Dezembro finalmente chegou e, junto com ele, o justificado temor pela persistĂŞncia em 2021 de duas grandes brutalidades que castigaram o paĂs durante esse malfadado ano: a crise sanitária internacional e o flagelo polĂtico nacional. O mundo do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas de acesso pĂşblico vivenciou este duro cenário brasileiro com resiliĂŞncia, mas tambĂ©m sem avançar na superação dos seus impasses mais importantes.
Se um dos principais problemas do mundo contemporâneo Ă© justamente o da inteligibilidade, como reflete o filĂłsofo espanhol Daniel Innerarity, compreender o que passamos em 2020 enquanto paĂs Ă© um esforço que sĂł terá ĂŞxito se for coletivo e multidisciplinar.
As milhares de mortes e de infectados pela Covid-19 desnudaram as mazelas da nação brasileira, para nosso desespero e vergonha. As muitas versões que temos sobre a crise sanitária trazem contradições e possibilidades de leituras diversas, mas inequivocamente convergem para um paradoxo apontado pelo mesmo Innerarity em seu livro Pandemocracia (2020): se o vĂrus Ă© um risco igual para todos, ele revela, ao mesmo tempo, as nossas desigualdades enquanto seres humanos e, alĂ©m disso, provoca outras desigualdades e ainda põe em risco a democracia. Infelizmente, para a humanidade, este raciocĂnio nĂŁo se aplica somente ao Brasil, embora nos atinja no peito.
Se admitimos esse paradoxo, a leitura do mundo certamente passa a ser mais complexa do que as grotescas análises dos nossos elementares governantes fundamentalistas. Ao contrário, as dificuldades se agigantam para compreender, gerir e vivenciar este mundo novo. Como afirmou Innerarity em debate recente no seminário Leer Iberoamerica Lee (https://leeriberoamericalee.com/): viver um mundo complexo Ă© viver em interação com outros fatores e outros mundos mĂşltiplos onde a intransparĂŞncia surge fatalmente. Nesta intransparĂŞncia, eu acrescento, navegam os autocratas e os candidatos a tiranos. Se a complexidade do mundo nos for ocultada intencionalmente pela vontade dos governantes, a leitura de nossos impasses e a busca de soluções para superá-los se transforma em um cĂrculo labirĂntico sem saĂdas.
Romper esse cĂrculo infernal Ă© uma decisĂŁo civilizatĂłria, racional, corajosa e imperativa para a manutenção de um estado democrático e o enfrentamento de todos os nossos problemas, crises e impasses enquanto nação. Em consequĂŞncia, a centralidade do exercĂcio da polĂtica compromissada aos interesses da maioria da população se impõe como uma ação permanente e necessária ao desmantelamento das obscuridades, das sombras das intransparĂŞncias, e da construção de leituras que deem conta dos desafios da atual complexidade do mundo.
Este raciocĂnio nĂŁo se aplica somente Ă s altas decisões da polĂtica geral de nossos paĂses, mas incide verticalmente no conjunto de todas as polĂticas pĂşblicas setoriais, principalmente naquelas que demandam maior zelo civil, as que nos garantem direitos e cidadania. Entre elas, o direito Ă leitura para todos desponta, ao lado de outros direitos básicos e vitais Ă humanidade.
Apesar da força dos argumentos que vĂŞm dos clássicos da filosofia polĂtica e de pensadores importantes da contemporaneidade, resistimos bravamente em incorporar a centralidade da polĂtica nas nossas intermináveis lutas pelo direito Ă leitura. SĂŁo raros os nĂşcleos do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas que relacionam seus diversos problemas com uma visĂŁo mais ampla da situação polĂtica do paĂs e das intersecções de suas questões especĂficas com a polĂtica pĂşblica que está sendo aplicada na cultura e na educação.
Ă€s vezes, quando esta preocupação polĂtica existe, ela Ă© acondicionada a interesses especĂficos e setoriais, ficando distante de uma leitura polĂtica das causas que originaram a questĂŁo em litĂgio e impossibilitando estratĂ©gias de longo prazo que deveriam prever, prevenir, antecipar e tomar medidas unĂssonas contra ações que vĂŞm de governos contrários Ă literatura e Ă leitura. Examinemos, como exemplo, o que ocorreu com os programas nacionais do livro didático e o da biblioteca escolar, PNLD e PNBE.
O PNBE foi extinto em 2017 no governo Temer, interrompendo um ciclo de abastecimento de obras literárias fundamentais, selecionadas por critĂ©rios que se aperfeiçoaram ano a ano, contemplando os autores e a bibliodiversidade brasileira e distribuindo Ă s escolas 230 milhões de exemplares de livros de literatura entre os anos 2000 e 2014. A reação das representações corporativas das editoras Ă extinção conquistou uma alternativa de continuidade de compras de obras literárias e, em 2018, surgiu o PNLD Literário. Resolvida parcialmente a questĂŁo econĂ´mica do elo produtivo da grande cadeia da leitura, os debates se acalmaram e sequer arranharam o verdadeiro fator polĂtico e motivador da extinção do PNBE, ou seja, a polĂtica deliberada dos novos mandatários que, aprofundada violentamente no governo Bolsonaro a partir de 2019, iniciaram o desmantelamento da educação pĂşblica no Brasil que conhecemos desde 1995.
Ou seja, a ação de desprover a leitura literária em todos os nĂveis da educação, transformando-a em um apĂŞndice para uma alfabetização funcional, que Ă© o que o atual MEC propõe, abre caminho para criação de barreiras Ă criatividade e Ă capacitação de mentalidades crĂticas em nossos estudantes. Se essa Ă© a decisĂŁo de polĂtica pĂşblica do governo federal, ela se desdobrará em outras ações igualmente danosas. Para uma polĂtica danosa de governo, se requer o contrapeso polĂtico da sociedade.
Para se construir uma ação estratĂ©gica Ă altura de toda a cadeia, a extinção do PNBE deveria ser compreendida em sua real dimensĂŁo polĂtica, inserida que está nas várias ações que visam a destruição de um sistema educacional nos moldes do Plano Nacional de Educação, PNE, aprovado pela Lei 13.005/2014, onde lemos:
Consolidar um sistema educacional capaz de concretizar o direito Ă educação em sua integralidade, dissolvendo as barreiras para o acesso e a permanĂŞncia, reduzindo as desigualdades, promovendo os direitos humanos e garantindo a formação para o trabalho e para o exercĂcio autĂ´nomo da cidadania.
NĂŁo foi por acaso que o MEC atacou novamente em agosto deste ano os autores e as editoras brasileiras, utilizando a mesma linha mestra de desmantelar as linhas referenciais do PNE. Refiro-me ao programa de “literacia familiar” “Conta pra mim”, que foi idealizado a partir de consultoria internacional, apesar do excepcional acĂşmulo de especialistas que temos na área, e igualmente desprezou a reconhecida autoria brasileira e a grande capacidade criativa editorial do paĂs. Dessangradas as narrativas dos livros editados pelo programa, como escreveu a grande Marina Colasanti, eles sĂŁo mais um instrumento para tornar terra arrasada do que promoção dos direitos humanos e da autonomia cidadĂŁ.
Se a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2020 mostrou um paĂs que está perdendo leitores, Ă© fundamental que as análises nĂŁo se prendam a fatores menores que encontram explicações para as perdas em concorrĂŞncias pontuais, como a internet. Embora verdadeiras — e seja necessário seu entendimento —, essas concorrĂŞncias pontuais nĂŁo sĂŁo a principal causa de mantermos durante anos e anos metade do Brasil sem acesso Ă leitura.
Encarar a complexa realidade que impede o crescimento do livro e da leitura no Brasil nĂŁo Ă© uma questĂŁo somente de compreensĂŁo, mas requer ação polĂtica conjunta de todos, como fizemos quando construĂmos o Plano Nacional do Livro e Leitura. Se quisermos avançar em 2021, será preciso que todos os elos da cadeia se unam pela implantação da Lei 13696/2018 que todos construĂmos. Compreender a polĂtica Ă© uma questĂŁo que transcende o acadĂŞmico porque sua compreensĂŁo requer ações que podem transformá-la. Que a brutalidade sofrida em 2020 se transforme em ações de entendimento e unidade pela PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita em 2021.