14.07.2009
Passei os dias de ontem e de hoje em Friburgo copiando trechos do meu diário entre 09.07.1980 e 08.07.1984. Transcrevi coisas para o “Quase-diário” no Rascunho e fiz uma lista de assuntos que poderia salvar para publicação ou posterior comentário.
É um mergulho no passado, num período rico, movimentado, auspicioso de minha vida, quando estava conquistando espaços na literatura e na vida nacional. Solicitações da imprensa, entrevistas, livros, reconhecimento nas ruas, na mídia. E uma natural alegria narcísea, sobretudo porque estava mesmo escrevendo sem reservas, para mim mesmo, querendo me expor para mim mesmo, pensando que anos depois, como agora, o que sentiria quando fosse reler isto? Então, poderia me ver no espelho cruamente, sem disfarces literários.
Aliás, não é um diário literário. Quem sabe fazer diário é Marina [Colasanti] que desde a adolescência anota sua vida, o que viu e pensou. São dezenas de cadernos. Já isto aqui, sobre ser esporádico, é telegráfico, não entro em detalhes, não cuido do estilo, não estou posando para ninguém, é mesmo “ao correr da pena”, como diziam os antigos.
Vejo uma diferença em relação a hoje. Trinta anos depois, estou de molho, saí do primeiro plano: da efervescência dos anos 70 (PUC/Ditadura), dos anos 80 (JB/poesia/TV), dos anos 90 (Biblioteca Nacional).
É tempo de repensar, de arredondar, de finalizar. Mais um pouco e não estarei aqui.
Agora em Friburgo, Marina está lá embaixo junto à lareira e à nossa Pixie, escrevendo seu livro de memórias. Sugeri-lhe um título: Minha guerra alheia. Conta sua vida na Eritréia, na Líbia e na Itália durante a guerra. Será um livro denso e magnífico.
Temos conversado muito e com muita naturalidade sobre o “depois”. Não decidimos ainda pragmaticamente o que fazer com nossas obras. Fundação? Deixar com as filhas? Ela tem noção também de que tem que arredondar sua obra. Assimilou isto, talvez, de conversas comigo, parece.
Olho as coisas sempre me despedindo. Meus poemas sobre morte e despedida dos últimos livros parecem ter dito o que eu deveria dizer. Não quero ficar repetindo.
Mas sinto que posso ainda fazer um livro de poesia. Talvez esse impasse social/ecológico em que estamos metidos, essa ameaça de apocalipse seja o núcleo desse livro, como antes tive a questão política e a questão literária.
A ver.
24.11.1990
Coisa desajeitada e estranha. Recebi carta de Guillermo Francovich com uma entrevista em espanhol em que é considerado o único filósofo boliviano. Ele estava entusiasmado com o poema Epitáfio para o século XX que publiquei no O Estado de S. Paulo, e queria conversar. Seu filho, que trabalha na agência Ansa, me ligou, depois me mandou correspondência com xerox do poema, que eu não havia visto.
Telefono para sua casa agora decidido, enfim, a falar com ele. Indago e um jovem, seu neto, responde: “Desculpe, mas ele não pode atender, acabou de morrer”.
Tinha 89 anos e ia fazer 90 em janeiro.
Revelo meu espanto, surpresa, ele me diz que o avô estava entusiasmado com meu texto, só falava nisto. E morreu.
17.11.2009
Dezenove anos depois releio isto no meu “quase-diário”, esquecido do que ocorreu, e espantado, como se tomasse conhecimento disto pela primeira vez. Resolvo abrir o Google, afinal já se passaram quase 20 anos: e lá tem uma porção de coisas sobre Guillermo: ele entre os intelectuais latino-americanos, como Leopoldo Zea, tentando redefinir este continente.
Como se estivesse saldando uma dívida, penso: deveria conhecê-lo melhor.
21.07.2009
Estou saindo do 17* Cole, em Campinas, no aeroporto. Feliz. Por várias razões: a homenagem, naturalmente, fez bem ao ego. No Ginásio da Unicamp onde deveriam estar umas 5 mil pessoas, projetadas em dois telões imagens dos homenageados: ars, Bartolomeu Campos de Queirós, Elias Jose e Haquira (?). O Jason Prado foi chamado para fazer a minha apresentação. Havia me perguntado nesses dias várias vezes o que queria que ele falasse, que fizesse sugestões, etc. E eu dizendo, quanto menos, melhor, e não leia o currículo, que é chatíssimo.
Ele teve a boa idéia de intercalar coisas e me surpreender. Entre os comentários que fazia, inseriu depoimentos de Eliana Yunes (representando a Biblioteca Nacional/Proler), de Julio Dinis, que atualmente dirige o departamento que dirigi na PUC nos anos 70; Marina e até Aécio Neves — o governador de Minas. Isto entremeado com leitura/declamação de poemas feitos por Maria Helena Ribeiro e Marília (da Biblioteca Nacional).
Quando Marina, pela segunda vez, apareceu no vídeo dizendo: “Amor, você merece mais do que ninguém essa homenagem e muitas outras”, quando ela ecoou aquela palavra “Amor” foi como uma batida de Beethoven, baixei a cabeça e chorei. E o auditório estremeceu. Aí, não tinha mais jeito.
Quando fui agradecer comecei dizendo: “Isto não é uma homenagem, é uma armadilha”… e limpei uma das lágrimas do rosto. E fui falando, ponderando que aquilo era uma homenagem a uma geração que ali estava, a geração que depois de Monteiro Lobato nos anos 20, de Mário de Andrade, nos anos 30, começou em torno dos anos 80 a redescobrir a leitura e modificar o país, com instrumentos como o Cole, que comemora 30 anos, e como o Proler/BN.
28.10.2009
Santiago do Chile. Terminou o Congresso Internacional de Poesia organizado pela Universidade Católica. Alívio. Aqui vim pelo Centro Cultura Brasil-Chile (Itamaraty), hospedei-me no Hotel Diego de Rivera.
Olha, ficar ouvindo poetas médios, medíocres ler seus poemas monotonamente é um porre. Puta que o pariu! Já passei por isto em Oaxaca, na Biblioteca de Coimbra, no Palácio Real, de Espanha na famosa “Velada de poesia”. Fiz tudo para sair desse ramerrão, conto estórias, a estória dos textos, fiz piada, enfim, algo para sair do clima de enterro e ladainha. Se essa coisa que ecoava é poesia, realmente o público tem razão. E até João Cabral, em sua lamúria contra a poesia sentimental. Se bem que se ele fosse lido aqui, ia ser um tédio também.
A apresentação oficial de Gonzalo Rojas, no auditório da Católica, foi imponente. Ele saiu-se bem fazendo ironias, acima do protocolo. Mas sua poesia não me parecia nenhuma Brastemp: muito palavrosa. Disse numa das apresentações que os chilenos ficam insistindo que Parra ou Rojas merecem o Nobel. Disse-lhes: vocês já têm dois Nobel (Mistral/Neruda), deixem o próximo para o Brasil. E lembrei-me de Borges: “Não me conceder o Nobel é uma velha tradição nórdica”.