É difícil não esbarrar hoje em alguma das criações de H. P. Lovecraft. Mesmo que você nunca tenha visto uma entidade cósmica verde, alada e com cara de polvo com o impronunciável nome de Cthulhu, ou jamais ouvido falar do proibido Necronomicon, escondido nas estantes da biblioteca mais próxima, é bastante provável que você tenha tido contato com alguns dos vários autores inspirados pelo escritor estadunidense de Providence, como Guillermo del Toro e Neil Gaiman, ou com obras que usam a cosmogonia lovecraftiana como forte inspiração, como os jogos Bloodborne, Eldritch horror e The sinking city: Necronomicon.
No universo bibliográfico, antologias e coleções com diversos enfoques do seu trabalho têm surgido. No fim do ano passado, a Companhia das Letras lançou o primeiro volume da Biblioteca H. P. Lovecraft, intitulado O chamado de Cthulhu e outras histórias, que reúne contos de diversos enfoques, não só aqueles que tratam dos deuses esquecidos. Com outra proposta, a Nova Fronteira lançou o box Os mitos de Cthulhu, uma seleção que prioriza os contos ligados ao panteão dos Grandes Antigos.
No entanto, não é apenas por meio de reedições — ou em forma de inspiração a outros artistas — que a obra de H. P. Lovecraft tem recebido atenção. Felizmente, muito tem sido discutido sobre as questões problemáticas de seus manuscritos. As obras de autores como Victor LaValle e Matt Ruff, por exemplo, têm mostrado como o racismo e a xenofobia são elementos basilares na obra de Lovecraft. Essas questões também não ficam de fora de H. P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, de Michel Houellebecq, que transita entre a biografia e o ensaio.
De acordo com autor francês, o norte-americano era tido como um “verdadeiro cavalheiro”: acreditava ser superior à maioria das pessoas e tinha um “sistema de valores inteiramente oposto ao nosso. Fundamentalmente racista, abertamente reacionário, ele glorifica as inibições puritanas e julga como evidentemente repugnantes as ‘manifestações eróticas diretas’. Decididamente anticomercial, ele despreza o dinheiro, considera a democracia uma tolice e o progresso uma ilusão. A palavra ‘liberdade’, tão cara aos americanos, arranca dele apenas zombarias entristecidas”.
Entre os 18 e 23 anos, Lovecraft foi vítima de um colapso mental. Nesse período, teve poucas realizações. Seus relatos eram melancólicos, marcando a tristeza pelo abandono da infância e a entrada no mundo adulto. E, dessa trajetória, o que surge é o retrato de um escritor com “uma verdadeira aversão pela vida sob todas as suas formas” e, também, pela sua falta de propósito, conforme destacado por Houellebecq.
Horror cósmico e weird
Dessa postura desencantada surge uma escrita que traz materialismo ao terror e à magia, reinterpretando suas causas sobrenaturais. Em suas análises, Houellebecq descreve o movimento dessa virada: “Não se trata mais de crer ou não crer, como nas histórias de vampiros e de lobisomens; não há reinterpretação possível, não há escapatória. Nada do fantástico é menos psicológico, menos contestável”.
O conto A casa temida, que faz parte do primeiro volume da Biblioteca H. P. Lovecraft, tem uma trama que deixa bastante clara essa postura. Depois de pesquisas em uma casa amaldiçoada, um tio e seu sobrinho chegam a conclusão de que é possível que um vampiro esteja assombrando aquele lugar. No entanto, eles não tomam como base as lendas ou boatos locais, que são sobrenaturais, eles dão ao vampiro uma nova roupagem e o tornam uma espécie de espectro repleto de explicações científicas. Eles dizem: “Essa não seria uma impossibilidade física ou bioquímica à luz da nova ciência, que inclui teorias da relatividade e da ação intra-atômica”. Acrescentando, o vampiro “poderia tratar-se de energia em forma pura — uma forma etérea e externa ao reino da substância — ou poderia tratar-se em parte de matéria; uma massa equívoca e ignota de plasticidade, capaz de transmutar-se livremente”.
É assim que eles caracterizam o “vapor vampírico”, que depois vão encontrar. O que aparece nessa mescla de universos, e é bastante forte na composição dos Mitos de Cthulhu, é o horror cósmico: um medo que se origina na vastidão do universo, com seus seres inomináveis, sua eternidade assombrosa e todas aquelas coisas que existem e não podem ser materializadas pela mente humana. É essa sensação que marca os personagens que têm contato com seu panteão: mais do que o horror, um fascínio.
Em The weird and the eerie, Mark Fisher explica como essa fascinação é uma das sensações que marca a ficção weird, gênero ao qual Lovecraft é incluído. Ao pé da letra, weird pode ser traduzido como estranho ou esquisito — mas, neste caso, ele tem uma particularidade: o elemento estranho provoca um fascínio por “aquilo que há além da nossa percepção, cognição e experiência usuais”, ainda que isso nos aterrorize em algumas vezes.
Para Mark Fisher, essa sensação difere do unheimlich, termo cunhado por Freud e que trata da estranheza dentro daquilo que é familiar. É o efeito que nos toca, por exemplo, em algumas histórias de terror quando projetamos nossos medos em momentos de apreensão; ou aquele incômodo quando vemos bonecas que parecem quase vivas. Ainda que se pareça com o que sentimos ao ler sobre deuses indescritíveis, a diferença está naquela sensação de deslocamento — o sentimento de que algo é tão estranho que não deveria existir (ao menos, não nesse espaço), mas, “se a entidade ou o objeto estão aqui, então as categorias que usamos até agora para perceber o mundo não podem ser válidas”, quase como uma colagem.
Em seus escritos, Lovecraft se diferenciou das tradições de fantasia, ficção científica e gótico até aquele momento justamente pelo fato das suas histórias tratarem dessas sobreposições de esferas — encontros com deuses de um passado antigo; experiências com estados alterados de consciência; desmantelamento da estrutura do tempo-espaço. Nesse quesito, por exemplo, um “vampiro clássico” é menos weird do que um buraco negro, já que o primeiro tem protocolos e representações específicas, fazendo parte de um universo compreensível; o buraco negro, por outro lado, dobra o espaço-tempo de uma maneira bem distante da experiência comum e do que nós compreendemos, ainda que ele exista no nosso universo.
Uma das coisas utilizadas por Lovecraft para criar esse efeito weird é o deslocamento do espaço. Geralmente, os mundos da fantasia existem de maneira independente daqueles em que vivemos — mesmo que, como em Nárnia, seja preciso passar por alguns portais mundanos. O que a ficção weird no estilo de Lovecraft faz é criar um mundo completamente estrangeiro, um planeta que fica distante e é regido por outras leis da física e emerja no nosso mundo.
Esses espaços externos aparecem de diversas maneiras. Não só na presença dos Grandes Antigos e outras raças externas, como os seres que vieram de Plutão no conto O sussurro das trevas, dos Mitos do Cthulhu, mas também nas projeções de consciência, como em A sombra além do tempo — obra basilar para o universo de Lovecraft e que está presente nas duas antologias, e no desdobramento das outras dimensões e espaços que aparecem de maneira não euclidiana.
A narrativa Os sonhos na casa da bruxa, também dos Mitos de Cthulhu, é um excelente exemplo dessa última forma — e nos remete diretamente ao conto O aleph, de Jorge Luis Borges. Nessa história, conhecemos um estudante que aluga um quarto que pertencera a uma bruxa — e, por isso, os rumores são de que ele é mal-assombrado. No entanto, logo descobrimos que o quarto tem um ponto especial no encontro de suas paredes e que, a partir dali, é possível fazer viagens para outros planos e dimensões. E é claro que essas possibilidades são justificadas por fórmulas matemáticas que se equiparam ao conhecimento do sobrenatural.
Nos contos de Lovecraft, tudo aquilo que está fora do campo de um ideal de civilização e cultura é tratado com desprestígio.
Questão de escala
A maneira que Lovecraft encontrou para que os leitores pudessem entender as dimensões e horrores dos espaços e criaturas que permeiam suas narrativas foi colocar tudo em perspectiva. Em seu mundo, os humanos são como pequenas formigas para os Ancestrais: insignificantes, passageiros, imperceptíveis. O que ocorre, no entanto, é que esse ponto de vista do “inseto” não é marcado apenas pela repulsão, mas por um sentimento mais ambíguo: o já citado fascínio.
Para Mark Fisher, a ficção weird não apenas repele, mas também atrai. Por isso, o que marca o texto do Lovecraft é essa sensação. É a fascinação que leva os personagens para a “dissolução, desintegração ou degeneração”, um caminho comum em todos os seus contos — o que associa sua narrativa mais ao suspense, vide sua inspiração em Poe, do que a uma sensação aterrorizante. É a materialização desse espaço não euclidiano que atrai ao mesmo tempo em que despedaça e rompe com os limites da nossa consciência.
Como essas sensações envolvem a sobreposição de duas maneiras de existir em um mundo único, o trauma é constante em seus protagonistas e é um retrato da expansão violenta e impraticável da concepção de tempo e espaço no confronto com essas criaturas. Outra parte importante nessa construção, como nos lembra Houellebecq, é o mundo dos sentidos dos personagens. Para além da descrição visual dos personagens, Lovecraft compõe trilhas sonoras e olfativas para seus contos e propõe uma ambientação completa pautada pelo corpo dos protagonistas.
No entanto, como contraponto, Lovecraft bane qualquer traço de impressionismo. Apesar de os personagens estarem à beira da loucura, eles se deslocam entre pontos precisos. Um “efeito de escala e vertigem”, como diz Houellebecq, que se produz no contraste entre a precisão das coordenadas ou dos relatórios das expedições com os 300 milhões de anos ou nas 20 galáxias de distância.
Soma-se a isso o fato de que, apesar de loucos, seus narradores não deixam de ser precisos, confiáveis. “Qualquer traço psicológico muito acentuado contribuiria para falsear seu testemunho, privá-lo de um pouco de sua transparência; nós sairíamos do campo do terror material para entrar no do terror psíquico. E Lovecraft não deseja nos descrever psicoses, mas realidades repugnantes”, escreve Houellebecq, e complementa: “Os personagens de Lovecraft se comportam como observadores mudos, imóveis, totalmente impotentes, paralisados”. Uma projeção do próprio escritor, já que raramente há alguém que destoa do perfil do pesquisador, do escritor ou do cientista que inevitavelmente fica insano e morre.
Soma-se o outro fato de que, como o hábito do escritor, geralmente esses protagonistas escrevem seus depoimentos em cartas ou textos pessoais. O ensaísta francês chega a comentar como Lovecraft é “fascinado pela ideia de que a aplicação pouco flexível de certos esquemas, certas fórmulas, certas simetrias permitiam chegar à perfeição”. Seus contos começam geralmente com um soco, algo que Houellebecq compara com um ataque à narrativa morna dos romances que retratavam as minúcias da vida burguesa moderna. As primeiras linhas de A coisa na soleira da porta, conto presente nos Mitos de Cthulhu, servem de exemplo: “É verdade que disparei seis balas na cabeça de meu melhor amigo. No entanto, espero mostrar por este testemunho que não sou seu assassino”.
Nesse modelo quase invariável de escrita, Lovecraft cria o que Houellebecq chama de “literatura ritual”, quase como a leitura dos contos de Sherlock Holmes, que gera o efeito de sistematização hierárquica dos textos e também uma retrointrodução, quase como se eles fossem reais e só precisassem ser reunidos. Entram nessa construção os trechos esparsos do Necronomicon, as pesquisas da Universidade de Miskatonic ou as ruínas das cidades de Arkham, Salem ou Dunwich — algumas, inclusive, já presentes no nosso imaginário. A força está justamente em não apresentar os textos inteiros, mas pequenos retratos. No entanto, como a apropriação das teorias e vocabulário científico fazem parte de sua estrutura narrativa, há algo muito presente em seu estilo: a suposta degeneração genética causada pela mestiçagem.
Ódio racial
Apesar de seu antissemitismo, Lovecraft chegou a se casar com Sonia Greene, uma escritora judia. Juntos, eles se mudaram para Nova York, onde Lovecraft viveu seus anos mais conturbados. Em primeiro lugar, foi lá onde escreveu grande parte de seus contos mais famosos, como O chamado de Cthulhu. No entanto, também passou por grandes apertos financeiros e teve que procurar emprego.
Houellebecq explica como a estadia em Nova York acirrou o ódio e o medo de Lovecraft pelos imigrantes. O escritor não perde sua atitude arrogante e anticomercial, sem aceitar trabalhar em grande parte de empregos que considera inferiores. Desempregado e intimidado por uma massa de trabalhadores estrangeiros, o escritor, segundo Houellebecq, “conhecerá o ódio, a repulsa e o medo, muito mais ricos. E é em Nova York que suas opiniões racistas se transformarão numa autêntica neurose racial”. Não é difícil perceber isso.
Stephen King escreve a introdução de H. P. Lovecraft contra o mundo, contra a vida e lá diz que “se você nos mostrar o que aterrorizou uma geração (os pesadelos dentro do travesseiro nacional, por assim dizer), nove entre dez vezes um grande número de decisões que foram tomadas durante a época em que essa ficção estava sendo publicada — legais, morais, econômicas, até militares — entram perfeitamente em foco”. E é exatamente isso que acontece com Lovecraft.
Partindo do que nos mostra Raphael Montes no prefácio dos Mitos de Cthulhu, Alan Moore escreveu que “os medos que geravam as histórias de Lovecraft eram exatamente os mesmos dos homens descendentes de protestantes, heterossexuais, brancos e de classe média, que se sentiam os mais ameaçados pelas mudanças nas relações de poder e de valores do mundo moderno”. São esses medos medíocres que aparecem em suas obras. Ele escreve porque tem medo; sua fragilidade é exposta em contato com imigrantes nos bairros e cidades e é daí que surge “uma repugnância particular ao mundo moderno”, como descrito por Houellebecq.
Nos contos de Lovecraft, tudo aquilo que está fora do campo de um ideal de civilização e cultura é tratado com desprestígio. O “terrificante deserto da Arábia”, ou “os indígenas apáticos e depravados” do Pacífico Sul e também os afro-americanos que seguem religiões pagãs, muitas vezes atribuídas ao vodu, com costumes violentos, como a prática de sacrifícios humanos, ou esquimós que louvam a um deus da loucura escondido nas auroras boreais — a única religião apresentada como segura é a de origem cristã.
Além disso, toda monstruosidade e aberração são fruto de algum relacionamento inter-racial. Um dos exemplos mais ilustrativos talvez seja o conto A sombra de Innsmouth, uma cidade degenerada e corrompida pelos relacionamentos dos humanos com os seres que vivem nas profundezas do oceano. Em determinado momento da narrativa, inclusive, um dos personagens conta como comunidades usavam um símbolo de proteção para se afastar dessas raças inferiores: uma suástica.
A ideia de progresso, que tanta aversão causa ao escritor, é geralmente apresentada como uma regressão — uma sociedade que atinge o ápice de sua produção cultural e, depois disso, só pode entrar em declínio. Esse efeito fica claro em contos como Nas montanhas da loucura, em que os protagonistas leem a história dos seres antigos por meio de entalhes nas construções.
É por isso que as releituras atuais, como a feita por Victor LaValle em A balada de black Tom sobre O horror em Red Hook, ou até mesmo a reconstrução proposta por Matt Ruff em Lovecraft country (que vai virar série pela HBO e terá Jordan Peele como um de seus produtores), são de extrema importância. É preciso analisar e criticar textos para além do inócuo argumento sobre homens em seus tempos.