A Carta ao pai de Franz Kafka talvez seja o documento mais impactante dentro da obra pequena, mas genial, deste autor inigualável. Foi concebida não como peça de ficção, mas para ser efetivamente uma carta na qual o escritor, aos 36 anos de idade e já sofrendo as conseqüências da tuberculose que iria levá-lo à morte em cinco anos, tenta fazer um acerto de contas tardio com Hermann Kafka — espécie de versão masculina, sombria e sem graça da folclórica figura da iídiche mame —, que tiranizava o filho e desdenhava das pretensões literárias daquele que viria a ser um dos mais importantes nomes da literatura universal. A carta que acabou famosa, todavia, não seguiu o curso planejado e nunca chegou ao destinatário. Consta que Franz a tenha entregue à mãe, Julie, que por sua vez não quis repassá-la ao marido, talvez por temer sua reação, embora o mais provável seja que o manuscrito de 50 páginas fosse parar no criado-mudo, seguindo o mesmo destino que Hermann mandava dar aos livros do filho ao recebê-los em casa — e com a mesma crueldade. Publicada postumamente, Carta ao pai tornou-se um título indispensável da obra kafkiana, não só por seu inegável valor literário, mas principalmente pelo muito que revela sobre o escritor e os fundamentos de sua ficção. Não é uma leitura fácil, muito menos prazerosa. A intimidade da tumultuada relação pai e filho está ali exposta com uma franqueza quase obscena, e a objetividade do discurso esconde nas entrelinhas a denúncia de um sofrimento tão grande que muitos leitores não têm estômago para vencê-la.
Em seu mais recente livro, Ribamar, José Castello não apenas se inspira na Carta ao pai, mas propõe com ela um jogo de intertextualidade que perpassa todo o romance. A trama é simples e parte do mesmo conflito de sua antecessora ilustre: com o pretexto de escrever a história do pai já falecido e cujo nome dá título ao livro, José narra sua viagem a Parnaíba, no Piauí, em busca de informações que o auxiliem a resgatar um personagem com o qual não conseguiu nunca estabelecer uma relação satisfatória e que, portanto, não conhece. Ou pensa não conhecer, pois à medida que se frustra com o quase nada que consegue apurar sobre a biografia paterna, vai também percebendo que muito daquilo que diligentemente busca fora pode ser encontrado dentro dele próprio. E, em igual sentido, o que não compreende sobre o pai é de certa forma o que desconhece sobre si mesmo. A descoberta paulatina dessa simbiose — tão óbvia quanto à primeira vista poderia parecer a de Franz-Hermann, ou seja, nada — leva à perplexidade do narrador e em seguida ao próprio desfecho da história. José se dirige com freqüência a Ribamar, o que confere um caráter epistolar à narrativa, e o texto emula na verdade a história da composição do romance, num outro viés metalingüístico que, se não é propriamente uma solução original, aqui faz todo o sentido.
Além da Carta ao pai, outros textos de Kafka — em especial A metamorfose, da qual Castello extrai, bem a propósito, o componente conflituoso da relação de Gregor Samsa com o pai, personagem do qual pouco se fala — são explorados em Ribamar, dando eco à primeira frase do livro, onde José declara sua obsessão pelo escritor checo.
Canção de ninar
Os 98 curtos capítulos se estruturam a partir de uma singela canção de ninar cuja partitura vem transcrita no corpo do volume e também na bela capa de Victor Burton, em outra de suas inspiradas criações. Cada capítulo corresponde a uma das notas da canção e à respectiva sílaba do verso. Castello procura estabelecer uma coerência entre a duração da nota e a extensão do capítulo: se a nota é uma mínima, o capítulo terá quatro páginas; se uma semínima, em torno de duas; se uma colcheia, um pouco menos que isso. Há também uma subdivisão temática: cada capítulo faz parte de uma série formada a partir de assuntos (“Kafka”, “Aves”, “Parnaíba” etc.) que se alternam dentro da ordem numérica maior. Assim, na abertura de cada capítulo aparecem várias informações: seu número seqüencial, o nome da nota, a sílaba do verso, o assunto, a posição que ocupa e a quantidade de capítulos em sua série temática e o valor da nota ou pausa. Até mesmo o sinal de repetição da primeira parte da cantiga é respeitado dentro dessa estrutura.
A procedência nordestina do pai, a atividade literária do filho e os nomes dos dois personagens são algumas das coincidências de Ribamar com a biografia do próprio autor que sugerem um romance autobiográfico. Mais do que isso, é o próprio Castelo quem confirma em seu blog: “Embora não seja uma biografia, ou um livro de memórias, mas um romance, tem como figura central meu pai, José Ribamar, falecido em 1982”. Tal fato, entretanto, não tem aqui a menor importância. Ao contrário de Kafka em sua Carta, a preocupação de Castello é puramente literária, e é sob este ângulo que devemos olhar para a obra. As convergências que realmente importam são de outra ordem. Para começar, a fruição do romance também apresenta dificuldades. A angústia do narrador é um pouco menos velada, o tom, um pouco mais alto em direção ao confessional, mas a concisão do discurso produz o mesmo efeito incisivo que vai causar desconforto em quem lê. Não há como se manter indiferente, a opressão que vive o personagem é real e também sufoca o leitor. Uma pausa será às vezes necessária para que leitor e texto possam respirar, cada qual a seu modo.
O aspecto mais difícil de ser analisado é a perfeita verossimilhança conseguida por Castello na construção de seu angustiado José. Estamos diante de um conceito que vem sempre carregado de um alto grau de subjetividade. Talvez o mais cômodo fosse então capitular com um suspiro e creditar o resultado ao fator autobiográfico. E outra vez é Castello quem insiste: “Segui à risca os conselhos de Gide e transformei meu romance em uma reportagem interior”. O problema é que a literatura não se deixa apanhar nesse tipo de facilidade. Ficção e não-ficção passam pelo mesmíssimo filtro: o ponto de vista de quem escreve. É ele que, em última análise, vai iluminar o que interessa e descartar o que não vem ao caso, garantindo, dentre outras virtudes literárias, a verossimilhança da história. E é por causa disso também que dois autores separados por um oceano e um século de cultura trabalham um mesmo conflito, estabelecendo inclusive diálogo entre as respectivas obras, e chegam a resultados tão distintos e igualmente válidos. Não fosse a genialidade de Kafka, talvez a Carta ao pai, por verdadeira que seja sua concepção, soasse inverossímil — e todos sabemos o quão inverossímeis podem parecer os absurdos da vida real. Da mesma forma, em mãos menos experientes, Ribamar talvez redundasse em fracasso, pois muitos são os riscos envolvidos quando o autor se entrega tão intensamente na composição de um personagem como José. Além disso, metalinguagem e intertextualidade são exercícios que vêm se tornando tão freqüentes quanto enfadonhos na literatura brasileira.
Driblando esses obstáculos todos, Ribamar é uma obra densa, bem realizada, rica em sutilezas estilísticas. Grande parte do sucesso deve ser creditada à prosa madura e elegante de Castello. As frases curtas e sempre objetivas dispensam eufemismos e filigranas. Cruas no sentido, denotam o cuidado com o ritmo, a eufonia, a precisão vocabular. As inventivas figuras de linguagem levam em alguns momentos a pensar em poesia, ainda que não se trate aqui do que se costuma chamar no jargão literário de “prosa poética”: o que sentimos é tão somente uma das conseqüências de uma prosa de qualidade. A mesma sensibilidade que cria belas analogias musicais conduz a colocação de uma vírgula, sempre na busca do melhor efeito. Assim como na música, o bom texto depende também de um ouvido apurado. Um ótimo exemplo é a cena em que o motorista pára o ônibus no meio da noite para expulsar um jumento que bloqueia a estrada, no trecho escolhido para ilustrar esta resenha.
Ribamar comprova uma vez mais a velha máxima de que para fazer diferença em literatura é preciso ter coragem de sujar as mãos. Sem assumir riscos, sem desafiar limites, sem a adrenalina gerada pela proximidade do passo em falso que faria tudo desandar não se pode ambicionar o topo. Só o tempo — os 50 anos mínimos já defendidos por alguém — terá o poder de ratificar o que se afirma aqui e agora: José Castello chegou lá.