioso, inusitado —, mas também na reconstituição de personagens que, apesar de terem realmente existido, ganham indumentárias heróicas, permissivas, corruptas, arrogantes e, às vezes, anedóticas.
No espaço de duas páginas, demonstrando saber modular sua expressividade, ele pode conceder à narrativa um tom epopéico — “Eram homens ousados e intrépidos esses aventureiros (…); de vontade firme, pertinaz, inabalável. Cegos pela ambição, arrostavam os maiores perigos; não temiam o tempo, as estações, a chuva, a seca, o frio, o calor (…). Para eles não havia bosques impenetráveis, serras alcantiladas, rios caudalosos, precipícios, abismos insondáveis”; depois, contido, voltar à crônica histórica — “Era costume dos antigos levantarem um pelourinho, quando se fixavam em qualquer parte com intenção de fundar um arraial. Pelourinho é uma picota, que se levanta em lugar bem público, com uma argola de ferro presa no alto, onde se amarram os escravos para serem surrados. Desgraçadamente em muitas de nossas vilas e cidades ainda se ostenta em público esse sinal de barbaria da atualidade”; e finalmente tornar-se quase lírico: “O Largo do Bonfim era uma pequena e verdejante campina, sombreada por uma copada gameleira, onde à tarde costumavam se reunir os habitantes fatigados do trabalho do dia a espairecerem em uma inocente e folgazona palestra”.
O alto preço pago pelos moradores da Demarcação Diamantina, na forma de uma sobrecarga emocional constante, ressurge graças à composição detalhada e eloqüente:
Freqüentes vezes o povo do Tijuco ouviu sobressaltado o estridente rufar de uma caixa, que corria as ruas do Arraial: era um novo bando que se publicava, era mais alguma proibição, algum ônus com que se ia sobrecarregá-lo, novas medidas restritivas que se tomavam sobre o comércio e mineração: o povo já tremia quando ouvia a voz fúnebre do pregoeiro. Quando constava ter o Intendente recebido algum prego de Vila Rica, logo se conjeturava algum funesto acontecimento: era geral o terror.
E poucos parágrafos à frente, concluindo o panorama opressivo, ele nos oferece uma breve e asfixiante cena noturna: “Era assim que à noite as ruas do Tijuco tornavam-se melancólicas e silenciosas, como lúgubres galerias de um vasto cemitério: apenas se ouviam o tinir das armas e o andar compassado e monótono dos soldados que rondavam”.
Dentre as personagens escolhidas por Joaquim Felício dos Santos, talvez as mais famosas sejam o desembargador João Fernandes de Oliveira, “rico como um nababo”, e sua amante, a “mulata de baixo nascimento” Chica da Silva; mas não representam, com certeza, as melhores de suas figuras, conjunto do qual fazem parte o inflexível Rafael Pires Pardinho, intendente dos Diamantes, “já de idade de setenta anos, (…) probo, honrado, reto; mas cruel, desumano, cego instrumento das ordens da Corte, que não conhecia a compaixão”; o contratador Caldeira Brant, cuja longa história é quase um romance, e que, depois de amealhar fortuna e inimigos, preso em Lisboa à época do grande terremoto, vendo-se livre graças ao sismo, galga os destroços, alcança o terraço da prisão e, diante da cidade arruinada, grita: “— Ladrões! Restituí o dinheiro que me roubastes!”; e o intendente José Antônio de Meireles Freire — “conhecido geralmente por Cabeça de Ferro, apelido que lhe dera o povo pelo emperramento e obstinação de seu caráter” —, sobre quem nosso autor transcreve reveladora anedota:
Tendo ordenado o despejo de certo indivíduo, suspeito de contrabandista, na minuta, que entregou ao escrivão para passar o mandado, por engano escreveu o nome de outra pessoa.
O escrivão passou o mandado, mas na ocasião da execução reclamou, mostrando a equivocação que tinha havido.
“Execute-se o mandado, disse o Intendente, e lavre-se outro contra o criminoso.”
Assim foram ambos despejados.
Se a respeito de outro intendente, Luís Beltrão de Gouveia, cuja devassidão era excessiva, Joaquim Felício dos Santos se nega a relatar fatos curiosos, dá-nos um perfil extremamente vívido de João Inácio do Amaral Silveira, nomeado intendente no ano de 1795, “déspota execrado, se é que se pode censurá-lo como déspota no tempo do despotismo”, comenta, irônico. Semeando ódios a mancheias, quando finalmente a Coroa decide suspendê-lo de suas funções e ordenar-lhe que abandone o Distrito Diamantino, João Inácio e o fiscal João Cunha, seu braço direito, decidem partir de madrugada, a fim de evitar manifestações. Mas assim que
montaram a cavalo, houve um rebate, e em um momento apareceu um grande número de rapazes, que vinham apercebidos com violas destemperadas, cornetas de chifre de boi, bacias de arame, tachos rachados, flautas de taquara, chocalhos e outros instrumentos do mesmo gosto. Uma salva de bombões deu o sinal. Logo levantou-se uma infernal matinada de todos esses instrumentos, que despertou a população. João Inácio era homem de coragem, que sabia desprezar os insultos grosseiros: ia adiante, impávido, tranqüilo, atravessando as ruas do Tijuco com passo vagaroso. João da Cunha chorava. Com essa horrenda música o povo ia após cantando, ou antes gritando, uma histórica e antiqüíssima cantiga, muito conhecida, que começava por: O nosso Luís Teixeira, etc., de que mudavam o nome com aplicação a João Inácio:
O nosso João da Silveira,
Lê lê,
Lá vai pela barra fora,
Lá lá;
Em manguinhas de camisa,
Lê lê
Mete pernas, vai-se embora,
Lá, lá
Essa é uma das boas características de Joaquim Felício dos Santos: unir os contrastes, negando-se a dar uma visão plana de personalidades e circunstâncias. Seguindo a ordem cronológica dos contratos para extração dos diamantes, o cronista recupera a vida daquela comunidade — e chama a si mesmo não “historiador”, mas, sim, “memorialista”.
Ele afirma selecionar suas fontes de maneira criteriosa e diz ter refutado aquelas que considerou exageradas ou mentirosas; mas não obstante buscar o apoio de testemunhas longevas, que pudessem fornecer relatos fidedignos e imparciais, cultiva seus heróis. Surgem, dessa forma, os antagonistas da ordem, os garimpeiros, comprometidos em ludibriar a vigilância da Coroa: intrépidos, praticamente invencíveis, honrosos, o cronista os defende:
A julgarmos os garimpeiros pelos nomes de salteadores, escaladores e outros, que lhes prodigalizavam as autoridades, poderíamos ser levados a fazer uma idéia errada e injusta de seu caráter. Os garimpeiros eram homens pacíficos: só lhes poderia exprobrar a mineração clandestina; nunca assaltavam os viajantes nas estradas; respeitavam mesmo os comboios da Extração, cujo embargo ou tomadia poderia ser justificado como represália.
É o caso de João da Costa, que chega a vencer as milícias da Coroa e apoderar-se da região de Itacambiruçu. Por fim, traído, derrotado e preso, vemos o garimpeiro real, segundo a descrição que o cronista extrai dos autos: “(…) de estatura baixa e grossa, cabelo amarrado, cara redonda, olhos pardos, pouca barba e falto de dentes na frente”. Mas o que prevalece, algumas linhas adiante, é a lenda: “João da Costa foi processado, condenado e remetido para Vila Rica. Nada mais sabemos de certo a seu respeito. Diz a tradição que dois anos depois ele conseguira fugir da prisão, que viera ocultamente ao Tijuco, e uma noite matara ou mandara matar o carcereiro que o insultara durante sua prisão”. O mesmo se dará com as histórias de Inácio Martins e José Basílio de Sousa — este último, amigo de João da Costa, de vida mais que aventurosa, repleta de lances romanescos, cujo interrogatório é uma peça de divertido cinismo, na qual, questionado repetidas vezes sobre seus cúmplices, sabe apenas repetir que são pessoas anônimas, a maioria delas já morta. Condenado a dez anos de degredo em Angola, desapareceu. Finalmente, há Isidoro, chamado de “o mártir”, ex-escravo chefe de uma tropa de garimpeiros escravos, todos fugidos. Em meio a perseguições e feitos robinhoodianos, acaba preso e supliciado sob ordens do intendente Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt. Submetido a açoites sem conta, recebe Câmara em sua cela — e este, vendo-o à beira da morte, implora-lhe perdão.
A vida pulsa sob o olhar desse bairrista — “Quem mais ou menos não é bairrista? Não nego em mim esse sentimento”, ele afirma — que elevou os dramas locais à categoria do universal, aparentemente sem fazer concessões. Em certo trecho de sua narrativa, Joaquim Felício dos Santos pondera: “Das pessoas de que temos de falar neste escrito algumas ainda vivem, de outras há descendentes, parentes, amigos, ou conhecidos. Mas nada pretendemos ocultar nem desculpar: é o dever do narrador”. Pouco importa se confiamos ou não nessas palavras. Ao final da leitura, graças a esse polígrafo infelizmente esquecido temos um painel da região Diamantina entre os séculos 18 e 19, pois passamos a conhecer muitas das tradições que conformam o espírito da mineiridade. Além disso, uma parcela da história do país foi recuperada sob um olhar crítico, pleno de republicanismo; e toda a sociedade daquela época respira — escravos e senhores, aristocratas e a massa anônima, revoltosos e funcionários servis, déspotas e oprimidos ganham vida por meio da linguagem leve, plástica, mas cética e, principalmente, contestatória.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Alfredo d’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, e seu romance Inocência.