Seria exercício talvez interessante percorrer as páginas de Inferno, de Johan August Strindberg (1849-1912) buscando relações entre personagens da obra e figuras humanas reais. Alguns nomes saltariam aos olhos, como Edward Munch (o pintor de O grito) e Paul Gauguin. As duas edições disponíveis no Brasil, em demonstração inequívoca do apelo de tal exercício, acrescem ao texto notas que se desincumbem do trabalho de esclarecer tais relações, como a nota 1 da edição de 2009 (editora 34, tradução e prefácio de Ismael Cardim), ou a nota 4 da edição de 2010 (Hedra, tradução de Ivo Barroso). Transcrevo a primeira:
“N1: Referência à jornalista austríaca Frida Uhl, segunda esposa do autor, e à filha Kerstin (Christine), que nasceu em maio de 1894 e morava na Áustria com a avó materna. (N. da E.)”
Outro procedimento equivalente seria recortar aspectos técnicos da narrativa, tais como as delimitações espaciais e temporais e submetê-las igualmente ao crivo da verdade. Sob essa ótica, seria produtivo arrolar as incontáveis referências à mítica Paris que Benjamin cognominou “capital do século 19”. No texto, algumas ruas da cidade são referidas com minúcias e datas aparecem, eventualmente, em sua forma completa (“E faço minha entrada no Hotel Orfila a 21 de fevereiro de 1896” — Hedra). Há, por fim, construções narrativo-descritivas que parecem ainda mais fortemente ancoradas no que seria o referente biográfico:
Alguns dias depois de minha saída da Sorbonne, descubro perto da encruzilhada do cemitério um monumento fúnebre de beleza clássica. Um medalhão de mármore branco apresenta os traços nobres de um velho sábio que a inscrição do soclo me apresenta como Orfila, químico, toxicólogo. Era o amigo e protetor que mais tarde me guiaria tantas vezes pelo dédalo das operações químicas.
Uma semana mais tarde, descendo a rua d’Assas, detive-me diante de uma casa de aspecto claustral. Uma grande insígnia revelou-me a natureza da propriedade: Hotel Orfila.
Sempre Orfila! (Hedra)
A introdução, Em busca do ouro, de Ismael Cardim, evidencia um padrão de leitura que, tomando tais referentes por instrumento, neles fundamenta a compreensão do livro:
Mas é ainda na parte parisiense desta descida aos infernos que o leitor terá o prazer mórbido de visitar certos lugares santos da literatura, apresentados através de uma visão deformada pelo remorso e o medo. O guia é, há algum tempo, o mais notável escritor sueco, o único que conseguiu ingressar na Weltliteratur. Tem 47 anos, está passando por uma crise mental e acaba de renunciar à glória das letras em troca de uma viagem pelos subterrâneos do conhecimento.
Essa viagem começa no n.° 62 da Rue d’Assas. É o Hotel Orfila, que se tornaria mais tarde uma espécie de monumento do delírio strindberguiano, lugar magistralmente evocado por Henry Miller no seu Trópico de Câncer e consagrado pelo Guide Bleu de Paris. Foi nesse velho hotel que o autor de Senhorita Júlia, separado de sua segunda mulher e tendo cortado com todos os “ismos” de seu tempo (…), entregou-se às pesquisas “científicas” e alquímicas que culminariam na tentativa de fabricar ouro…
Não chega a ser surpreendente que se embaralhem categorias ficcionais e não ficcionais tais como o autor biográfico, detalhes verídicos de sua existência, aspectos ficcionais da obra ou até mesmo as impressões de Henry Miller. Nas linhas que antecedem a citação, Cardim se refere ao livro como “depoimento confessional” repleto de “impiedosa sinceridade” e “narrativa autêntica de uma crise espiritual e aventura mística”. Não seria, portanto, o que costumamos, no âmbito de um sistema de convenções cultural e historicamente partilhadas, designar como “literatura”. Linhas abaixo, o mesmo texto passa a ser “prato forte da literatura heterodoxa” e ainda, “sempre literatura, no melhor sentido da palavra”. Mais: Paris é referida com a expressão “cenário”, um cenário que teria a força de um “personagem”, no texto que seria, enfim, um “fascinante fragmento autobiográfico”. Entendeu?
A mesma edição se fecha com um texto de Pier Paolo Pasolini, publicado em 1973, que traz a seguinte síntese da obra:
O Inferno de Strindberg não é um livro, não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência. Por ser Strindberg um escritor, de vez em quando nos damos conta da qualidade lida-escrita dessa experiência, mas no seu conjunto ela tem a espessura e a desmesura formal e temporal própria dos fatos a serem vividos.
Tudo isso poderia ser atribuído ao fato de que este livro é um diário. E não resta dúvida de que o é. Strindberg revestiu-o — por hábito de escritor — com certa “ornamentação” literária (a divisão em “cantos” com vários subtítulos; os títulos dos capítulos que remetem a uma experiência religiosa de caráter pretensamente elevado, certa escansão rítmica das longas romanças medievais; e não pára aí, certas páginas são francamente literárias — e se trata de ótima literatura…
Algo esquizofrênico o argumento: o livro não é literatura a despeito dos recursos literários que bem emprega e é ótima literatura a despeito de se constituir, sem que paire dúvida a respeito, em uma obra de outro gênero: o diário. Os recursos técnicos que acusam a elaboração ficcional do texto são desconsiderados como “ornamentação” e mesmo a materialidade da obra é substituída por uma abstração: experiência. Se tratássemos da experiência literária, poderíamos observar que o texto é organizado por um conjunto de procedimentos que constituem uma unidade narrativa que, ainda que pretenda produzir o efeito de representação de um caso paranóico, o faz pela elaboração de um todo dotado de coerência interna e de ordenação lógica, ausentes em “fatos vividos”.
Dantesco
Assim, temos um livro escrito em francês, por um sueco, com um título em italiano, claramente dantesco: Inferno. O livro apresenta capítulos intitulados sugestivamente Inferno, Beatriz, Swedenborg, formando conjunto com aquelas denominadas Excertos do diário de um condenado ou Atribulações. A reflexão talvez possa ser iluminada pelo capítulo Purgatório, em que se descreve o mencionado Hotel Orfila:
No dia seguinte, descubro que o banheiro está situado na ruela bem abaixo de minha janela, tão próximo que podia ouvir o mecanismo da descarga. Em seguida descubro que as duas clarabóias em frente pertencem a outros tantos banheiros. Em seguida, que todas as cem janelinhas do fundo do vale fazem parte de tantos outros banheiros situados em frente a uma série de casas.
(…) Se já conhecesse Swedenborg a essa época, teria compreendido que estava condenado pelas potências ao inferno excremental. (Hedra)
Não passe sem nota que a primeira descrição do Hotel não continha as conotações excrementais que, no capítulo 4, chegam ao ponto de a refeição do personagem ser depositada sobre um criado-mudo que abrigava seu urinol. No capítulo 10, intitulado Swedenborg, temos esclarecimentos:
Eis como Swedenborg descreve o inferno: a alma penada instala-se num palácio maravilhoso, onde leva vida agradável, acreditando-se pertencer ao número dos eleitos. Pouco a pouco as delícias começam a desfazer-se, a desaparecer, e a infeliz percebe que está encerrada num miserável casebre rodeado de excremento.
(…) Histórias assim, e outras piores ainda, reforçam a minha convicção de que este país é um lugar predestinado às penitências, e que existe uma correspondência misteriosa entre ele e os lugares que Swedenborg pintou como sendo o inferno. Teria visitado esta parte da baixa Áustria e, à semelhança de Dante, que pintou o Inferno na região que se estende ao sul de Nápoles, teria pintado o inferno ao natural? (Hedra)
Qualquer leitor familiarizado com procedimentos literários perceberá (guiando-se pelas citações que escolhi, ou seja, por um recorte que buscou selecionar um sentido no conjunto daqueles possibilitados pelo texto) a relevância do primeiro trecho para a compreensão da obra em questão. O segundo trecho parece evidenciar algo bem anotado por Cristovão Tezza, em conferência de 2008: “Enfim, vista da perspectiva técnica, a literatura é o exercício de um plágio formal de gêneros já solidamente constituídos na vida real da linguagem”. A conferência (Literatura e biografia) encontra-se disponível no site no escritor e trata, precisamente, dos limites que separam o biográfico e o ficcional.
A ignorância de tais limites é menos inócua do que possa parecer à primeira vista. É sua desconsideração que leva a conclusões como as presentes no texto de Pasolini, que explicita, sem meias palavras, sua comiseração pela pessoa biográfica de Strindberg (“a loucura de Strindberg está aí, in fieri, diante de nossos olhos, nua e horrível”), bem como seu desprezo por Inferno (“….a experiência religiosa de que fala possui a miséria, a mesquinhez e a vulgaridade que caracterizam os sintomas clínicos da leitura. Não se consegue, nem por um momento, levá-la a sério; só dá pena.”)
Por esse aspecto parece mais coerente a edição da Hedra, que, na introdução de Leon Rabelo, assim aborda o problema:
A esse respeito, já se questionou bastante o grau de veracidade da narrativa Inferno. Vários biógrafos, baseados na correspondência de Strindberg e em relatos de pessoas próximas na época, lembram que a sua estadia parisiense foi bem menos turbulenta do que o quadro pintado em Inferno. Mesmo se reconhecendo que Strindberg tenha passado por surtos psicóticos verdadeiros nessa fase, levanta-se que essas crises não foram nem tão impactantes, nem tão duradouras a ponto de desestruturarem a vida do autor tanto quanto ele nos faz crer em sua narrativa. Olof Lagercrantz, a esse respeito, chega a formular a hipótese de uma clara separação entre “o autor da narrativa” e a “vítima dos surtos”, lembrando a separação que Dante Alighieri faz entre ele mesmo, enquanto indivíduo, e a sua persona literária, que desce aos infernos.
Como afirmou Tezza no texto mencionado, “a rigor, não há praticamente autor nenhum que em algum momento não tenha usado literariamente elementos reais de sua própria vida, com mais ou menos exatidão factual”. O que não elimina as possibilidades que o ficcional abre em relação à verdade factual. Uma compreensão não preconcebida da vida intelectual do final do século 19 passaria necessariamente pela compreensão da relevância do misticismo de Swedenborg, precisamente com a força com que se encena na narrativa Inferno.
Pelo menos um aspecto técnico da escrita de Strindberg pode ser evocado a partir de suas relações biográficas com Munch: a proximidade com as tendências expressionistas, perceptíveis no recurso à distorção e ao exagero expressivo, no emprego de tonalidades enérgicas e afastadas do mimético, como poderíamos observar, também, em O Ateneu, de Raul Pompéia. Em carta de 1887, Émile Zola censurava o rumo que tomava a produção dramática de Strindberg: ao naturalista parecia faltar realidade àqueles escritos. A voz torturada e incandescente do narrador Strindberg, criado pelo escritor Strindberg, em Inferno, teria certamente aborrecido a Zola. Talvez mais do que aborreceu a Pasolini.