Crítica é cara ou coroa

O equívoco de acreditar que o livro tem uma essência oculta, intrínseca, perene, que precisa ser atacada ou defendida
Ilustração: Tereza Yamashita
01/10/2010

Livros são propostas de civilização. Cada livro publicado é, antes de tudo, uma atitude política. Por isso boa parte da crítica literária parece tão desnorteada, tão inconsistente. Estou falando da crítica que acredita que um livro possa ser intrinsecamente bom ou ruim. Essa visão restritiva não condiz com os fatos.

Lá na década de 30 do século passado, o jovem crítico Antonio Candido analisou Perto do coração selvagem e concluiu que se tratava de um bom romance de estréia. Já o não tão jovem crítico Álvaro Lins disse o contrário: que o livro da jovem Clarice Lispector era uma experiência muito mal-sucedida. Incomodou-o a forma fragmentária do romance, o narrador volúvel e subjetivo, a onipresença do fluxo de consciência e a substituição do tempo cronológico pelo tempo psicológico. Aborreceu-o tudo o que agradou a Antonio Candido.

Em meados da década de 50 do século passado, o crítico Wilson Martins analisou Grande sertão: veredas e concluiu que se tratava de um equívoco ficcional, uma obra que logo perderia o fôlego e morreria. Incomodou-o a linguagem enviesada do jagunço narrador, os neologismos poéticos, a mitologia sertaneja e a teologia bruta. Aborreceu-o tudo o que agradou a outros críticos.

Quando você, eu, todos os leitores e todos os críticos dizemos “este livro é excelente”, na verdade estamos dizendo “este livro legitima o tipo de mundo no qual eu quero viver”. Então, falar bem do livro em questão, promovê-lo, fazer com que seja lido por muita gente e passe a integrar o cânone literário, tudo isso se torna uma missão política. O tipo de civilização que nos agrada está representado na linguagem, no temperamento e na densidade do livro em questão. Um tipo de civilização que ainda não existe e precisa ser construído. Ou que existiu no passado e precisa ser recuperado. Ou que está existindo neste exato momento e precisa ser defendido a qualquer custo de outros potenciais projetos de civilização.

Para o jovem Antonio Candido o modelo de mundo proposto por Perto do coração selvagem era o melhor. Para o não tão jovem Álvaro Lins era o pior. Com o passar das décadas, forças sociais, econômicas e políticas incontroláveis e aleatórias deram a vitória ao romance da jovem Clarice Lispector. E tempos depois ao romance do veterano Guimarães Rosa.

Isso não significa que Álvaro Lins e Wilson Martins estavam errados, que o juízo emitido por ambos “estava em desacordo com a realidade observada” (sentido primeiro do vocábulo errado). Significa apenas que ambos perderam no cara ou coroa, ao jogarem com outros críticos. A sorte decidiu que o modelo hegemônico de mundo e de cultura seria o modelo que eles não aprovavam. Podia ter sido o contrário. Tudo é acaso, probabilidade.

Implacável
Em meados da década de 90, o poeta Bruno Tolentino iniciou uma guerra feroz contra os concretistas e os compositores mais celebrados da MPB: Caetano Veloso e Chico Buarque. Incomodava-o principalmente as traduções e toda a poética dos irmãos Campos. Irritava-o os romances de Chico Buarque e as teses acadêmicas a respeito do que ele, Tolentino, considerava um tema pouco refinado para os corredores das universidades: a letra das canções de Caetano Veloso. O tipo de civilização que o concretismo propõe não é o tipo de civilização que Tolentino admirava. Tampouco é o tipo de civilização que ele admirava esse tipo tão contemporâneo, tão atual, que leva certas expressões artísticas populares para dentro dos gabinetes eruditos. Por isso ele esbravejou.

O contra-ataque veio rapidamente. Muitos foram os escritores, professores e compositores que revidaram com igual violência. Uma década e meia depois desse combate, penso que o modelo de civilização desejado por Tolentino está perdendo terreno para o modelo proposto pelos concretistas e pela alta cúpula de nossa MPB. O cara ou coroa é implacável.

Exemplos contemporâneos: Jerônimo Teixeira rejeitando Contos negreiros de Marcelino Freire e O paraíso é bem bacana de André Sant’Anna, Alcir Pécora rejeitando Do fundo do poço se vê a lua de Joca Reiners Terron e A arte de produzir efeito sem causa de Lourenço Mutarelli…

Razões emocionais e irracionais parecem mover as pessoas. As letradas e as iletradas. Mesmo os modelos de civilização mais equilibrados e consistentes nunca permaneceram intactos por mais de cem anos. Como a vida biológica, as civilizações também nascem, atingem o apogeu e morrem.

Neste exato momento, os valores humanistas estão sendo substituídos pelos pós-humanistas, sem que haja qualquer garantia de que tudo vai melhorar (ou piorar). Principalmente porque, dentro e fora das instituições públicas e privadas, pouca gente sabe exatamente o que a etiqueta pós-humanista quer dizer. Mas, se a mudança — qualquer mudança — é sempre algo muito assustador, por que a maioria das pessoas escolhe o assustador, o aterrador, em vez do conforto do já conhecido?

Álvaro Lins, ao rejeitar o romance de estréia de Clarice Lispector, rejeitava o estranhamento, a obscuridade, a incerteza. Wilson Martins, ao rejeitar o romance de Guimarães Rosa, também rejeitava o disforme, o esquisito, o desarmônico. Bruno Tolentino, idem. Para este, a miscigenação artística espalha impurezas. Ele via um colorido imoral na mistura erótica de elementos da cultura popular com elementos da cultura erudita. Perdeu a partida porque, pra seu azar, o pós-humanismo parece ser exatamente isto: miscigenação.

Hoje a biologia está se misturando com a cibernética, o racionalismo ocidental está comungando com a intuição oriental, a alta cultura está copulando vigorosamente com a baixa cultura, gerando criaturas incomuns.

O assustador
A pergunta feita aí em cima não é meramente retórica. Eu realmente não sei por que as pessoas escolhem o assustador, o aterrador, em vez do conforto do já conhecido. Sei apenas que os modelos culturais que triunfaram no século passado e continuam coordenando a civilização foram os modelos do estranho e do disforme. A arte degenerada, como diziam os nazistas. O classicismo foi forçado a recuar para um plano secundário. Venceu o maneirismo (Curtius). O grotesco romântico (Bakhtin).

As leis do desejo parecem ser mais vigorosas do que as da razão, porque continuam vencendo. É claro que racionalmente as pessoas preferem a luz e o equilíbrio às trevas e ao desequilíbrio. Mas, na hora agá, o brilho profundo da escuridão é mais sedutor, atrai mais. Vai entender o bicho humano…

Por mais que todas as pessoas afirmem que amam o livro de papel, que jamais conseguirão viver sem esse objeto centenário, sem o cheiro e a textura de suas páginas, em pouco tempo o livro eletrônico dominará o mundo. Uma força irracional e irresistível impulsiona a tecnologia e a ciência. Ninguém pode deter esse fluxo. E por irracional entendam: imprevisível. Não dá pra saber pra onde irá. Diferente do que Einstein pensava, o universo joga dados. De previsível na natureza e na cultura, apenas o imprevisível.

Voltando ao ponto de partida: livros são propostas de civilização. Cada livro publicado é, antes de tudo, uma atitude política. E crítica literária é cara ou coroa, num mundo definido pelo acaso. Ao elogiar ou condenar um livro, o crítico não está dizendo aos seus leitores o que o livro é. Ele não está revelando sua essência oculta, simplesmente porque não há essência oculta a ser revelada, nunca há. O crítico está, na verdade, defendendo ou atacando o tipo de civilização que o livro propõe.

O primeiro equívoco de um crítico é crer que os livros têm uma essência oculta, intrínseca, perene, que precisa ser atacada ou defendida. Nunca têm. O segundo equívoco, o maior deles, é acreditar que seu ataque ou sua defesa fará diferença a favor ou contra o tipo de civilização proposto pelo livro. Nunca faz. A probabilidade é sempre de cinqüenta por cento para o sim e para o não. Um cara ou coroa.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho