Representar o real e o imaginado. Isso é literatura. E as literaturas africanas não se cansam de representar o papel de críticas do real. Violência e miséria dão o tom. Haja paciência para encarar o mesmo cenário, as mesmas personagens, o figurino surrado. No entanto, não se pode desfazer da imaginação dos escritores africanos. Nisso eles são bons, o problema é a repetição. Ora a natureza — quando não é a seca, é a chuva no papel de algoz —, ora o ocidental a invadir seu território e sua cultura. Nesse passo tenta se mover a literatura africana, sem sair do lugar, indecisa entre o maravilhoso, o fantástico e o real. Mas nunca negando a imaginação. E a massa de seus adoradores é imensa: os africanos acumulam três prêmios Nobel (o de Nadine — ninguém me convence do contrário — por razões políticas). A mim, essa literatura não comove.
Beethoven era 1/16 negro, livro de contos da prezadíssima Nadine Gordimer, é de uma irregularidade invejável. Apresenta contos primorosos e alguns constrangedores. Mas tão constrangedores que o leitor não acredita que sejam todos da mesma autora. Larga o livro e se perde elucubrando metáforas que, quem sabe numa releitura, consigam justificar aquele texto lamentável.
Na categoria “conto primoroso”, aquele que empresta nome ao livro. O apresentador de um programa radiofônico de música clássica anuncia: “Beethoven era 1/16 negro”. Pronto. É dada a largada à corrida de africanos em busca de uma identidade.
Houve tempo em que tinha negro querendo ser branco.
Agora tem branco querendo ser negro.
O segredo é o mesmo.
O conto traz a sinfonia da desordem social africana. Um professor universitário londrino viaja a uma cidade sul-africana em busca de eventuais parentes. Seu bisavô explorara minas de diamante em Kimberley e, agora, o professor voa em busca de sua porção negra. O leitor se verá frente ao vaivém da vida do bisavô do professor. Este se depara com o enigma inventado por ele mesmo na tentativa de tentar ser um pouco negro: “E então eu venho de onde. O que é mesmo tudo isso” (no livro, sem interrogação).
Por que esse conto é primoroso? Porque é repleto de simbolismo, de criatividade, um vôo suave da imaginação sobre um continente contraditório.
Mas é chegado o momento do conto constrangedor, Solitária:
Meu começo é a ingestão… Posso ter sido ingerida numa folha de alface, ou numa iguaria de carne crua moída que atende, acho eu, pelo nome de steak tartare… Às vezes, durante minha longa estada ali, havia a descida de algum líquido poderoso que se espichava prazerosamente por todo meu comprimento… Ondulando, estou partindo num elemento que também o faz, estou partindo para onde essa vastidão líquida poderosa vai — a natureza imbuiu em mim o conhecimento de que tudo se move para algum lugar — e talvez lá, onde essa força chegar, um de meus ovos (todas temos um estoque dentro de nós, ainda que sejamos sozinhas e nossa fertilização um segredo) encontre uma mosca transmissora que pouse numa folha de alface ou num belo pedaço de carne de um steak tartare.
Resumo da ópera: Beethoven era 1/16 negro é um livro de contos em que o apartheid está em primeiro plano. Do mesmo modo que a escravidão no Brasil não teve seu final com a assinatura da lei, e o preconceito, contra os pobres de todas as cores, é cada vez mais visível, na África do Sul o fim do regime racista deixou negros e brancos se perguntando: “E então eu venho de onde? O que é mesmo tudo isso?”. (Agora sim, com interrogação.)
Quase encerro sem citar outro momento extremamente desagradável, primário do livro de Gordimer. O conto Gregor apresenta uma barata como protagonista. Nadine busca seu momento Kafka e chega a Clarice Lispector — a Clarice e a todo o tédio que essa enigmática e incensada autora de A paixão segundo G. H. consegue desfiar. Inimitável. Lamentar ou não? Eis a questão.