A vida sexual dos perus: prós e contras

Quando algo transforma o convencional num espaço de possibilidades, num território de encontros insólitos
01/11/2010

Falarei, como o título já antecipou, sobre os prós e os contras da vida sexual dos perus, assunto de grande importância para a nova ordem mundial.

Mas, antes de desenvolver esse tema tão palpitante e atual, falarei umas poucas palavras sobre o acaso.

A grande verdade, isso mesmo, a verdade irrefutável que ninguém quer aceitar é que não estamos preparados para lidar com o aleatório. É por essa razão que não percebemos o quanto o acaso interfere na vida de cada um de nós. O que move o mundo — o que determina o sucesso ou o fracasso em qualquer área — é uma infinidade de eventos imprevisíveis que nossa mente, ainda muito primitiva, não foi programada para reconhecer com rapidez. A necessidade vital que cada um de nós tem de se sentir no controle da própria vida — necessidade chamada pelos psicólogos de ilusão de controle — interfere com a percepção precisa dos eventos aleatórios. Estamos todos sujeitos às leis da probabilidade. É o que afirmam, em linguagem bastante complexa, muitos cientistas e filósofos contemporâneos. É o que afirma, em linguagem bastante simples, O andar do bêbado, saboroso best-seller do físico norte-americano Leonard Mlodinow.

Falarei agora, como prometido, sobre os prós e os contras da vida sexual dos perus, assunto de grande importância para os novos movimentos artísticos e literários.

Mas antes de desenvolver esse tema tão inquietante e misterioso, falarei umas poucas palavras sobre o século 20.

O século 20, esse século espetacular em que tudo aconteceu, esse século assombroso e cruel, que para muitos céticos radicais jamais existiu realmente — tudo não teria passado de uma gigantesca alucinação coletiva provocada pelo ópio ou pela heroína —, o século 20 foi o século principalmente do acaso e da incerteza.

Mesmo antes de Heisenberg formular seu famoso princípio, em 1927, trazendo a imprecisão para dentro do cotidiano da estrutura microfísica do universo, os artistas e os escritores de vanguarda já trabalhavam com o mesmo princípio, mas na escala do senso comum. Heisenberg falava da impossibilidade de se determinar simultaneamente, com precisão, a posição e a velocidade de uma partícula. Falava também do observador intrujão, que, ao observar determinado evento, altera esse evento com sua simples presença. Essa impossibilidade e essa intrujice têm até hoje um significado filosófico gravíssimo: elas estabelecem um limite poderoso ao conhecimento humano.

O acaso não é o caos. É apenas o avesso da causalidade. É o maior oponente da ilusão de controle e da pretensão de previsibilidade determinista. “O controle que se cuide; com o acaso ao meu lado, meu aliado, pretendo encapsular o controle, suas ilusões, até que se renda”, anunciou o psicólogo José Ernesto Bologna no poético artigo As causas do acaso.

Nunca esquecerei a surpresa que foi ler e ouvir John Cage, o músico-poeta que, tocado pelo Oriente e pelo I ching, em meados do século passado (teria mesmo existido?), reagiu vigorosamente ao conceito de música e de texto totalmente predeterminados. Nos Estados Unidos conservadores e antiquados, o anárquico Cage — acabo de saber que seu professor de xadrez foi Marcel Duchamp — compunha e escrevia fustigado pelo acidental. E seu princípio da incerteza criativa logo influenciou os compositores europeus. Depois de ouvirem, verem e lerem esse mago do aleatório adepto do Livro das mutações, Stockhausen e Boulez passaram a incluir o acaso mais ou menos controlado em suas composições. No plano literário, os melhores textos de Cage são os mosaicos intitulados Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores), em que uma série de operações aleatórias determinou as várias tipologias empregadas, quantas partes do texto foram escritas por dia e quantas palavras cada parte tem.

Mais conhecido e reverenciado entre nós é O jogo da amarelinha, o grande romance místico do grandioso Cortázar. Como o popular jogo infantil, esse romance — sobre o amor e a loucura — também pode ser lido e vivido aos saltos, cabendo ao leitor decidir qual será a ordem dos capítulos. No Quadro de orientação que antecede a narrativa, o autor sugere dois itinerários possíveis de leitura, um descontínuo, avançando e recuando no livro (do capítulo 73 ao 1, do 1 ao 2, do 2 ao 116, do 116 ao 3 e assim por diante, segundo o trajeto estabelecido a priori), e um contínuo e mais conservador (do capítulo 1 ao 56, prescindindo dos 99 capítulos restantes). Mas é claro que o leitor não precisa ficar preso a essa orientação preliminar. Muitos outros caminhos são possíveis, e desejáveis, proporcionando novos e inesperados encadeamentos cronológicos. Basta lançar os dados. Ou a moeda. O jogo da amarelinha faz com o objeto livro o que o acaso objetivo dos surrealistas fazia com o objeto cidade.

O acaso objetivo dos surrealistas… Entrar no cinema, sem antes consultar a programação. Abrir no meio e começar a ler um livro desconhecido, pego a esmo. Andar durante horas, sem qualquer itinerário ou destino pré-definidos. Essa era a disciplina de Breton e seus amigos, que desejavam mais do que tudo ser introduzidos no mundo proibido das “aproximações repentinas”, das “petrificantes coincidências” e das “cumplicidades inverossímeis” (Nadja).

Foi no final do século 20, no apagar das luzes desse século que segundo alguns jamais existiu, que o computador pessoal começou a entrar nos lares do mundo todo. A primeira vez em que eu vi um CD-ROM em ação — uma enciclopédia básica, para o público infantil —, foi inevitável, lembrei-me imediatamente de Cortázar e seu romance mais celebrado, de Cage e suas proposições para melhorar o mundo. As páginas do CD-ROM apresentavam uma ferramenta nova, impossível num impresso de papel de celulose e tinta de imprensa, chamada hiperlink. Por meio dos inúmeros links era possível saltar de um ponto a outro da enciclopédia, visitar textos, imagens e sons inter-relacionados. Pouco depois a internet, criada no final da década de 50 e expandida nas décadas seguintes, também começou a entrar nos lares do mundo todo. E o link espalhou-se feito praga pelo planeta. Mais uma vez lembrei-me de Cage e Cortázar, e de sua obra aberta a múltiplas leituras. Fiquei imaginando como seriam o Diário e O jogo da amarelinha da virada do século, totalmente estruturados em links.

E continuo imaginando.

A internet está aí há tantas décadas, oferecendo contos, poemas e ensaios escritos sempre da maneira tradicional, divulgando e resenhando antigos e novos livros, mas para a criação literária é como se ela não existisse. O html não interessa aos escritores. Não conheço um só autor que tenha tirado partido do link na criação de uma obra literária estruturada com os recursos da web. Uma obra literária mais interativa.

Continuarei esperando.

Agora passemos finalmente, como prometido, à palpitante vida sexual dos perus, seus prós e contras.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho