🔓 Angola, Brasil: entre laços e letras

As relações entre a literatura angolana e a literatura brasileira são factuais e, certamente, merecem uma maior divulgação junto do público dos dois países
Luandino Vieira, um dos principais nomes da literatura de Angola
06/12/2020

(07/12/20)

Esta é a minha primeira mukanda aos leitores do Rascunho. “Mukanda” é uma palavra quimbunda que significa “carta”. Portanto, esta é a minha primeira carta de Luanda, que passarei a escrever aqui quinzenalmente. Antecipo que, na verdade, poderei redigi-la e enviá-la de qualquer parte do mundo onde me encontre momentaneamente, nesta era globalizada em que vivemos, mas tudo farei para que o espírito caluanda esteja sempre presente nos textos que aqui serão publicados. Começo, como deve ser mister entre nós, angolanos e brasileiros, pedindo a bênção dos leitores. Na verdade, já nos conhecemos há séculos. Os angolanos foram os primeiros escravos africanos a ser levados, sistematicamente, para o território brasileiro, assim como os mais numerosos. Há uma porção fundamental de Angola dentro do Brasil, não apenas na cultura, desde a língua à música, à religião e à culinária, mas também no desenvolvimento económico, dos ciclos do café e da cana de açúcar à mineração. Quem quiser conhecer a contribuição dos angolanos para a formação económico-social e cultural do Brasil tem de ler a obra fundamental de Luiz Felipe de Alencastro: O trato dos viventes.

Mas também existe uma porção do Brasil dentro de Angola. Focarei neste texto as relações literárias entre os dois países, conhecidas por alguns especialistas, mas ignoradas do grande público, quer em Angola quer no Brasil.

Neste último, tal desconhecimento pode ser explicado pela histórica submissão das classes dominantes locais ao ponto de vista eurocêntrico, consolidado, pelo menos tendencialmente, pelo incremento do processo de americanização da sociedade brasileira, iniciado em meados do século 20.

Em Angola, a ignorância ou o preconceito relativamente aos profundos laços culturais com a sociedade brasileira resultam de dois fatores fundamentais, que resumo a seguir.

Primeiro, o equívoco de certos intelectuais que, no afã de valorizarem a tradição bantu, caem na armadilha identitária, adotando uma perspectiva fechada e etnocêntrica e ignorando as relações que, através do Atlântico, essa tradição estabeleceu com a realidade das américas, de norte a sul, contribuindo, aliás, para a sua própria configuração (ou seja, a verdadeira identidade bantu é aberta ao mundo).

Segundo, a influência do preconceito lusitano contra certas manifestações culturais brasileiras, a começar pela sua variante linguística, o qual tem encontrado eco, sobretudo, em representantes das classes médias angolanas. Devido a esse preconceito, alguns angolanos, como certos portugueses, questionam, por exemplo, o mérito das traduções brasileira e até – espantemo-nos – a qualidade das suas universidades.

A realidade histórica, contudo, é que as relações entre a literatura angolana e a literatura brasileira – tema que me interessa em particular nesta primeira mukanda aos leitores do Rascunho – são factuais e, certamente, merecem uma maior divulgação junto do público dos dois países, a começar pelo especializado ou apenas interessado.

Cito, a propósito, um trabalho académico que pode contribuir para um primeiro mapeamento geral das relações literárias entre o Brasil e não somente Angola, mas também os demais países africanos de língua portuguesa (Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe): o artigo O Brasil e a poesia africana de língua portuguesa, das professoras Vima Lia Martin, da Universidade de São Paulo (USP), e Anita Martins Rodrigues de Moraes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), publicado no 2º semestre de 2011 na revista Scripta, do Programa de Pós-Graduação da PUC Minas, volume 15, número 29.

Segundo as autoras, o artigo constitui um estudo sobre o diálogo da poesia dos países africanos de língua portuguesa com a história, a cultura e a literatura brasileiras. No que diz respeito a Angola, destaco a alusão das duas professoras brasileiras, à presença no Brasil, entre 1834 e 1844, do autor de Espontaneidades da minha alma, considerado o primeiro livro de poesia editado em África – o poeta angolano José da Silva Maia Ferreira – e, especialmente, a sua referência às relações entre alguns dos poemas desse livro inaugural da literatura angolana com a obra de Gonçalves Dias, incluindo o célebre poema Canção do exílio.

As duas especialistas reconhecem que o modernismo brasileiro e a literatura regionalista, produzida a partir dos anos 30, “deixaram marcas profundas na formação das modernas literaturas africanas de língua portuguesa”, devido, entre outros fatores, à sua “forte opção pelos excluídos” (como bem elas lembraram, nas antigas colónias africanas de Portugal, “a luta pela autonomia literária se deu paralelamente à organização e à luta pela autonomia política”).

Apenas a título de exemplo, são célebres estes versos do angolano Maurício Gomes, no seu poema Exortação, em que ele evoca Manuel Bandeira e Ribeiro Couto: – “Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,/ poetas do Brasil,/ do Brasil, nosso irmão/ disseram:/ ‘É preciso criar a poesia brasileira,/ de versos quentes, fortes, como o Brasil,/ sem macaquear a literatura lusíada’./ Angola grita pela minha voz/ pedindo a seus filhos nova poesia!”.

Os autores que contribuíram, nas décadas 50 e 60 do século passado, para a autonomia da literatura angolana moderna, como Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, Luandino Vieira e outros nunca o esconderam: o modernismo brasileiro e o romance nordestino, nomeadamente a obra de autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, influenciaram decisivamente, juntamente com o realismo social português, esse projeto. Posteriormente, outros autores, como Guimarães Rosa (de quem Luandino se diz tributário), Drummond, João Cabral e Rubem Fonseca exerceram igualmente e continuam a exercer clara influência em vários escritores angolanos.

É preciso escrever mais sobre isso, em ambos os países. E, sobretudo, é preciso entender que há um mercado adormecido para a literatura brasileira em África e para as literaturas africanas no Brasil, a começar pelos países que falam a nossa língua comum.

* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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