Depois de receber mais uma carta rejeitando seus contos “sujos” (um pouco mais longa e ambígua que o normal), Bukowski vaga pelas ruas pensando na tediosa literatura americana e em como se livrar da atual mulher. De volta à pensão em que mora, encontra amigos bêbados jogando cartas com o editor da revista que recusou seus escritos. Após uma briga, ele salva o editor e o leva até a casa de sua amante, onde ouvem música clássica, se divertem com um gato e comem alguns sanduíches. Há uma tentativa de chantagem sexual por parte da garota, até que descobre que tudo não passou de um grande engano. O que fazer? Voltar para a pensão correndo para ver se sobrou um pouco de vinho barato.
Para leitores acostumados com suas histórias cheias de sacanagens, bom humor, brigas, escatologias e depravações de toda espécie, esse primeiro conto que Charles Bukowski publicou aos 24 anos, Conseqüências de uma longa carta de rejeição (1944), assim como a maioria dos textos reunidos em Pedaços de um caderno manchado de vinho, é um reencontro com o velho safado. Ele nos lembra que escrita tediosa e rebuscada é dispensável para se fazer boa literatura. Claro que, entre os inéditos, nem tudo tem a qualidade, por exemplo, de Crônica de um amor louco ou de romances como Mulheres ou Factótum. Mas, em contrapartida, o livro traz ensaios curiosos e textos emocionantes de um dos mais famosos escritores da contracultura.
Além dos contos, pelos quais o leitor brasileiro mais conhece Bukowski, Pedaços… reúne artigos que o autor escreveu para revistas alternativas, como resenhas e os textos da coluna Notas de um velho safado. Tudo destilado no subjetivismo, no sarcasmo e no estilo direto e simples, sobretudo simples, que caracterizam sua obra.
Conhecido como escritor marginal ou outsider muito antes dos beatniks entrarem em cena, Bukowski fez de si mesmo seu melhor personagem. O escritor bêbado e miserável que vive entre apostas em corridas de cavalos, prostitutas, porres intermináveis e a convivência com outros losers dos subúrbios de Los Angeles. Ele foi um dos primeiros autores a transportar para a literatura americana esse submundo com uma linguagem acessível (“eu era compreendido por prostitutas de Kansas City e professores de Harvard”), repleta de palavreado chulo e cenas pornográficas que irritaram o establishment da época.
Depois de viver de inúmeros subempregos, passar fome e quase morrer de tanto beber (e consumir drogas lícitas e ilícitas), Bukowski conseguiu finalmente trocar um trabalho medíocre nos Correios por um salário regular para viver de seus escritos, aos 50 anos de idade. A partir de então publicou romances como Cartas na rua (1971), Factótum (1975), Mulheres (1978) e Misto quente (1982). Corriam os anos 1970 quando foi acolhido pela academia para dar palestras e leituras, função na qual se sentia muito pouco à vontade — mesmo bêbado.
Em Pedaços…, além do primeiro conto já citado, podemos ler 20 tanques de Kasseldown, de 1946, sobre os pensamentos de um homem aguardando a execução em sua cela. O texto passa uma acentuada visão melancólica e existencialista (oriunda da leitura dos russos, segundo o editor do livro) que, em seus escritos da maturidade, permaneceria em segundo plano. Outro conto que chama atenção é justamente o último escrito por Bukowski, intitulado O outro. A história traz uma trama detetivesca e onírica em torno do tema do duplo, explorado (com mais destreza) por autores como Wilde, Poe, Stevenson, Borges e Hoffmann, entre outros. Outra novidade, em se tratando de Bukowski.
Em termos de escrita, Pedaços de um caderno manchado de vinho, texto que dá título ao livro, é o mais curioso da obra. Nele há um desconcertante conjunto de divagações que mistura prosa e poesia — o Bukowski poeta, aliás, é quase um desconhecido entre os leitores brasileiros, não fosse outra coletânea lançada há sete anos, Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski, editado pela Bertrand Brasil. Outras histórias divertidíssimas que merecem a leitura são A noite em que ninguém acreditou que eu era Allen Ginsberg, com o escritor fugindo de outros bêbados durante uma briga; a da brochada diante um bizarro objeto religioso em O cristo prateado de Santa Fé; e a de um ménage em Malhação.
Hippies
O que mais surpreende na coletânea, entretanto, são os ensaios “políticos” e literários. Que se pese a falta de argumentação coerente, impessoalidade, idéias originais ou beleza estilística — lembrem-se, é Bukowski, não Edmund Wilson ou Susan Sontag —, os leitores menos exigentes e um pouco mais atentos irão achar, por trás do personagem, um escritor absolutamente consciente de sua técnica, seu lugar e alcance na literatura e na história americana. Em nenhuma outra obra publicada de Bukowski no país tem-se essa perspectiva.
Deveríamos queimar o rabo do Tio Sam? é um texto atualíssimo, de uma sobriedade ímpar, mesmo tendo sido escrito, como eram os textos de Bukowski, acompanhado por altas doses de vinho (de preferência), cerveja ou uísque. Neste breve ensaio, ele defende sua literatura e o individualismo contra o patrulhamento ideológico, o puritanismo americano, o macartismo, os acadêmicos e os críticos (essas duas últimas classes estão entre as que mais gostava de espezinhar). Mais do que uma resposta aos que o chamavam de indecente, misógino e nazista, é um texto em que ele se alinha inteiramente à melhor tradição de defesa das liberdades individuais que formaram a democracia americana, herança de Thoureau e Whitman. Senão, confiramos a seguinte passagem (hilária) em que questiona a revolução apregoada por hippies esquerdistas: “Será que não me colocarão para cortar cana? Isso me deixaria chateado. Por acaso construirão novas fábricas? Passei minha vida inteira fugindo de fábricas. (…) Deixariam que eu ficasse largado em parques e cubículos bebendo vinho, sonhando, me sentido bem tranqüilo?”.
Os títulos, como o leitor deve ter notado, são geniais. Bukowski tinha uma capacidade de síntese admirável, um texto quase jornalístico, ainda que mais próximo da vertente “gonzo”. O apelo à composição enxuta e objetiva está, por exemplo, em Um ensaio errante sobre a poética e a vida visceral escrito ao longo de seis cervejas (grandes) — “Para que escrever um romance se é possível dizer o mesmo em dez linhas?” — com o que Borges concordaria, e em Treinamento básico — “Quanto mais compacto e menor você se tornar, menor a chance de errar ou de mentir. Os gênios são aqueles capazes de dizer algo profundo de maneira simples”. Para isso, diz ele, seria necessário ter a experiência certa, o que não significa, necessariamente, viver como um vagabundo a maior parte do tempo. Exemplos: “Não há como escrever sem viver a vida e escrever o tempo todo não é viver” (Sobre a matemática da respiração e do estilo); e “A linguagem da escrita de um homem vem de onde ele vive e de como vive” (Treinamento básico).
Literatura
Essa proximidade com o falar comum das pessoas ordinárias, com as quais conviveu a vida toda, é também o ponto de sua crítica à literatura americana e critério para sua admiração por escritores de estilos semelhantes que o antecederam, como Ernest Hemingway e John Fante.
Pedaços… traz resenhas sobre Ezra Pound (“Pound foi para a poesia o que Hemingway foi para a prosa: ambos tinham um jeito de incitar e excitar num momento em que não havia realmente muita coisa acontecendo”) e Antonin Artaud, de quem parece gostar mais da condição de “alternativo” do que propriamente de seus escritos, entre outros. Bukowski também foi um dos primeiros a apreciar William Ginsberg (“a força mais vivaz da poesia americana desde Walt [Whitman].”). Outras referências, nem sempre elogiáveis, são Céline, Mailer, Updike, Cheever, Tosltói e Faulkner (“uma das maiores e mais vis farsas de nossa época, amplamente aceito”).
Eu conheço o mestre, o mais comovente texto da coletânea, mostra Bukowski, um escritor que detestava o convívio com a maioria das pessoas, que vivia se degradando e buscava a solidão para escrever, encontrando seu ídolo, moribundo, numa cama de hospital, cego e com as pernas amputadas. Há uma surpreendente relação quase paternal, catártica, no jeito de Bukowski lidar com John Bante — obviamente John Fante. O texto conta como Fante/Bante foi tirado do ostracismo por Bukowski, na época já um escritor de renome.
Completam o livro as Notas de um velho safado, colunas semanais que o autor escrevia para o jornal underground Open City, onde falava de qualquer coisa, até sobre a arte de dirigir bêbado (!), e também publicava relatos autobiográficos, como Confissões de um velho safado e Notas sobre a vida de um poeta idoso. Há artigos inusitados e quase dispensáveis, como uma improvável cobertura de um show dos Rolling Stones (Jaggernauta), feita por um autor que detestava rock, e um breve manual sobre como apostar em corridas de cavalos (Escolhendo cavalos), prática esportiva que estava para Bukowski como as touradas para Hemingway ou o boxe para Cortázar.
Pedaços… pode ser, ainda, uma boa porta de entrada para o universo do velho safado. A capacidade de rir da própria desgraça e o ritmo narrativo são os grandes trunfos de Bukowski. Por essa capacidade de divertir e a facilidade de contar histórias de modo casual (sem falar no erotismo), ele é também um excelente autor para adolescentes que busquem descobrir o prazer da leitura, antes que o hábito de ler seja definitivamente enterrado na escola. O primeiro porre ninguém esquece.