De volta à tangente dos “laterais”

Um olhar sobre a branco-negra Tânger dos escritores e dos yuppies
Ilustração: Rettamozo
01/11/2010

Velha arma branca das almas expatriadas (por si mesmas), Tânger já fez salvar — e também, oh, fez perder — muitas vidas de “escritores laterais”, meu caro Brennand.

Nota para FB: Sempre tive um quase deletério fascínio pelo que eu chamo de “escritores laterais”. A palavra deletério vai, aqui, à falta de outra que bem situe uma admiração não isenta da desconfiança que (geralmente) não se confirma, mais adiante, quando você vê a vida da maioria desses escritores ratificando a sua escrita errática, um tanto indecisa e fugidia pelo menos naqueles que escolheram viver mais do que escrever etc. Por isso, eu os chamo de “laterais”. E também porque não estão, é claro, no tapete vermelho do mainstream literário, reservado para os profissionais (e não-laterais).

Cheguei a fazer uma lista deles — eu, que gosto de listas, ao menos para crispar o gosto, afiando a navalha das escolhas, em arte (sem falar das escolhas que fazemos na vida, quase todas erradas — até porque “o que quer você faça, você se arrependerá”), lista essa que se revelou, no final, incompleta e sujeita a infinitas revisões, no mínimo.

Sobre essa relação perdida, eu só saberia dizer que o limite, para cima, no conceito não-aprimorado (por sinal) de “laterais”, seria um Malcolm Lowry, talvez. E o limite-limite — abaixo do qual talvez não estejamos na frente de algum verdadeiro escritor etc. —, quem sabe seria o francês Victor Segalen, quase mais etnógrafo, médico e arqueólogo do que criador literário, apesar de René Leys ou A cidade proibida).

Aliás, na “carreira” de Segalen me interessa a parte da China, mais do que a da Polinésia — onde caberia unicamente Paul Gauguin, é evidente. O muito jovem Segalen foi para as ilhas, atraído pelo fascínio intratável da lenda do pintor, e tudo o que encontrou não foi mais do que um leilão miserável, numa cabana improvisada à beira-mar. Gauguin estava morto, e não havia mais nada ali (como, hoje, não há). Sem o artista, a Polinésia era um vazio só. Na China, é diferente. Primeiro, ali Segalen escreve o que é, muito provavelmente, uma obra-prima de indecisão e clima, hesitação, tédio e interesse pela vida abortado por alguma mão escura acima da sua cabeça de fartos cabelos à Rimbaud (o primeiro Rimbaud). Escava em ruínas de dinastias esquecidas e pratica medicina, preparando-se para morrer com o Hamlet nas mãos, num banal bosquete francês, onde se encerraria a sua existência — fascinantemente — falhada. Aliás, essa palavra deveria ter sido mencionada de logo, digamos, em torno de qualquer autêntico “lateral”: ele tem de ter falhado, humanamente falhado, para poder ter direito ao título de nobreza quase invertida (para — mal — descrever, no final, tão somente à vontade, sempre tardia, de ter calado em vez de ter falado), porque o silêncio é possivelmente, o que poderia nos salvar, e corrompemos isso, falamos, escrevemos, criamos para a confusão e — pior — para a “glória” sempre equívoca em arte. Fecha aspas [inexistentes].

De volta à Tânger dos “laterais”:
Alva cidade do litoral africano entre fronteiras da mente (só da mente?), ela sempre atraiu aquele tipo de “estrangeiro na própria pátria”, como foram Henry Miller, Paul Bowles e alguns outros americanos (geralmente) doidos e angustiados como atormentados eram também certos ingleses, franceses, espanhóis e alemães chegando em Tânger em busca de nada e de tudo, ao mesmo tempo. Em busca de salvação e perdição — entenda-se bem o que não dá muito para entender…

Sei lá. Os caras iam para Tânger. A branco-negra Tânger. A cidade que podiam indicar com um dedo preguiçoso, um olhar de desprezo sem objeto, uma rejeição muda (?) e feroz nos termos postos no auto-epitáfio de Ezra Pound, que ele depois esqueceu, quando se tornou realmente Pound e trocou a sinceridade pelos centavos da autocomplacência.

Tânger, então, significou — mais do que Aden ou outro lugar qualquer de recusa e evasão — armas de fogo traficadas e poemas e textos esquecidos nas gavetas de poeira, um lugar dos “sem lugar”, a praça dos solitários em busca de portos recuados para dentro de cafés obscuros e sexos indistintos à sombra de tendas e quartos de hotéis precários à beira dos desertos: Tânger oferecia isso, sem se parecer com as ofertas fáceis de um postal barato em rotogravura antiga.

— Você vai ficar?

— Vou.

— Então, acabou?

— O que você acha?

— Eu perguntei primeiro…

Tânger era assim.

O nome soava dentro do chocalho patinado do desespero: sino que não acalmaria nadie no Marrocos espanhol hoje para sempre mudado.

— Acalmar? Você falou em “acalmar”?

Quem tenta se acalmar, nessas terras distantes que se aproximam demais do eu?

Talvez alguns tentassem apagar um nome como a areia apaga os vestígios de capitais antigas, por entre adobes vazados e suks labirínticos, gentes vindas das terras altas no meio da ficção das miragens (que só existem na mente simples do turista típico).

Quando Paul Bowles chegou lá, Tânger era já um clichê — também. Fugitivo de si, ele veio e ficou na Meca dos artistas pobres e dos vagabundos profissionais da primeira metade do século 20 — ainda assim melhores do que os vagabundos amadores que hoje infestam esta Tânger cada vez menos parecida com seu espelho partido etc.

E aqui estou, também deformado pelos côncavos e convexos, agora entre os yuppies instalados, com o conforto de que necessitam (é claro), nos bares antigamente sujos de verdade, com pedaços de páginas de revistas velhas (nas partes claras) anotadas com a conta da despesa mínima, numa outra Tânger: aquela, barata, de antes dos ônibus de turismo.

Agora, os filhos dos donos (serão, mesmo?) dos antigos bares apresentam contas calculadas em caixas eletrônicos cuspindo as notas de bebidas energéticas do gosto dos yuppies que nunca leram Rimbaud, nem Henry Miller. Ou, do velho HM, ao menos o Trópico de Câncer, pensando em gozar de pornografia já clássica, essas coisas. Pobres yuppies profundamente entediados com a leitura da obra artística, e ainda mais chateados com a leitura de Paul Bowles, o anti-yuppie por excelência. E, bem, há novas lojas de artesanato de todo tipo — daquele que se pode comprar, de última hora, nos aeroportos da vida.

Yuppies? Agora, penso que é preciso encontrar uma nova palavra que não signifique só a inversão de hippie, porém, o contrário do contrário visto da antiga Tânger.

Porque se torna necessário que você não tenha uma mente velha, aposentada, de ex-hippie para se enganar com a Tânger que resta, depois que até Bowles morreu no quarto andar de um edifício comum, longe de todas as estranhezas buscadas, muito longe de casa, por casais como “Port e Kit”.

O céu da Tânger atual não protege mais ninguém da monotonia do consumo.

E ninguém mais consegue se perder conscientemente, numa cidade já caçada por todas as grifes.

Não há olhares de desespero — exceto pela propaganda, excessiva, de cartões internacionais de crédito convidando para viagens onde

VOCÊ PODE SE SENTIR ESTRANHO!

Com pagamentos parcelados em até 12 vezes!!
Quando todos podem ser “estranhos”, não existe mais a estranheza que foi, um dia, verdadeira e buscada — em Tânger.

Ou no fundo da Anatólia cheia de ônibus de visitantes subindo às altas capelas de Göreme com chocolates aerados cujas embalagens são largadas aos pés de velhos rostos bizantinos pintados na rocha calcária como fantasmas evanescentes de dúvida. E já existem hotéis escavados nos paredões vazados de capelas dos séculos quinto, sexto etc.

Nesta hora em que Tânger se torna parecida com um parque temático mais do que consigo mesma (pois Disney parece ser mais forte do que as Áfricas todas do espírito), é preciso evitar, alto lá, as Marrakeches pra lá de manjadas debaixo do olho de guias que nos levam para palmerais ensebados de almofadas, a fim de fazer fila para tomar chá de menta na ilusão dos oásis perdidos.

Pra onde foi Tânger? Ainda restará a velha Sannah, no fundo do Yemen das cavernas dos dançarinos de Tassili?

O que o turismo fez com os destinos de fuga que ainda existiam para mulheres fumantes — com piteiras —, senhoras desembarcadas, sozinhas, de navios, e não das bocas metálicas de fingers longos como o meu deambular por cidades ausentes de si próprias, debaixo de “freeshops” iguais em todos os terminais aéreos do mundo?

Mais do que fodida pelo FMI, a Grécia jaz prostrada — há muitíssimo tempo — sob os milhões de visitantes-formigas, subindo para a Acrópole como se o Partenon fosse de açúcar mascavo contra um céu pintado pelo ministério de alguma nova Melina Mercouri vulgarizando o Pireu (mesmo aos domingos). Os gregos ainda desejam os “mármores Elgin”? Pra colocá-los aonde? No antigo lugar vazio dos frisos? Isto atrairá ainda mais turistas? Os gregos enlouqueceram? Querem Santorini transformada numa Capri vulcânica que recebe 30 mil visitantes/dia?

Na pequenina Patmos, mais de cem pessoas são, já, uma multidão do Apocalipse do apóstolo que morreu “isolado” naquela ilha de presépio do mar Egeu pacificado como os monges do Meteora de agora. Hoje, um São João mais humorado não conseguiria se isolar em ilha alguma. Aliás, as ilhas se tornaram armadilhas (a da Páscoa que o diga). E não há mais viagens de aproximação lenta das Galápagos dos exemplares das Viagens maravilhosas de Jules Verne nas edições de Hetzel da minha infância viajando para fora do quarto.

Todos viajam para todos os lugares, atualmente, e trazem idênticas lembranças dos mesmos lugares visitados por um olhar de monotonia.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho