🔓 A eterna busca da democracia

O cientista político Sérgio Abranches fala sobre seu mais recente livro, “O tempo dos governantes incidentais”, em que analisa a ascensão e queda da extrema direita no mundo
Sérgio Abranches, autor de “O tempo dos governantes incidentais”
19/11/2020

Isolado desde 16 de março na casa onde vive com a esposa, no Rio de Janeiro, devido à Covid-19, o cientista político Sérgio Abranches, de 71 anos, começou as conversas para esta entrevista no início de novembro, quando a eleição presidencial nos Estados Unidos ainda estava indefinida.

Já com o resultado, Abranches, que não desgrudou da TV e da internet acompanhando o pleito em tempo real, comentou os desdobramentos da derrota do republicano Donald Trump e os primeiros impactos da eleição de Joe Biden para o comércio e a diplomacia brasileira — como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro ainda não reconheceu Biden como presidente eleito.

Mas o assunto principal das trocas de e-mail foi O tempo dos governantes incidentais, mais recente livro do cientista político, lançado em agosto deste ano pela Companhia das Letras.

Nos ensaios do livro, entre outros assuntos, ele trata de líderes que chegaram ao poder por força de circunstâncias atípicas, entre eles o próprio Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, primeiro-ministro britânico. Na sua avaliação, eles não devem durar muito no poder porque “a democracia é resistente”. “São dinossauros assombrando o mundo antes de serem extintos”, diz.

Durante o período de pandemia, Abranches tem dividido o tempo entre peças de teatro online, aulas inaugurais e palestras. Também tem lido muitos romances. O verão tardio, de Luiz Ruffato, A tensão superficial do tempo, de Cristovão Tezza, O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, e O avesso da pele, de Jefferson Tenório, foram algumas de suas leituras recentes. Livros que classifica como “de primeiríssima qualidade”.

Autor de ensaios importantes para o tempo presente, como A era do imprevisto e Presidencialismo de coalização, o cientista político também é autor de romances. E neste ano, foi um dos curadores da Fliraxá (Festival Literário de Araxá), que ocorreu de forma online.

• Embora o último tema de O tempo dos governantes incidentais seja a pandemia do novo coronavírus, o trabalho não parece ter sido pensando para este ano de pandemia. A ideia é uma reflexão sobre o que a democracia tem passado principalmente nestes últimos anos em locais como Brasil, Estados Unidos e Rússia. De qualquer forma, são reflexões que calharam de ter sido publicadas em meio à Covid-19.
Exatamente, o livro é resultado de uma reflexão de alguns anos, que começou a aparecer em artigos para o Blog do Matheus Leitão, então no G1. Agora ele é colunista de Veja. Entreguei o livro à Companhia das Letras antes da pandemia. Com o impacto inicial que o isolamento teve sobre as editoras, o lançamento atrasou e pedi para fazer atualizações e um post scriptum sobre a pandemia, pois já sabia que ele só sairia por volta de junho deste ano. Este interregno me permitiu verificar, por exemplo, que os governantes incidentais foram os que lidaram pior com a epidemia e foram responsáveis por mais mortes, por omissão, irresponsabilidade e negação da ciência. Os destaques mórbidos foram Donald Trump e Jair Bolsonaro, com o Boris Johnson em segundo plano.

• E como analisa este ano atípico?
Este 2020 é um ano interrompido. Vários processos que estavam em curso sofreram um corte ou uma parada abrupta com a chegada inesperada da pandemia. Estou falando de uma parada global, com consequências diferenciadas localmente. Aqui, reconfigurou a polarização e isolou Bolsonaro. Nas eleições municipais, não houve espaço para o presidente, nem para a polarização que ele provoca. Isso tem muito a ver com o fato de serem eleições municipais. Elas sempre foram muito diferentes das nacionais. Nas municipais, o eleitor pensa com uma cabeça de morador, é um pleito hiperlocal; e com outra cabeça, com preocupações e preferências distintas. Nas presidenciais, que focam os problemas comuns do Brasil, é um pleito nacional, centrado na economia, principalmente. Na minha visão, 2020 encerra a transição do século 20 para o século 21. Estamos vivendo problemas novos, que não estavam no horizonte do previsível, no século passado, nem nas primeiras décadas deste século, que continuaram enredadas com problemas herdados do anterior. Agora, teremos que construir um mundo novo. Que seja mais seguro. O longo isolamento social acelerou várias tendências da grande transição estrutural global que analisei no meu livro A era do imprevisto e em O tempo dos governantes incidentais. A ciberesfera se expandiu para todas as atividades. Redescobrimos usos mais afetivos e mais construtivos para as redes digitais. Habituamo-nos aos encontros online. Vemos — e fazemos — lives quase todo dia. Reaprendemos o prazer da leitura. Aumentou a venda de livros. O comércio online se expandiu. A cooperação científica global se estreitou. A pesquisa e desenvolvimento de testes, vacinas e medicamentos foi acelerada. Compulsoriamente isolados, ficamos mais cosmopolitas e mais globais.

• O senhor escreve que governantes incidentais são assim chamados porque chegaram ao poder por circunstâncias atípicas. Entre outros nomes, estão na categoria Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico. Na sua avaliação, eles não devem durar muito no poder porque a democracia é resistente. Ao mesmo tempo, esses governantes demonstram que têm uma base de apoio relativamente grande — aqui, penso nos 30% de eleitores que o presidente tem. Não corremos o risco de ver as ideias incidentais se sedimentarem cada vez mais, a ponto de se tornarem comuns?
Acho que não. São ideias minoritárias e retrógradas. O avanço acelerado do tempo de que falei acima será fatal para esses governantes. São dinossauros assombrando o mundo antes de serem extintos. Eles não conseguem um segundo mandato, a não ser que tenham levado a cabo o desmanche institucional que lhes permitiria manipular as eleições e serem reeleitos serialmente como alguns fizeram, o exemplo mais bem-sucedido é Putin [presidente russo]. Todos tentam, mas nem todos conseguem. Nos países de tradição democrática, eles têm menos chance de êxito. O Brasil tem menos tradição democrática do que os países da Europa continental, do Reino Unido e dos Estados Unidos, mas tem muito mais do que Hungria, Polônia e Rússia. Até nosso Império foi mais democrático do que o deles. Bolsonaro e Trump são candidatos de pouco fôlego. Não sabem, não querem, não conseguem governar. Consomem o tempo mobilizando acólitos e vão perdendo os eleitores que se decepcionam com seu desempenho pífio na presidência.

Além dos presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, chefes de estado e de governo de outros locais são analisados no livro, como Recep Erdoğan (Turquia), Vladimir Putin (Rússia) e Viktor Orbán (Hungria). Em certa medida, eles alteram as regras do jogo para se favorecerem. É como se mantivessem com uma ideia utilitarista do poder, da vida, cuja síntese está maravilhosamente descrita em Crime e castigo, de Dostoiévski. Ao matar a mulher avarenta, Raskolnikóv, personagem principal, pensa que fazer o mal pode ser um caminho para alcançar o que considera ser o bem. É possível dizer que esses líderes citados se consideram tão importantes, que pensam em fazer o “bem” por meio do mal?
Com certeza, além de autocráticas, são personalidades narcísicas. Trump, Bolsonaro, Boris Johnson, Putin, todos eles. Julgam-se muito mais importantes e mais capazes do que de fato são. E todos têm um grau de psicopatia que os impede de ter as dúvidas morais que os personagens de Dostoiévski têm. Não têm profundidade suficiente para alimentar conflitos internos. Só externos, com os outros, que julgam inferiores. Eles são incapazes de duvidar de si mesmos.

• No livro o senhor diz que os governantes são incidentais porque foram elevados ao local em que estão devido a uma série de fatores que, historicamente, não devem se repetir. Nos EUA, Donald Trump, um dos expoentes de sua definição, perdeu a eleição. Ainda assim, analistas dizem que o trumpismo deve sobreviver, já que a extrema direita estadunidense segue mobilizada. A queda de Trump representa o que para os governantes incidentais?
Representa a confirmação de que, ou bem alteram as regras do jogo democrático em seu favor no primeiro mandato e movem o regime para uma autocracia, ou são derrotados. Não acredito em “trumpismo”, sem Trump no poder. Ele não terá dinheiro, tempo ou aptidão para manter seus seguidores mobilizados. Existe a probabilidade de que seja processado e preso pelos vários crimes que cometeu. A extrema direita segue mobilizada apenas até sua saída do poder. Depois, ela se fragmenta. O Partido Republicano entrará em reorganização para seguir adiante sem Trump e buscar maior sintonia com setores de classe média que ajudaram a derrotar Trump. O partido teve desempenho melhor que o de Trump, mas sofreu derrotas importantes e pode ainda perder duas cadeiras no Senado pela Georgia, um estado republicano que está oscilando para o Partido Democrata, pela força do movimento negro.

Bolsonaro e Trump são candidatos de pouco fôlego. Não sabem, não querem, não conseguem governar.

• O presidente Jair Bolsonaro ainda não parabenizou Joe Biden pela vitória. Nos últimos anos, o Itamaraty tem sido subserviente não aos EUA, mas aos EUA de Donald Trump. Com a derrota do empresário e com o fato de Bolsonaro ainda não ter acenado ao presidente eleito, como fica a relação entre Estados Unidos e Brasil?
A relação será pragmática, pelo lado dos Estados Unidos, e continuará inepta pelo lado do Brasil. Bolsonaro não tem atributos mínimos de Chefe de Estado e jamais será um estadista. Ernesto Araújo é um diplomata ressentido e medíocre, que anulou e alienou o aparato de enorme competência profissional do corpo diplomático brasileiro, respeitadíssimo no mundo todo. Faz uma gestão errática, submissa e delirante, que deixou o Brasil isolado internacionalmente, tratado como um pária. E acha isto um ato de coragem. Bolsonaro e ele erram sempre na política externa. Quebrou uma tradição, respeitada pelos generais-presidentes, de reconhecer os resultados das eleições de todos os países com quem o Brasil mantém relações diplomáticas, até os comunistas. Como a Angola de Agostinho Neto, o líder comunista do MPLA, que se tornou presidente. O general Geisel reconheceu sua vitória e o chanceler brasileiro, Saraiva Guerreiro, o visitou em Luanda. A diplomacia de Biden vai tratá-los com o merecido desprezo. Agora, do ponto de vista dos objetivos da política externa dos Estados Unidos que orientarão as decisões de Biden no campo externo, a proteção da Amazônia e o retorno ao Acordo de Paris e a recomposição ampliada das metas de redução de emissões terão consequências negativas para o Brasil, no plano geopolítico, econômico e financeiro. Bolsonaro e Araújo erraram e deixaram o Brasil vulnerável, ao não reconhecer a vitória de Biden, como fizeram todos os outros governos sul-americanos. Erraram e prejudicaram o Brasil, ao fazer a extrema descortesia de não ter representante de alto escalão do governo brasileiro na posse do novo presidente boliviano, Luis Arce. Se o Chefe de Estado não comparece, envia, pelo menos o vice-presidente. Na pior das hipóteses, o chanceler. A fronteira terrestre entre Brasil e Bolívia é a de maior extensão e somos importadores de gás boliviano.

Nesse momento de governantes incidentais, soa interessante o fato de que progressistas do mundo ocidental terem torcido por Joe Biden. Ele é o que podemos chamar de a “cara” do sistema: 50 anos de vida pública, tendo sido senador do establishment, vice-presidente durante a gestão Obama (que viveu em guerras). Kamala Harris, mulher negra, é apontada como uma das responsáveis pelo aumento da prisão de negros e negras na California quando procuradora. Enquanto isso, Trump se nega a deixar a Casa Branca. O pêndulo ideológico está voltando para o centro?
No Partido Democrata, o centro foi derrotado nas eleições. Kamala Harris está no centro-esquerda do partido e é um ícone para as minorias, filha de pai jamaicano e mãe indiana, negra que se apresenta como negra, a primeira mulher a chegar à vice-presidência. Que Biden a tenha escolhido como companheira de chapa é um sinal eloquente de identificação com boa parte da agenda progressista dos democratas, como o Green New Deal, o combate ao racismo estrutural e à discriminação contra as mulheres. Quem lhe deu a vitória foram as organizações de base (de negros e outras minorias) progressistas. A Alexandria Ocasio-Cortez, democrata de esquerda que foi reeleita deputada pelo distrito do Bronx, em Nova York, analisou as derrotas do partido para a Câmara e o Senado e mostrou como fizeram campanhas analógicas, centradas no correio e na TV. Os que ganharam, fizeram uma combinação de porta a porta, com campanha digital, usando o Facebook e outras redes. São todos da ala progressista. Ela explicou que, enquanto, por exemplo, os candidatos de centro e centro-direita do partido, investiram em média 2 mil dólares no Facebook para recrutar voluntários, captar recursos, recrutar voluntários e pedir votos, os progressistas investiram, em média, 200 mil dólares no Facebook. Além de investir em outras mídias digitais também. Não gastaram dinheiro com correio e TV, que custam muito caro e têm baixa eficácia hoje. A campanha distrital é hiperlocal, requer enlace com os movimentos sociais mais fortes em cada distrito e superfocalização da campanha digital.

Voltando à obra recém-lançada. Um dos debates mais interessantes do livro é o da judicialização do STF. A relação entre o presidente da Corte — à época, ministro Dias Toffoli — e os presidentes dos outros poderes é avaliada de forma crítica nos ensaios. Ainda assim, o senhor fala sobre a necessidade do fortalecimento das instituições e as razões pelas quais precisamos acreditar nelas. É possível acreditar nas nossas instituições?
É preciso renovar as instituições que, ao fim e ao cabo, são regras de procedimento, para torná-las menos vulneráveis a esta pessoalização, mandatos fixos e invioláveis, listas tríplices compulsórias, regras regimentais mais severas para as sabatinas nas comissões do Senado. Fim dos convites informais para ministros prestarem informações e implementação efetiva de pedidos de informação e convocações para depoimentos, solicitados pela minoria, nos dois casos compulsórias, sob pena crime de responsabilidade. Referendo confirmatório de mandatos executivos obtidos em eleições proporcionais, na metade do mandato. A melhoria progressiva da qualidade da conversação pública na ciberesfera contribuirá para legitimar as instituições de maior credibilidade e mudar a cultura política.

O poeta Carlos Drummond de Andrade tem um verso que diz: “E sempre no meu sempre a mesma ausência”. O contexto no poema é outro, claro, mas é como se a democracia brasileira, mesmo na República, fosse uma ausência presente sempre. Se não a democracia, ao menos o ethos democrático…
A democracia sempre será uma ausência. Não existe um ponto de chegada final, em que se atinge a democracia plena. É um alvo móvel. A realidade muda, as necessidades mudam, a dinâmica dos conflitos se altera, surgem questões, problemas e desafios novos e é preciso atualizar a democracia. Ainda mais agora, com a revolução tecnológica que estamos passando. Democracia é um horizonte ao qual tentaremos alcançar eternamente. Quanto mais avançamos em sua direção, melhor ficamos, mais democráticas as sociedades se tornam.

“[…] Basta um exame breve das contas públicas para ver o que se gasta para subsidiar a formação privada de capital, para os empreiteiros, para financiar os barões da indústria e os coronéis da agricultura, sem resultados concretos sob a forma de emprego, renda e bem-estar proporcionais aos subsídios. […] Os ricos, no Brasil, são tratados como se fossem a parte frágil da sociedade e são os principais beneficiários do assistencialismo público. Esta rede de conivências e apadrinhamentos não é republicana, ela subverte todos os valores republicanos fundamentais.” Governos passados nada ou pouco fizeram para mudar esse cenário. Aliás, as duas gestões Lula apresentavam os grandes empresários como campeões nacionais. Como temos visto, a relação patrimonialista brasileira perpassa também a corrupção. De que maneira uma coisa está relacionada à outra, na visão do senhor?
Nosso modelo político, o presidencialismo de coalizão, sempre teve como pivôs das coalizões partidos de centro-direita e de direita. Sempre tomando esses termos com certa latitude, porque os partidos brasileiros, do ponto de vista ideológico ou programático, são espécies variadas de geleia misturando valores difusos e pragmatismo concreto. A interseção entre as coalizões e a hipercentralização do federalismo incentivam o clientelismo e, este, o toma-lá-dá-cá. Nosso orçamento e sua implementação discricionária, na boca do caixa, induzem os parlamentares a pedirem dinheiro ao governo central em troca de apoio no Congresso. Nossa política orçamentária e fiscal é a maior fonte de clientelismo e corrupção, no contexto deste centralismo absoluto dos recursos. Nossa estrutura tributária foi desenhada para beneficiar os ricos e punir os pobres. O capital recebe muito mais dinheiro público, para nada útil, os subsídios governamentais só têm servido para beneficiar empresas velhas, ineficientes, de baixa produtividade, com a morte marcada pela mudança tecnológica, ou empresas multinacionais, para fazer carro flex, sem contrapartida alguma. As startups de alta tecnologia, as de energia renovável, que geram mais emprego e bem-estar, recebem muito menos ou nada.

A crise democrática no ocidente tem sido tema do mercado editorial de não ficção. Vários autores têm se dedicado ao assunto, como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem, e David Runciman em Como a democracia chega ao fim. Como o senhor vê esse interesse?
Penso que somos menos democráticos nos governos e mais democráticos na resistência à autocracia, em toda nossa história. O pensamento democrático nunca venceu, mas nunca foi eliminado. A democracia está em crise porque ela é analógica e a revolução digital altera a equação da conversação, da participação, da influenciação, da deliberação. Muda a correlação de forças sociais. A democracia terá que mudar radicalmente porque as sociedades estão em mudança radical. Em algumas décadas, o mundo e as sociedades não serão mais as mesmas que são hoje e nem as democracias. No futuro, há espaço para distopias e para utopias. No presente, há uma carência enorme de reflexão sobre este zeitgeist, este espírito do tempo da grande transformação e sobre que modelos novos de sociedade e de democracia queremos. Estamos todos prisioneiros de análises conjunturais ou de pesquisas sobre o que está morrendo. Muito pouco sobre o que faremos nascer. Nada surgirá espontaneamente. O futuro será o resultado de nossas escolhas, sonhos e erros.

Um dos ensaios de O tempo dos governantes incidentais fala sobre o aumento de temperatura no Brasil contra críticos ao Governo Federal, e aí cita o caso de escritores que foram proibidos de participar de uma festa literária. O texto não diz, mas essas pessoas que foram impedidas são o senhor e sua esposa, a jornalista Miriam Leitão, num boicote acontecido em Jaraguá do Sul (SC), em 2019. Esse episódio contrasta com um tom esperançoso de seu livro. É possível acreditar no futuro e ter esperança?
Fomos convidados para vários encontros, porque fomos barrados pela extrema direita em dois deles. Encontros muito criativos, vimos um Brasil inquieto, leitor, sonhador. Encontramos aqueles que querem fazer o futuro. Reencontrei a esperança nos brilhos dos olhos, nas lágrimas, na fome de saber de jovens, principalmente da nossa maioria, encurralada nas periferias. Uma audiência com ampla diversidade, liberdade de expressão e de ser, a maioria que está ativa e deixando de ser silenciosa. Explosões de talentos literários nos slams; de talentos artísticos nos grafites. Nesta luta pelo futuro com mais tolerância, diversidade e pluralidade vencemos muitas batalhas. Mas o retrocesso continua a nos rondar. Os extremistas atacam com mais brutalidade, porque sentem que estão perdendo terreno. A violência vai aumentar, antes de ser posta sob controle. Apesar da dureza da luta e do sofrimento que ela carrega, eu tenho a convicção de que ela faz parte do novo, enquanto os racistas, supremacistas, a extrema direita, representam um grito furioso do passado que sabe que seu destino inexorável é ser passado, sem qualquer esperança de futuro.

• O senhor já prepara outro trabalho? O que pode adiantar?
Estou terminando de rever um romance sobre esse clima de crispação e preconceito que vivemos. E já pesquiso para escrever um novo ensaio, suscitado pela seguinte observação: passado este pesadelo, de governantes incidentais e pandemia, entraremos em um novo ciclo, mais avançado e acelerado da transição global, inclusive porque a reconstrução das economias poderá permitir um salto rumo aos modelos de baixo carbono e ao chamado Green New Deal. Vários países adotarão variações do Green New Deal e ficarão em vantagem competitiva, forçando os outros a se moverem nesta direção também. Enfrentaremos novos problemas, derivados desta aceleração da mudança. Serão problemas sérios que demandarão soluções radicalmente inovadoras e com muitas repercussões na política e na democracia.

O tempo dos governantes incidentais
Sérgio Abranches
Companhia das Letras
304 págs.
Victor Simião

Formado em jornalismo e ciências sociais. Atualmente, é secretário de Cultura de Maringá (PR). Criou o clube de leitura Bons Casmurros.

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