Eu escrevo esta crônica e você a lê, mas já foi o contrário. Você já escreveu esta crônica e eu a li. As outras possibilidades também já aconteceram: seu pai já escreveu esta crônica e meu tio a leu, e vice-versa. Marco Polo já escreveu esta crônica e Marlon Brando a leu. Fidel Castro e Shakespeare idem. Todas as permutações que você conseguir imaginar já aconteceram, e vão acontecer de novo. Este texto já foi publicado em todos os jornais do mundo, em todos os idiomas.
Está achando tudo isso muito estranho? Você ainda não viu nada. Pegue os boletos bancários e vamos até aquela fila. Não existe lugar mais existencialista do que um alinhamento de zumbis cansados e entediados. Kierkegaard com certeza rascunhou mentalmente toda a sua doutrina numa fila em que também estavam, mais atrás, Heidegger e Sartre, acabrunhados, cada qual com sua pastinha azul recheada de contas. Porque, ah, é mesmo muito triste: a luz, o telefone, o condomínio e o seguro-saúde não perdoam nem os grandes pensadores.
Os relógios foram ficando lentos e viscosos. Todas as pessoas se moviam muito devagar, menos eu, e essa percepção fez crescer minha angústia. Todos os caixas estavam ocupados, eu estava na fila do banco havia dez minutos e já começava a pensar nessa grande questão filosófica de nosso tempo: o suicídio. Filas que não andam sempre me levam a essa possibilidade: acabar com meu sofrimento. “Decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”, afirmou Camus em O mito de Sísifo. Concordo com ele. Melhor dizendo, concordava. Lá, na pachorrenta fila do banco, eu percebi que existe uma questão mais desafiadora e angustiante do que a do suicídio. É a questão do tempo infinito.
A palavra infinito está em toda parte: na literatura, no céu estrelado, na sensação de desamparo diante da morte, nas relações afetivas, nas promessas de amor eterno, etc. Mas as pessoas não sabem realmente o que ela significa. Não é possível que saibam. Se soubessem, enlouqueceriam, pulariam do terraço mais alto, detonariam artefatos nucleares. Ainda bem que as portas de nossa percepção estão parcialmente fechadas, diferente do que William Blake e Jim Morrison queriam. Não sei se resistiríamos ao desvario se tudo aparecesse para nós tal como é: infinito.
Se você discorda, é porque não percebeu ainda o perigo desse conceito quase-numérico empregado em proposições matemáticas, filosóficas ou teológicas. Liberte-se de todo automatismo, de todo apego ao hábito, e raciocine comigo: o que é o tempo infinito? Vamos pensar no seguinte: um homem morre aos cento e dez anos. Ele não chegou mais perto do infinito do que um bebê que morreu duas horas depois de nascer. Pense então numa cidade, num planeta, numa estrela. Quanto tempo vive uma estrela? Uma galáxia? Bilhões de anos. Porém nenhuma delas chegou mais perto do infinito do que o pobre e inocente natimorto.
Matemática
Vamos pegar outro caminho, vamos pela trilha da matemática. Pense em um número absurdamente grande. Multiplique esse número por ele mesmo um quintilião de vezes. O resultado não estará mais próximo do infinito do que o número um. O maior número em que você conseguir pensar é quase zero, é quase nada, diante do infinito.
A morte é algo presenciável, é algo palpável, o infinito não. Acreditar em fantasmas ou em unicórnios cor-de-rosa invisíveis é mais sensato do que acreditar que, por exemplo, o tempo jamais terá fim. E no entanto é nisso que acreditamos: que nossa curta existência na face da Terra é só um ponto luminoso entre duas eternidades frias e escuras. Tanto faz olhar para o passado ou para o futuro: não tem fim. Agora vem a melhor parte, a conclusão lógica — e absolutamente estranha — desse pressuposto. Se acreditarmos que o tempo é infinito, em algum momento do passado nós já estivemos aqui, nesta mesma situação. Todos nós. Não apenas uma vez, mas infinitas vezes.
Está provado que a matéria do universo não é infinita, tampouco as possíveis combinações de todos os átomos existentes. No final da vida, era exatamente sobre isso que Nietzsche estava refletindo: sobre o mito do eterno retorno. O cosmo é circular. “Tudo já esteve aí inúmeras vezes, na medida em que a situação global de todas as forças sempre retorna.”
Não importa quanto tempo demore, afinal tempo é o que o cosmo tem de sobra. Uma vez que as possibilidades combinatórias são finitas, é lógico pensar que no passado nós já vivemos esta vida, e a viveremos novamente no futuro. “Todo o vir-a-ser se move na repetição de um número determinado de estados perfeitamente iguais. Esse curso circular não tem uma finalidade, ele é eterno e irracional.” Se Nietzsche estiver certo, precisaremos corrigir Heráclito, pois agora sabemos que é possível banhar-se muitas vezes no mesmo rio. Infinitas vezes. Mas a história não pára aí.
Nietzsche concentrou-se na repetição, no eterno retorno das mesmas situações. Uma intuição brilhante. Enlouquecedora. E o que acontece se a gente seguir em frente? Pense mais uma vez comigo: se o tempo é infinito e a matéria não, é legítimo imaginar que todas as incontáveis possibilidades combinatórias cedo ou tarde ocorrerão. Não importa quão fantásticas sejam, as combinações mais estapafúrdias já ocorreram infinitas vezes, e ocorrerão infinitas vezes. Platão e Einstein já freqüentaram o mesmo cibercafé. Brontossauros e nazistas já povoaram juntos o norte da África. Já existiram fantasmas e unicórnios cor-de-rosa. Já existiram planetas de gelatina e galáxias de iogurte. Deus talvez não exista hoje, mas já existiu. E voltará a existir um dia. Isso é mesmo possível? Será que piramos? Mas a premissa permite esse tipo de delirium tremens.
Paradoxos intransponíveis
É claro que aqui nos separamos de Nietzsche. Planetas de gelatina e galáxias de iogurte? Não. Ele jamais concordaria com nosso delírio. Para o pensador alemão, tudo já esteve aí inúmeras vezes, sim, mas isso não significa que todas as possibilidades imagináveis já se realizaram. Isso criaria paradoxos instransponíveis. Nunca ocorreu, por exemplo, o equilíbrio de todas as forças do universo: a paz eterna. “Se o equilíbrio de forças tivesse sido alcançado alguma vez, ele duraria até hoje; portanto nunca ocorreu.” Ou seja, “o número das possibilidades é maior do que o das efetividades”.
É o que a cosmologia contemporânea também afirma: podemos pensar em milhares de possibilidades de configurações de um universo, mas ao longo do tempo infinito apenas algumas realmente se concretizarão. Se mudarmos minimamente as leis físicas, os átomos podem não se formar ou a matéria pode se dispersar totalmente no espaço, impossibilitando a formação de galáxias, estrelas ou planetas.
Tudo bem, herr professor. Podemos continuar brincando com o conceito de infinito, mas sem sair dos limites da lógica e do bom senso. Podemos invocar, por exemplo, as divertidas aporias de Zenão de Eléia. A flecha jamais acertará o alvo e Aquiles jamais alcançará a tartaruga, pois uma infinidade de etapas os separa. Isso também significa que Kierkegaard, eu e os outros nunca chegaremos à boca do caixa.
Também podemos invocar o Feitiço do tempo (Groundhog Day). Essa comédia romântica dirigida por Harold Ramis e protagonizada por Bill Murray e Andie MacDowell brinca deliciosamente com o mito do eterno retorno. O personagem de Murray, meio canalha, fica subitamente prezo num único dia, que se repete e se repete e se repete. Para ele, todo dia é o festivo Dia da Marmota e todos ao seu redor fazem constantemente a mesma coisa. Apenas o personagem de Murray tem consciência disso. É o verdadeiro inferno de Sísifo. O perpétuo déjà vu.
Gosto tanto desse filme que, em sua homenagem, usei a mesma premissa em meu romance juvenil, Babel hotel. Esse fenômeno da repetição é chamado pelos americanos de time loop. A situação é muito simples: o tempo corre normalmente durante um determinado período (um dia ou algumas horas), então salta pra trás, de volta ao ponto inicial, como um disco de vinil riscado. E nada impede que esse fenômeno se repita ao infinito.
Mas devagar passamos do infinito para o tempo. Fomos de uma inquietação a outra igualmente terrível. É melhor recuar. Einstein dizia enfaticamente que o tempo é apenas uma ilusão: “A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão”. Na fila que não anda, refletir sobre as ilusões dos cinco sentidos é o caminho mais curto para o suicídio.