Reuniões de crônicas, contos, minicontos ou microcontos — como os queiramos classificar hoje — trazem a vantagem para o leitor da degustação das várias tonalidades, temas, humores e até experimentações estilísticas criadas pelo autor que os reuniu em volume. Se o conjunto foi obtido a partir da escolha e seleção de colunas regulares de jornal, como ocorre com este Contos mais que mínimos, de Heloisa Seixas — publicados antes na Folha de S. Paulo —, acrescente-se a interessante investigação do leitor sobre “como” foi o momento exato de vida do escritor naquela semana ou quinzena, naquele dia em que escreveu sua coluna.
Todos os momentos, que já estiveram fracionados ao longo do tempo da publicação passam a figurar num todo mais coeso e sólido, o que ajuda a determinar o estilo e a personalidade de quem escreve. Explico melhor: o que se lê de um jorro, reunido em volume, ganha boas possibilidades comparativas intertextuais, pode revelar estruturas preferidas, desvelar temas recorrentes e ganha mais facilmente a virtual adesão do leitor. E isso é bom.
Há, em contrapartida, uma grande desvantagem em coletas de textos de jornal — que não afetou o leitor, quando este fez a leitura diária, semanal ou quinzenal de seu escritor preferido no jornal: o tédio. No volume de textos reunidos, esse tédio se instala e, às vezes, pode gerar inquietação: o leitor pula páginas, não relê nada (pois vai encontrar mais do mesmo) ou, pior, fecha o livro.
É, infelizmente, o que ocorre neste novo livro de Heloisa Seixas. Diferentemente do que diz esta (boa) escritora na contracapa da obra, “Vivemos um conto mínimo”, o leitor, deparando com muitos “contos mínimos”, página após página, sente-se numa avalanche de pequenas histórias (ou relatos, ou impressões ou pequenas crônicas), que cansam e desvalorizam o que, gota a gota, no jornal dá tão certo e traz à fidelidade vários leitores.
No primeiro volume de textos selecionados de sua coluna para a revista de domingo do Jornal do Brasil, Contos mínimos (2001), Heloisa Seixas já incorreu nesse perigo — ao qual, é claro, todos os cronistas que reúnem em volume seus textos estão sujeitos. Não me pareceu, porém, que o tédio fosse tão corrosivo como o sinto agora neste “segundo” volume de contos mínimos. Seriam estes os contos/crônicas que sobraram, portanto “repescados”? Repetem-se nesta nova obra não contos menores (como sugere o título “mais que mínimos”), mas a mesma compleição de estruturas narrativas e os mesmos temas: a abordagem do feminino — tema central da escritora —, a solidão, assombrações, memórias, amores desfeitos e morte.
Heloisa é boa escritora de modo geral; creio, porém, que seus contos “literários” são mais bem pensados, mais livres (claro!), portanto, e de maior qualidade que estes pequenos textos reunidos. Deste desafio, já usado por outros escritores e colunistas, mais como exercício, me parece, a escritora fala logo no prefácio:
Contos mínimos é o título do espaço assinado por mim no jornal Folha de S. Paulo, antes da revista Domingo do Jornal do Brasil, somando quase dez anos de coluna literária.
Duas vezes por semana, eu me via diante do desafio de escrever contos — ou talvez crônicas — num espaço tão pequeno que na tela do meu computador equivalia a apenas seis linhas e meia.
Pois é. Para jornal, textos assim curtos funcionam como oásis para o leitor; num volume, transformam-se apenas em reunião documental do que se produziu ao longo do tempo, sujeitos aos riscos de rejeição.
Muita ordem
A despeito de ser um volume com apenas 96 páginas, Contos mais que mínimos se divide em cinco partes, a fim de ordenar os textos por temas. Para alertar o leitor? Para organizar melhor? Difícil saber se a decisão partiu da escritora, mas não fez bem para a obra, pois essas poucas páginas vêm divididas em cinco ambiciosas temáticas: A morte dos amantes, A marca da solidão, O escritor e o homem, Impressões e fantasmas e Duas pontas de um só fio. Ora, por que não deixar a surpresa para o leitor com a colocação arbitrária dos temas? Quando se lê uma das partes, com textos de mesmo tema, estrutura semelhante e mesma extensão, como não enjoar e passar adiante?
Embora vários dos textos sejam interessantes, além da organização enfadonha, o leitor tem de deglutir um projeto gráfico muito ruim, cheio de fios e linhas emaranhados que se querem mostrar como design, mas não passam de rabiscos para atrapalhar a leitura. Ilustrações? Parece haver mais ilustrações que textos, e são muito ruins, infelizmente; além disso, o projeto de miolo e capa parecem não combinar entre si.
O que isto tem a ver com a obra e sua suposta qualidade? Tudo, pois a edição, mesmo que não pretenda, sugere oportunismo editorial: de tão rala (96 páginas em formato quase de bolso), parece necessitar de efeitos e enfeites para o leitor incauto adquirir “mais um” volume de Heloisa Seixas. Já tínhamos Contos mínimos, agora vamos a Contos mais que mínimos. O leitor fiel de Seixas se sente desamparado.
Na primeira parte, A morte dos amantes, a autora reuniu pequenos textos, quase sempre em terceira pessoa — ficcionais, portanto —, que falam de amores, feminino e morte. Ocorre que todas as estruturas são iguais: o leitor depara com uma pequena história cujo desfecho se resolve somente na linha final. Há uma busca da autora pelo fim inusitado, pela chamada rasteira no leitor; mas, na maioria das vezes, o fim é óbvio.
Em A penitência das flores, um homem vende flores de mesa em mesa. Por meio de clichês, a narradora o descreve: “com a leveza de um bailarino”; “havia em sua fala uma cadência, uma música — como se recitasse”; “É uma condenação que impôs a si mesmo”.
Por que penitência?, pergunta-se o leitor, lembrado do título. Uma personagem também pergunta qual seria o crime: “— Ele matou a mulher que amava”.
Dos títulos, sempre óbvios, ao final, os demais contos mínimos vão perdendo forças na última frase:
O tango é a música perfeita para quem vai matar ou morrer (Um tango de Piazzolla);
No tempo em que me é reservado, ele é completamente meu. A amiga sabia por que ela falava assim. Era amante de um homem casado (Mais do que qualquer outro).
Na segunda parte da obra, A marca da solidão, ainda narrada na terceira pessoa, a mesma estrutura se repete, como se repetem os lugares-comuns:
O nome do bar era quase um presságio: Bofetada (Uma bofetada na noite).
Na terceira parte, já escapando das questões do feminino, que muitas vezes lembram textos de Clarice Lispector, a primeira pessoa biográfica está mais bem integrada, pois lida com o tema O escritor e o homem. Neste trecho da obra, Heloisa fala de outros autores e reflete sobre as próprias questões artísticas, que assombram o escritor:
Escrever é um ato de solidão absoluta e assim deveria permanecer. A leitura corrompe, desvirtua. Talvez o livro já comece a morrer nas mãos do primeiro leitor (A leveza, ainda).
Assim, no volume todo não encontro propriamente originalidade nas reflexões, nas criações ficcionais nem na estrutura estilística da autora. É claro, relevem-se as necessidades trazidas da mídia impressa, de absorver textos leves, com títulos chamativos. Mas este não é, certamente, um dos bons livros de Heloisa Seixas.