Edição: Luís Henrique Pellanda
No dia 23 de setembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu o escritor paulista Reinaldo Moraes. Nascido em 1950, Reinaldo é autor de livros como Tanto faz, Abacaxi, A órbita dos caracóis, Umidade e Pornopopéia, este último finalista do Prêmio Portugal Telecom deste ano. Numa conversa com o escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda, o convidado falou sobre os rumos da atual literatura de ficção, lembrou episódios de sua vida e de sua carreira, suas primeiras leituras e a namorada de infância, e discorreu acerca de seus livros favoritos, de seus 17 anos sem publicar e do grande ofício de escrever, que considera uma espécie heróica de guerra, “contra tudo e contra todos”.
• O verismo e eu
No Pornopopéia, minha intenção era brincar um pouquinho com esta expectativa do leitor: quem é que está escrevendo? Brincar com a idéia do verismo na literatura. Se você — ou qualquer escritor em qualquer parte do mundo — escreve na primeira pessoa, vai gerar no leitor uma expectativa biográfica. “Não, o cara está falando dele mesmo. Ele esteve na guerra e está contando a história da guerra. Ele esteve na prisão e está contando a sua história na prisão. Ele foi junkie e está contando a sua história como junkie”. Agora, a única prova que você tem disso é o fato de o cara estar escrevendo assim: “Eu disse, eu fiz, eu falei”. E mais nada. Então, com o Pornopopéia, quis que o leitor esquecesse um pouco essa coisa de saber se o autor fez ou não aquilo que o seu narrador em primeira pessoa diz que fez. Na verdade, nem sei se é para esquecer. É uma questão que fica um pouco cambiante, ambígua. E acho interessante que seja assim.
• Nada de B. O.
Atualmente, existe um tipo de literatura se firmando que, acho, é o que está sustentando a chamada literatura de ficção. É esse tipo de literatura em que um cara escreve sobre algo que viveu. Você lê Cidade de Deus, do Paulo Lins, e ali tem muita ficção. Ele próprio já cansou de dizer isso, e só o fato de o autor ter armado aquelas histórias todas dentro de uma narrativa coesa já mostra que aquilo é mesmo uma ficção. A própria linguagem também faz isso. Mesmo que você vá contar algo que supostamente aconteceu, quando você o conta já está ficcionando, porque a linguagem verbal nos obriga a dispor as coisas de uma forma que não é exatamente aquela pela qual aconteceram. Mas, hoje em dia, você lê um livro e fala: “O Paulo Lins veio da Cidade de Deus, teve essa experiência de viver numa comunidade violenta. Estou lendo este livro com interesse por saber que essas histórias foram realmente vistas e vividas, e que o autor está me conduzindo a um universo que não conheço. E por isso o livro é legal”. Discordo. Um livro é legal porque é bem escrito, bem narrado. Um livro não é um B. O. Não é um boletim de ocorrência.
• Vale o que está escrito
A Bruna Surfistinha escreveu um livro que não tem nenhum mérito literário, mas vendeu milhões porque as pessoas querem saber como vive uma prostituta. O Drauzio Varella escreveu Carandiru, passou anos e anos convivendo com os detentos, e seu livro vendeu 600 mil exemplares, um recorde no Brasil. As pessoas o compram para saber como é a vida na prisão, naquela espécie de inferno organizado. Esse tipo de literatura vai acabar dominando totalmente a cena literária e aquilo que a gente chamaria de uma “literatura pura” — dentro de milhões de aspas —, na qual o cara não está usando a vivência dele como aval para o que está escrevendo. Quer dizer, ali, vale só o que está escrito. A realidade que esse tipo de ficção instaura só existe entre a capa e quarta-capa dos livros.
• Como vivem os outros
A gente pode citar infinitos exemplos de ficção não abonada pela experiência de seus autores e também, por outro lado, infinitos títulos de livros em que isso acontece, onde o cara está ali cozinhando, decantando experiências muito diretas da sua vida. Só que, na verdade, no auge da literatura do século 19 — com Flaubert, Balzac, Zola e outros autores menores, mas que vendiam muito —, o interesse era o seguinte: as pessoas que sabiam ler compravam aquilo para se entreter e se divertir. Não tinha televisão nem cinema. As pessoas que iam ao teatro, não iam lá todo dia. Então, a diversão doméstica era a literatura, e as pessoas não se perguntavam tanto se um cara tinha realmente vivido aquilo ou não. Elas queriam ler uma boa história. Aquilo tinha que ter uma boa trama, um bom gancho. Quem matou? Quem está apaixonado? Ele vai casar ou não vai? Fulano está namorando a mulher do outro — será que o outro vai descobrir? Vai dar rolo? Pois esses tradicionais ganchos romanescos prendiam a atenção das pessoas, que liam para se entreter. Num segundo plano, claro, liam também para saber como viviam os outros. O Balzac dizia: “As pessoas me lêem porque convivo com a alta sociedade parisiense, e a arraia-miúda — que sabe ler, mas que não a freqüenta, que não poderia jamais passar pelos portões dos grandes palácios — quer saber o que acontece lá dentro, como é o baile, como são as marquesas e os duques, quer saber da traição, da raiva e da grana, e como vivem as pessoas que não têm que ganhar a vida. Hoje, esse interesse já é fartamente suprido pela televisão e pelo cinema. Todo mundo já cansou de ver filme de guerra, de nobreza, de detetive e de junkie, filme do que você quiser, brasileiro ou estrangeiro. Essa janela para a vida dos outros deixou de ser literatura em algum momento.
• Pessimista
Então, as pessoas já não usavam preferencialmente a literatura como janela para ver outras realidades. E aí o pessoal das vanguardas, do século 19 para o 20, parte para outro negócio. Já imaginou o Joyce? Ele escreveu Ulisses, um livro complicado. As pessoas o liam para saber o quê? Como vive um jovem professor pobre com aspirações literárias, o Stephen Dedalus? Como vive um sujeito que tem um empreguinho mequetrefe numa espécie de agência de publicidade, o Leopold Bloom? A coisa se passa durante um dia só, e um cara fica tentando entrar na cabeça dos outros, num fluxo de consciência, passa de uma pessoa à outra, uma complicação para quem já estava afeito à narrativa discursiva, cronológica e linear. Passar para um negócio desses era uma ginástica que pouca gente se dispunha a fazer. E essa vertente mais experimental da literatura vai se acentuando com o surgimento de novas mídias, muito mais rápidas. Você, em duas horas, vê num filme como é a vida do outro. Esse é um pensamento um pouco simplista, mas extremamente verdadeiro: a literatura se refugiou num lugar de difícil acesso. Alguns escritores têm orgulho de praticar uma literatura que não é para todo mundo, que não tem uma legibilidade tão direta. É como se dissessem: “Se você quer diversão imediata, se você quer passar duas horas matando o seu tempo, vá ao cinema ou ao teatro de boulevard, entre no Youtube”. Ao mesmo tempo, a literatura se desobrigou de retratar realidades. Com isso, perdeu muito público, e vem perdendo cada vez mais. Acho que, a certa altura, as pessoas só vão ler essa patacoada de quinta categoria, essa mistura de ficção com auto-ajuda que é o que o Paulo Coelho faz. Mas as pessoas se interessam por isso. Acham que ali vão ter um crescimento espiritual, um contato mais profundas com si mesmas e com as instâncias superiores, invisíveis, que supostamente nos regem. Então, na verdade, acho que a literatura só vai servir para isto: para o leitor ver como vive um favelado e aprender a se aperfeiçoar espiritualmente. É uma visão bastante pessimista.
• “Conficção”
A “conficção” é muito comum. O primeiro livro de um autor costuma ser fortemente autobiográfico. O cara quer escrever e o assunto mais à mão é a vida dele mesmo. Quando comecei a fazer isso, eu estava em Paris, com 29 anos e uma bolsa de estudos, sozinho, num regime acadêmico que me dava muito tempo livre. Eu queria escrever, e fui escrevendo nos cafés, tomando um vinhozinho, aquela coisa romântica. Chegava em casa e passava tudo para a máquina de escrever. E aí comecei a criar um personagem, um sujeito que tinha ganhado uma bolsa de estudos em Paris, mas que, em vez de se dedicar aos mistérios acadêmicos, se punha a escrever o que lhe viesse à cabeça, e até mesmo sobre o nada. O filme que ele tinha acabado de ver, um mendigo na rua, uma gripe que ele teve, um passeio no metrô, uma garota linda passeando no cais. Ou seja, ele elegia as coisas sem nenhum estatuto histórico ou psicológico, simplesmente escrevia o que estava lhe passando pela cabeça. E aí vocês me perguntam: “Então você estava fazendo uma autobiografia?”. Não, porque esse personagem fazia uma série de coisas que eu não fazia, e passou a ter aquele contorno dos personagens picarescos de que sempre gostei, desde criança, quando lia as aventuras do Pedro Malasartes.
• Eu, um outro
Uma tia do interior tinha uma coleção de fábulas brasileiras, e eu adorava o Pedro Malasartes, aquele personagem safado, que estava sempre correndo riscos e se safando pela inteligência, essa inteligência muito imediata que é a coisa do malandro. E percebi que aquele personagem que supostamente seria eu, no Tanto faz, na verdade era ele. Era aquela história do “moi c’est un autre”, “eu sou um outro”. Aquele personagem não era eu, era esse Pedro Malasartes que sempre reverenciei como um personagem engraçado, gostoso de ler. Então meu personagem no Tanto faz estava comendo todo mundo, tomando todas e farreando, e eu, escrevendo a história dele, de madrugada, que nem um idiota. E pensei: “Acho que estou fazendo literatura”.
• O crítico manda prender
Meu primeiro livro, Tanto faz, saiu em 1981, e fiquei trêmulo esperando a primeira crítica. Ela foi publicada no JB, o jornal de maior prestígio intelectual da época. Pois o cara, lá no JB, escreveu uma crítica imensa sobre meu livro, uma crítica detalhista, simplesmente me arrasando, me esculhambando. O Tanto faz era composto por fragmentos, só que eu fui controlando esses fragmentos, compondo com eles uma passagem de tempo, uma espécie de saga meio solipsista. Mas o cara não viu isso. Ele só viu confusão, e disse: “Pô, esse sujeito nem sabe fazer uma história com começo, meio e fim, isso não tem pé nem cabeça”. Na verdade, tinha, mas ele preferiu não ver e abolir completamente a distância entre autor e personagem. Para ele, o cara do livro era eu. Mas eu fui a Paris como bolsista e cumpri todos os rituais e as liturgias de uma bolsa. Meu personagem não. Ele dá uma banana à bolsa, um va fanculo, e diz: “Não vou fazer porra nenhuma, vou viver no dolce far niente”. A brincadeira era essa. O cara chuta o mundo da produção, chuta a realidade e resolve instaurar ali uma espécie de bliss, de útero. O cara recria uma vida uterina totalmente agradável, sem responsabilidades. E esse crítico dizia: “Esse cara recebeu uma bolsa do governo francês e do governo brasileiro para fazer esse monte de patifarias e ainda escrever sobre isso? Onde estão as autoridades, os poderes constituídos, que não tomam uma providência?”. Ou seja, na minha primeira crítica, o cara mandava me prender. Fiquei paranóico. Falei: “Puta que o pariu! Caralho, vai estacionar um camburão aqui na frente!”. Era 81, era a ditadura. Lembro quem foi o crítico, mas não falo o nome dele. Nunca mais li nada nem soube nada daquele cara. Alguém, uma vez, me disse que ele era filho de um figurão do governo João Goulart, um cara claramente de esquerda, e que tinha também estado em Paris, com uma bolsa. Ficou indignado por saber que um sujeito tinha pegado aquele dinheiro todo para tomar vinho e tentar comer umas menininhas. E aí você começa a perceber que a literatura tem força. Porque se, nem por um segundo, passa pela cabeça de um acadêmico que está escrevendo sobre um livro, que aquilo pode não ser a verdade, que aquilo pode não ser um B. O. que o autor está fazendo sobre si mesmo, é porque o negócio tem força. Mas demorei muito a dar a volta por cima. Depois, começaram a sair críticas extremamente positivas sobre o Tanto faz, de pessoas bacanas, que tinham gostado do livro, e meu eguinho ficou um pouquinho mais inflado. Mas tomar uma primeira crítica dessa é barra-pesada.
• Filho único
As pessoas lêem coisas fantásticas. Você encontra quem, aos 14 anos, já tenha lido todo o Kafka. Aos 14, eu nem sabia quem era o Kafka. Ou então: “Comecei a ler Proust aos 16”. Eu nem sabia quem era Proust aos 16. Mas o negócio é o seguinte: sou filho único. E filho único tende a ser um cara que convive com a solidão. Meu pai trabalhando, minha mãe em casa, eu ali. E tinha a escola também. E horas e horas e horas de solidão. Meus pais me davam livros de Monteiro Lobato. Os doze trabalhos de Hércules, O Sítio de Picapau Amarelo. Livros que milhões e milhões de crianças da época liam. Mas eu também lia gibis pra cacete, todos os gibis da banca, tudo, e lia os livros da minha mãe, os “livros escondidos”. Ficavam num armário, à chave, só que eu sabia onde a chave estava e, sempre que fosse seguro, ia até lá, abria o armário e pegava um livro. Li Servidão humana, de Somerset Maugham, umas 30 vezes. Da primeira vez que o li, não entendi nada. Mas era um livro que estava trancado, por isso fui lendo, lendo, lendo até começar a entender um pouquinho o que estava acontecendo ali. Também li Eu e o governador, da Adelaide Carraro. E aí tinham as cenas de sexo. Sexo! Aquela coisa fantástica! Então, para mim, na infância, sobretudo, e dela até a primeira adolescência, a literatura tinha um caráter clandestino. Havia aquilo que eu podia ler e aquilo que eu não podia. E, quando comecei a escrever, escrevia aquele tipo de livro que não se podia ler, e que era muito mais interessante — apesar de Monteiro Lobato ser uma delícia. Eu também tinha o Tesouro da juventude. Meu pai me deu a coleção quando eu estava com 10, 11 anos. Eram 18 volumes e todos traziam condensações de livros. Eu lia Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco. Gostei tanto de Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, que depois comprei o livro. Quer dizer, eu era um garoto de 12 anos que tinha lido Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco! E não tinha com quem conversar sobre isso, não tinha um puto dum garoto a quem eu pudesse perguntar: “Você leu Amor de perdição?”. “O quê?” “Do Camilo Castelo Branco, aquele escritor português?” “Quê?!” “Aquele escritor português do século 19?” Não tinha condição.
• Ordem e desordem
Com 16 anos, descobri dois livros que me fizeram a cabeça. Memórias de um sargento de milícias e Memórias póstumas de Brás Cubas. Dois livros com títulos parecidos, por coincidência. Acho que devo ter lido o Manuel Antônio de Almeida primeiro. Memórias de um sargento de milícias é um livro delicioso que, a cada três, quatro anos, eu releio, e até o reli agora há pouco, na Flip, onde participei de uma mesa em que os autores liam um trecho dos livros que fizeram suas cabeças. (…) O texto do Manuel Antônio de Almeida tinha o mesmo figurino do Pedro Malasartes, e também dos meus personagens. É aquele tipo malandro que está sempre oscilando entre a ordem e a desordem, sempre dentro e à margem da sociedade. Um cara livre, que faz o que quiser, que se relaciona com pessoas engraçadas, que arranja amores fortuitos e noturnos, sempre com essa coisa da exploração da noite, a noite como outro universo. Tem o universo do dia, que é o universo da produção e da ordem, e o da noite, que é o universo do delírio, do sonho, do desejo, da sacanagem, da bebida, da farra. (…) Sempre tive essa paixão pela vida noturna, boêmia, uma espécie de pátria onde as regras que valem de dia ali não valem mais. Ou seja, na noite, você basicamente pode fazer o que quiser ou puder fazer.
• Brás Cubas e a Bíblia
Quando li o Brás Cubas, falei: “Putz, isso é do caralho! É o que quero ler pro resto da vida!”. Aquele estilo dubitativo, aquela ironia e, ao mesmo tempo, uma absoluta maestria na escrita. Uma coisa cativante e extremamente bem-feita, de você não conseguir largar. Devo ter lido o Memórias póstumas umas 20 vezes, e até mais. Virou uma espécie de Bíblia para mim. Quando comecei a escrever o Tanto faz, quando percebi que dali estava saindo um livro, parei e reli o Memórias póstumas. Eu estava em Paris e pedi para uma namorada me mandar o livro. Quando ele chegou ao Correio, fui buscá-lo, ansioso, e já o li no metrô, e o continuei lendo naquela mesma noite, e disse: “É isso, quero escrever isso”.
• Devastador
Se eu pudesse, pularia essa pergunta, mas vamos lá. Meu pai era um comerciário, um guarda-livros, nome que se dava aos contadores, e trabalhava numa firma de madeira. Depois, ele foi “pogredindo”. “Pogrediu”, “pogrediu” um pouquinho, e acabou abrindo um escritório particular de corretagem de madeira. Ele se associava a fazendeiros do norte do Paraná e de Mato Grosso (do Sul), na fronteira do Paraguai, que derrubavam madeira para botar gado. Comprava madeira a preço de banana, foi um grande devastador ecológico. Sou filho de um devastador ecológico. E era muito território, muita terra e muita madeira. Meu pai chegou a ter dois barcos, dois rebocadores no Rio Paraná. Eles desciam com as chatas vazias, instalavam por lá serrarias móveis, cortavam a madeira em toras, às vezes já em tábuas, as embarcavam nas chatas, e o rebocador subia o Paraná até Presidente Epitácio, pegava a Sorocabana e ia até São Paulo.
• Televisão, televisão, televisão
Meu pai não lia nada. Dormia lendo jornal. Minha mãe, que era normalista e se formou professora primária, é que gostava de ler. Ela era justamente aquele personagem do século 19 que sabia o suficiente para poder ler um romancinho. Mas, quando chegou a televisão, ela parou de comprar livros. Era televisão, televisão, televisão; e eu adorava a televisão também. Via direto. Só que a televisão era um canal só, dois canais, depois de 15 anos, três. Eu via desenho animado, depois começaram a pintar as novelas. Minha mãe parou de ler, mas ainda lia revistas, a Claudia… Então, vim de um meio muito pouco literário, muito pouco culto, o que não acho nem bom, nem ruim.
• Narcisismo primário
Li Memórias de um sargento de milícias e Memórias póstumas de Brás Cubas certamente por causa de um professor. Até me lembro de um professor de redação que eu adorava, e que me adorava também. Ele adorava minhas redações e eu adorava escrever redações, com aquele narcisismo bem primário. Eu escrevia para o cara gostar e vir me elogiar. Eu queria um retorno, queria que ele lesse e dissesse: “Porra!”.
• Pedófilo
Aos 12 anos de idade, tive minha primeira namorada palpável. Eu estudava no Caetano de Campos, um velho colégio público, e morava no Butantã. Lá tinha uma linha de ônibus elétrico. O ponto final era quase na esquina da minha casa. O ônibus subia a Augusta inteira e parava na porta do Caetano de Campos. Na volta — eu estudava de manhã —, subia uma menina com o uniforminho do colégio Luís de Camões, a Rosemary, que ia à tarde para a escola. Meu melhor amigo, que estudava lá e na mesma classe que ela, virou o nosso go-between. Ousei, um dia, escrever uma cartinha para a menina. Ela ficou extremamente tocada e escreveu uma cartinha de volta. No ônibus, quando a reencontrei — eu já sabendo que ela tinha lido minha carta —, fiquei vermelho, e ela também. E a gente acabou tendo um namorinho, de ir ao cinema no sábado. Comecei a escrever cartas para ela sem parar, todo dia uma carta, e o Paulinho, o meu amigo, era quem as levava para ela. Um dia, a Rosemary com 11 anos, eu com 12, a mãe dela achou as cartas. A menina tinha começado a ir mal na escola, e eu também, estava na primeira série do ginásio e tomei pau em tudo, menos em português. Eu não sabia nada, só sabia dois mais dois, só pensava na Rosemary e passava as aulas escrevendo para ela. Pois a mãe da Rosemary achou aquelas cartas e falou: “Porra, minha filha tá sendo seduzida por um sujeito de 20 anos!”. E ficou puta! “Porra, que qué isso, quem é esse cara, pô?”. E a Rosemary: “Não, é só um garoto de 12 anos”. “Quero ver esse menino, quero que ele venha aqui!” Aí, a Rosemary me ligou e disse: “Minha mãe quer que você vá lá, entendeu?”. E eu fui, eu e o Paulinho, eu com o uniforminho do Caetano de Campos, ele com o uniforminho do Luís de Camões. Fomos lá encontrar a mãe da Rosemary, que era cabeleireira, e tinha um salão. Eu tremendo. Quando a mulher abriu a porta e me viu, começou a rir: “Pô, é você que é o Romeu, o grande sedutor que escreve aquelas cartas?”. Um moleque magérrimo, cheio de espinhas! Não era nada parecido com aquele terrível sedutor que ia deflorar a filhinha dela. Aquela foi uma das minhas primeiras leitoras. Me levou tão a sério quanto o crítico do JB: “Tem que prender esse cara!”. Eu, um pedófilo seduzindo a sua filha.
• Fudeu
Quando voltei da França para o Brasil, trabalhei mais uns seis meses no Tanto faz, revisando o que já tinha escrito, e saí com ele pelas editoras. Três toparam, só que duas não tiveram mais nenhuma atitude em relação ao livro. E, de repente, a editora mais bacana dos anos 80, a Brasiliense, ia lançar a coleção Cantadas Literárias, e o Luiz Schwarcz — que era o meu editor e hoje é dono da Companhia das Letras — me disse: “Porra, você vai estar na Cantadas Literárias!”. Genial, porque meu livro saiu na editora de maior prestígio da época, numa coleção extremamente prestigiosa. Ela tinha sido inaugurada por um livro de uns italianos (Marco L. Radice e Lidia Rivera) chamado Porcos com asas. Era a história de uns adolescentes, filhos de ativistas políticos, que saindo de casa descobriram o sexo e as drogas. Fez um puta sucesso. E meu livro, o segundo da coleção, vendeu feito pão quente, pegando carona no primeiro. Aí, o terceiro foi o do Marcelo Rubens Paiva, Feliz ano velho, e o quarto, o do Caio Fernando Abreu, Morangos mofados. Durou alguns anos essa coleção. Saiu por lá a Ana Cristina César, o Wally Salomão. E aí, num belo dia, olhei no espelho e falei: “Porra, véio, cê virou escritor! Agora fudeu”.
• Picaretagem
Em 1985, veio o Abacaxi — inclusive, vão sair, agora, pela Companhia das Letras, esses dois livros, o Tanto faz seguido do Abacaxi, no mesmo volume. E o Abacaxi foi uma picaretagem. O dono da L&PM, o Ivan Pinheiro Machado, um amor de pessoa, ficou fã do Tanto faz e me disse: “Seu segundo livro vai sair por aqui”. E me deu uma mesadinha durante seis meses, uma coisa tipo um pau e meio, nem chegava a dois paus, mas para mim quebrava o maior galho. Eu tinha largado meu trabalho na Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo), vivia só de frilas e morava com dois amigos, uma menina e um cara. A gente repartia um apartamento e meus gastos eram muito baixos. Com o equivalente a um pau e oitocentos eu resolvia meu mês — não era casado, não tinha filhos. Então, recebi essa grana durante seis meses e, evidentemente, não escrevi porra nenhuma. Quando os seis meses acabaram, o Ivan me perguntou: “E o livro?”. Pois é. Peguei e fui para Mauá, me enfiei numa pousadinha barata com uma máquina de escrever e em 15 dias fiz o livro todo (faz mímica e barulho de digitação). Depois, voltei, trabalhei outros 15 dias, dei uma ajeitadinha no texto e o mandei para o Ivan. Outro dia, relendo o livro para dar uma mexidinha nele, achei um monte de coisas ruins. Pensei: “Mas por que ficou tão ruim?”. Porque eu estava querendo encher lingüiça. Naquela primeira redação, que fiz em 15 dias, o livro ficou com umas 70 páginas. E falei: “Pô, esse livro não vai parar em pé, tenho que encher mais lingüiça!”. E enchi mais um pouquinho. Ficou com 85. “Não, tá ruim ainda, tenho que passar de cem.” Daquelas enchidas de lingüiça, algumas eram até meio graciosas, mas a maior parte era só isso mesmo, encheção de lingüiça. Agora estou dando uma revisada no Abacaxi. Não tenho o menor pudor. Estou vivo, o texto está vivo, vai ser reeditado, vou mexer nele.
• Trauma
Aí fiquei 17 anos sem publicar. Meu primeiro livro me deu problemas em casa, familiares. Meus pais ficaram indignados, porque o Tanto faz falava de sexo e drogas. Quando percebi que meu personagem era um personagem de ficção, tomei a liberdade de fazê-lo falar sobre sua família com total desfaçatez. Mas, se o crítico marxista que estudou na Europa achava que aquele personagem era eu, imagina minha mãe e meu pai, um comerciante de madeira. O cara ficou puto da vida, depois ficou doente, e morreu logo em seguida. Talvez isso tenha me traumatizado um pouco. Mas também nessa época comecei a escrever profissionalmente. Conheci o (Mário) Prata e fui escrever novela com ele (Helena, na Manchete, inspirada em Machado de Assis). Comecei a escrever em revista, virei frila, passava o tempo todo escrevendo. E tentava também fazer literatura, escrevia pedaços de coisas que aproveitaria só mais tarde. Até no Pornopopéia tem coisas desse baú, que peguei dali e achei que podia ajambrar dentro daquela história. Então não fiquei sem escrever, fiquei sem publicar, porque não conseguia acabar nada. Escrevia um conto e ele não chegava até o fim. Começava um romance e ele ia até a metade. Eu estava muito disperso, foi uma época de muita loucura, de muita bebida e tal.
• Condições ideais
O Pornopopéia surgiu como um conto que eu ia publicar no Umidade, um livro que saiu em 2005, com dez textos. Ele seria o décimo primeiro conto. Eu brincava com o Luiz Schwarcz, que adora futebol — eu também, mas nem tanto —: “Esse livro tem que ter onze jogadores em campo”. “Legal essa idéia dos onze”, o Luiz dizia, “só que esse conto aí está com 60 páginas, muito grande, e nem cara de conto tem”. O Luiz é um barato. “Isso está com cara de romance inacabado”, ele dizia. E eu: “Então tá”. Mas pensei: “O que vou fazer com esse romance inacabado?”. Vou acabar. Sentei e comecei a escrever. Algo muito importante, e que as pessoas esquecem de mencionar em debates literários, tem a ver com as condições objetivas para um cara escrever. O cara tem que ter tempo e cabeça. E eu tive. Por sorte. Devo isso ao Mario Prata, com quem já tinha feito duas novelas, e que me chamou para fazer uma terceira (Bang-Bang). Em 2004, fui contratado pela Globo por um belo salário — para os meus padrões. Não havia muito trabalho a fazer. Quer dizer, havia picos de trabalho, uma ou outra semana em que a gente trabalhava muito. Isso antes de a novela estrear, pois ficamos trabalhando um ano antes disso e, às vezes, havia 15 dias sem nada que fazer. E aí eu tinha as chamadas condições ideais: uma idéia na cabeça, grana no bolso e tempo disponível. E mandei bala. Quando a novela estreou e começou a esquentar, quando entrou naquele ritmo industrial, eu estava num time de quatro, cinco roteiristas e tinha uma cota de oito a doze páginas para produzir por dia, coisa que eu tirava de letra. E continuava me sobrando tempo. Quando a novela acabou, fui despedido, recebi uma indenização e fiquei dois anos sem fazer nada! Só escrevia! Até gostaria de fazer isso de novo. Inclusive, depois vou passar meu chapéu e vocês façam uma contribuição. Para a continuação do Pornopopéia.
• Guerra contra todos
Isso foi fundamental. Eu só fazia isso, cara. Trabalhava todo dia. Fim de semana, férias. Com a minha mulher, com as meninas — tenho três filhas. Mas eu não queria saber: eram férias para elas, para mim era sentar e escrever. Eu acordava às cinco e meia, às seis da manhã, todo dia, já com a cabeça funcionando. Acordava e escrevia. Mas chegou um momento ali, sobretudo quando a grana acabou, em que a Marta (Garcia, editora da Companhia das Letras), minha mulher, falou: “Bom, e agora, como é que é? Não vai pegar um trabalhinho?”. Eu falei: “É, vou”. Mas não ia. E aí me ofereciam tradução para fazer e eu não fazia. Me ofereciam roteiro para escrever, eu torcia para não dar certo e não dava. Eu só queria acabar aquela porra daquele livro que não acabava. O desgraçado não acabava! Botei na cabeça: “Só vou acabar quando terminar”. Tautologia básica e ponto final. E falei: “Ó, nega, segura a onda aí”. E ela ficou puta da vida, começou a achar que eu estava louco: “Isso aí é uma loucura, como é que um homem da sua idade, com filhas, sem grana, fica aí sentado, das seis da manhã à meia-noite, escrevendo essa porcaria?”. De vez em quando, ela dava uma espiada e — “iiihhhh, putz!”. Ficou preocupada, falou: “Pô, vai num psicólogo, vai conversar com alguém”. E eu falei: “Fuck”. E acabou. Ela acabou gostando do livro. Mas tem uma coisa heróica nesse negócio de escrever. Porque, às vezes, aquilo vira uma guerra sua contra tudo e contra todos. E se não for assim não sai, cara.