🔓 Desbundando

Por aqui, bunda atende pelo apelido infantilizado de “bumbum”. Isso mostra muito do que somos, um país profundamente hipócrita
Ilustração: FP Rodrigues
12/11/2020

(13/11/20)

Você que agora me lê, sendo certamente mais inteligente que eu, talvez já tenha encontrado a resposta para uma dúvida que me tira o sono. Todos os dias somos expostos a dezenas de bundas desnudas ­– em sites noticiosos, leitor/leitora cheio de malícia! –, exibidas de todas as formas e jeitos, e, no entanto, ó Deuses da Pudicícia (que palavra mais besta!), os tais “meios de comunicação” insistem em chamar, castamente, a dita cuja de “bumbum”…

Esse paradoxo diz muito sobre nosso caráter. Somos hipócritas, os brasileiros, a verdade é essa. As crianças são expostas à pornografia mais escatológica na internet, mas nos indignamos quando um personagem de telenovela diz (será que diz?) “filho da puta” no horário nobre. Dias atrás, aqui mesmo nesse espaço, evitei, ironicamente, escrever por extenso a palavra b*****a para não ferir olhos e ouvidos mais melindráveis…

Mas, venhamos e convenhamos, o que esperar de um país liderado por um energúmeno – eleito por 58 milhões de energúmenos, nunca nos esqueçamos – que faz da hipocrisia uma plataforma de governança? O nosso Energúmeno-Mor evoca a ordem militar e foi um oficial insubordinado; evoca o modelo de família tradicional e tem cinco filhos de três casamentos diferentes; evoca a religião e ora se apresenta como católico, ora como evangélico; vende-se como paladino da moralidade e enrosca-se, ele e sua família, em denúncias de corrupção e de envolvimento com milicianos; retrata-se como antipolítico e ganhou a vida como político profissional – carreira, aliás, abraçada por seus três filhos adultos, 01, 02 e 03 e, muito em breve, por 04 – a menina não, porque mulher existe para ser bela, recatada e do lar, segundo o nosso ex-presidente Michel Temer…

Mas Bolsonaro é só o representante da nossa população de católicos antiabortistas cujas amantes e filhas praticam aborto em clínicas clandestinas, mas seguras; de evangélicos que trazem uma bíblia na mão direita, um fuzil (metafórico ou real) na mão esquerda; de juízes que desrespeitam as leis; de pessoas que entram para a política visando roubar o máximo no menor tempo possível para que, quando forem eventualmente pegos, já terem garantido um patrimônio para seus descendentes; de uma elite branca que veste camisa verde-amarela para mostrar o profundo amor ao Brasil ­– e mora em Miami; de bundas que são apresentadas em público como “bumbum”…

Luz na escuridão
Adriana Lunardi, contista, romancista, roteirista: “Tento avançar na história de uma mulher que teve os dentes, as mãos e os joelhos quebrados. Quando ainda estava ferida, foi roubada, amordaçada e violada. O pano de fundo é um golpe político que depôs a presidente de uma república sul-americana. Tanta violência acabou por gerar uma lesão cognitiva em minha personagem e, como consequência, a única figura de linguagem que ela reconhece, agora, é a ironia. Para encontrar algum sentido nesse mundo pós-maelstrom, ela observa tudo com uma curiosidade científica e faz anotações. As palavras às vezes não dizem nada. Mesmo o dicionário oferece pouca ajuda. Ela não sabe se concluirá um relato. Não sabe se a escrita é possível sem metáforas, alusões ou metonímias. Não sabe mais o que é considerado literatura. É um livro de não-ficção”.

Parachoque de caminhão
“Não evocamos uma coisa quando a chamamos por seu nome. As palavras, apesar de as conhecermos desde a infância, não sabemos o que são.”
Henri Barbusse (1873-1935)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Gilka Machado
(Rio de Janeiro, RJ, 1893 Rio de Janeiro, RJ, 1980)

Ser mulher…

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

(Cristais partidos, 1915)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho