Tratei na última coluna do subgênero dramático do sketch político, tal como concebido por Plínio Marcos. Examinei então o primeiro dos cinco sketches que ele escreveu, Verde que te quero verde, que foi peça integrante da Primeira Feira Paulista de Opinião, uma produção do Teatro Arena, em 1968. Escrevo agora sobre Ai, que saudade da saúva, de 1978.
O título irônico, em que uma lembrança ruim parece até boa diante da desgraça do presente, refere a célebre frase do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, quando de suas viagens pelo Brasil, entre 1816 e 1822: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. O diagnóstico positivista — e não apenas agrícola, mas médico-higienista —, eleva a “peste” que atingia a lavoura ao estatuto de principal entrave ao desenvolvimento global do Brasil. Como tal, foi glosado inúmeras vezes, tanto em registros eruditos (Triste fim de Policarpo Quaresma, Macunaíma), como populares (foi, por exemplo, o tema do enredo da escola de samba São Clemente, em 1986).
Nessa altura da sua carreira, com várias peças proibidas, Plínio Marcos descreve-se como um “ex-autor teatral”, e publica o texto de Ai, que saudade da saúva, em dezembro de 1978, no jornal Movimento, que, como se sabe, forma, ao lado de Pasquim e de Opinião, do qual é uma dissidência, a trinca mais popular de jornais “nanicos” a atuar na resistência à ditadura militar.
Desta vez, o sketch de Plínio Marcos criticava o desmatamento da Amazônia e as invasões de terras indígenas, dando-as como resultado deliberado de negociatas do governo militar, políticos e empresários brasileiros com multinacionais a atuar no setor madeireiro. O contrabando de madeira era apenas uma face da ação predatória na Amazônia: no sketch, Plínio denuncia também o contrabando de areia monazítica, rica em urânio, utilizada na produção de armas nucleares, e o uso da floresta como depósito clandestino de “lixo atômico” de potências estrangeiras.
Como de costume, a peça é econômica em personagens. Apenas duas: Patriotão, descrito como um “executivo brasileiro”, e Mister, de maneira igualmente genérica, como um “estrangeiro” — que, entretanto, já pelo apelido, é identificado como norte-americano. Estão a discutir, numa “embaixada estrangeira em Brasília”, um “plano” elaborado por políticos e empresários brasileiros para retirar os índios da floresta, uma vez que a presença deles atrapalhava a exploração da riqueza da região, seja pela resistência direta que promoviam, seja por atrair a atenção de diversos segmentos institucionais — Universidade, Igreja, órgãos internacionais ligados a questões de Direitos Humanos, etc. — que agiam a favor deles.
Segundo explica maquiavelicamente Patriotão, o grande trunfo desse novo plano de venda da Amazônia era o de que, desta vez, ele vinha blindado contra a ação desses grupos de “comunistas” intrometidos, por meio de um projeto de lei a respeito da “emancipação do índio”, que à primeira vista pareceria simpático a ele.
De fato, ao referir tal plano, o sketch de Plínio colocava na berlinda o projeto que fora gestado no Ministério do Interior do governo militar e para o qual se esperava a sanção da Presidência da República naquele mesmo ano de 1978. Trata-se, portanto, de uma peça de intervenção direta na realidade brasileira que estava sendo gestada naquele momento. A “emancipação” falaciosa, que tornaria o indígena responsável por seus atos perante a lei, já vinha sendo preparada há algum tempo pelo Ministério e estava mesmo prevista no Estatuto do Índio, definido por lei em 1973, faltando apenas a sua regulamentação.
Havia, entretanto, uma novidade insidiosa no projeto de 1978: pela primeira vez, junto com a emancipação, as terras indígenas seriam consideradas propriedades privadas, o que possibilitava que fossem vendidas como quaisquer outros bens particulares de cidadãos brasileiros. Obviamente, temia-se que a privatização levasse ao recrudescimento de atos de coação contra os indígenas e, enfim, à perda de suas terras, o que causou grande grita entre entidades de Direitos Humanos e organizações científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Assim, com sua aparência falsamente benévola, o “plano de Patriotão” é tratado pelo sketch como sendo análogo ao que “Princesa Isabel fez com o crioulo”, isto é, obrigando o negro livre a se transformar em “mão de obra barata” e mandando-o à prisão caso não tivesse “carteira de trabalho assinada por empregador”. É preciso acrescentar que o plano ainda incorporava detalhes da Lei de Segurança Nacional, de março de 1967, que facultava ao Estado uma série de ações repressivas com o argumento de defesa contra um suposto “inimigo interno”. Nesse contexto de falcatruas, a ideia de Patriotão era compor, portanto, um pacote atraente para os investidores estrangeiros, pois reunia, por assim dizer, de uma papelada só, comércio ilegal, tráfico de influência e política repressiva. Claro que Patriotão não o entregaria ao Mister sem garantir a sua propina no negócio (“E o meu, como é que fica?”).
Patriotão contava ainda com um trunfo final para embalar o pacote amazônico que apresentava ao Mister: a ideia de produzir uma telenovela, cuja história fosse uma propaganda do projeto de emancipação indígena. E isso se faria de tal modo que desse a impressão de que, uma vez emancipado, o índio teria logo direito a entrar na faculdade, ter “cultura erudita” e namorar “moça bonita”, ou seja, “vencer na vida”.
A referência de Plínio, nesse caso, não era genérica, mas bastante direta e explícita, quanto mais ao afirmar que se essa “novela muito burra” não fosse aceita pela TV Globo, certamente o seria pela TV Tupi, que se encontrava então em vias de falência. Um eventual empréstimo salvador não viria sem a prestação daquele serviço estratégico. Pois ocorre que, desde novembro de 1978 e até o final de abril do ano seguinte, a TV Tupi estava levando ao ar a novela Aritana, escrita por Ivani Ribeiro, tendo Carlos Alberto Ricceli no papel título, supostamente inspirado no cacique Aritana Yawalapiti, e ainda Bruna Lombardi como a veterinária branca por quem ele se apaixona e é correspondido.
Quer dizer, sem meias palavras, o sketch de Plínio acusava o papel subserviente a que se prestava a televisão brasileira e, particularmente, o gênero da telenovela, em relação aos interesses mais venais e obscurantistas da ditadura. Nessa dura interpretação do papel da novela e da TV, há também uma variante da autocrítica da classe teatral que Plínio faz em Verde que te quero verde, mencionada na coluna anterior. Considerando a adesão dos artistas à novela, a que ele mesmo não havia sido indiferente — ao trabalhar, por exemplo, em Beto Rockfeller, que foi um dos mais extraordinários sucessos da TV brasileira —, o sketch de Plínio apontava a iminente capitulação da força catalizadora do teatro como resistência à ditadura. Doravante, entregue à televisão comercial e à lógica da dependência implicada nas concessões estatais, a dramaturgia corria o risco de reduzir-se a um papel tão socialmente degradado como artisticamente medíocre.