Devorada pela vida

Agualusa relança no Brasil o romance "Estação das chuvas", sobre a poeta angolana Lídia do Carmo Ferreira
José Eduardo Agualusa por Osvalter
01/11/2010

Em sua recente passagem pela Bienal do Livro de São Paulo, o escritor angolano José Eduardo Agualusa contou uma curiosa anedota sobre o desconhecimento do brasileiro em relação aos outros países de língua portuguesa. O escritor precisou explicar a um taxista brasileiro que o lugar de onde vinha, Angola, não ficava no Brasil, mas na África, ao que o taxista prontamente respondeu: “Parabéns, você fala muito bem português”.

Agualusa deve colecionar pequenas histórias como essa. Nascido em Angola, já viveu em Lisboa e no Rio de Janeiro, e é um dos escritores com melhor trânsito na comunidade de língua portuguesa. Não à toa, sua obra tem sido objeto de inúmeros estudos e ensaios acadêmicos, demonstrando que, ao menos nas universidades, as distâncias culturais entre esses países vêm diminuindo gradativamente. E o mercado de livros, felizmente, parece estar seguindo o mesmo caminho.

O último lançamento de Agualusa no Brasil é Estação das chuvas, romance de 1996, já lançado no Brasil pela editora Gryphus (2000) e relançado agora, em edição revista pelo autor, pela Língua Geral. Trata-se de um livro difícil de definir: romance histórico, biografia romanceada ou romance-reportagem? Como convém à grande parte da literatura contemporânea, essa flutuação entre os diferentes gêneros não se resolve. Estamos no terreno da ficção, definitivamente; mas de uma ficção em que realidade e invenção se confundem. Eventos históricos importantes do passado recente de Angola são narrados ao lado de estórias fantásticas (“estórias” com “e”, ao estilo de José Luandino Vieira) e personagens históricos contracenam com seres que, ao menos aparentemente, são do domínio da ficção. Mas nunca se sabe.

O enredo reproduz, basicamente, a investigação do narrador sobre a vida da historiadora e poeta angolana, Lídia do Carmo Ferreira, desaparecida em 1992. O método do narrador consiste em entrevistas com alguns personagens e, também, de muitas suposições: “É assim, pelo menos, que imagino a cena (eu não estava lá)”, diz o narrador, assumindo seus limites. Como jornalista e, de certa forma, como historiador, o narrador está consciente de que o passado contém muito de inventado e que a verdade, se há, será sempre parcial, recortada, nebulosa.

Fragmentos históricos
Como é comum nos romances de Agualusa, os capítulos de Estação das chuvas são curtos, o que intensifica a sensação de que a história oficial não pode ser reconstituída senão através de fragmentos que, sobrepostos, nem sempre compõem uma narrativa coesa. Casos de personagens inverossímeis se sucedem a relatos que parecem retirados diretamente dos livros de História, ou a trechos de entrevistas realizadas pelo narrador.

A vida de Lídia mal se distingue da história de Angola: conviveu com intelectuais e políticos como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e Amílcar Cabral, e esteve envolvida na formação de grupos pró-independência (que algumas notas providenciais ajudam o leitor mais desavisado a identificar), na longa e sangrenta guerra contra Portugal e na não menos dolorosa guerra Civil. O principal risco de um romance desta natureza é habilmente evitado por Agualusa, o de fazer um elogio fácil aos revolucionários, descritos com certo distanciamento, sem idealizações: “As estruturas de oposição ao colonialismo português multiplicavam-se por toda a parte, sobrepondo-se e confundido-se a um ritmo de vertigem”.

Interessante é que Angola é inicialmente sonhada por um grupo de poetas idealistas, jovens conscientes do “papel messiânico” que assumiam: “Escrevíamos para a História”, diz Lídia a certa altura. A poesia, porém, não dá conta dos intricados e violentos jogos políticos que se sucederão, nem a ficção basta para explicá-los.

A luta pela independência também inclui, como não poderia deixar de ser, certas figuras insólitas, como a de um homem que pregava que os angolanos fizessem sempre o contrário dos portugueses, ou seja, parassem de usar roupas, de comer em pratos ou usar papel higiênico. E dava o exemplo: “Começava a andar para trás, como um caranguejo, ou sentava-se numa cadeira com as pernas dobradas ao contrário, e virava a cabeça para as costas, e falava não pela boca mas pelo ânus”.

Estes e outros casos são contados ao narrador, que as relata ao lado de fatos históricos sem privilegiar uns ou outros. A própria genealogia de Lídia é permeada pelo fantástico, assim como a estórias de sua infância, que o jornalista ouvia atento, mas incrédulo: “Uma impressionou-me muito, porque não era possível. Mais tarde espantei-me ao descobrir várias referências a esse caso nos jornais da época”. Era o caso do caçador de sereias, cujos corpos eram em parte vendidos (como carne de peixe), em parte mutilados e enterrados em cova rasa (como as vítimas anônimas de qualquer de guerra). Inverossímil? Seguramente não mais que o empalamento de prisioneiros de guerra. Ou que a mórbida competição de alguns proprietários de terra, a de apostar quantos trabalhadores em fila um tiro de espingarda poderia perfurar.

Agualusa aposta, portanto, nessa justaposição de inverossimilhanças e horrores. E parece mais interessado em ressaltar a estranheza dessa justaposição do que ceder aos confortos do realismo mágico. Estranheza personificada em Lídia: filha da história e das estórias de seu país, ela foi afastada de sua família, no interior de Angola, para ser criada em Luanda pelo avô; educada, militante, poeta, viveu em Olinda, Berlim, Paris, mas carrega suas raízes consigo. Ela não pode deixar de pensar no louva-a-deus que teria magicamente marcado seu nascimento, ou ignorar os dizeres oraculares da avó, que a acompanham até o fim: “A vida vai-te comer”.

A identidade de Lídia é cindida. Por ocasião da independência de Angola, Lídia “estava lúcida e não sentia nada, nem a amargura dos derrotados, nem a euforia dos vencedores (naquela noite era as duas coisas ao mesmo tempo)”.

Este tema — o das identidades frágeis, incertas ou em construção — é dos mais caros a José Eduardo Agualusa, basta lembrar de romances como Um estranho em Goa ou As mulheres do meu pai. Mas talvez o título mais emblemático neste sentido seja O vendedor de passados (2004), uma história de identidades falsas narrada por uma osga (lagartixa). Este insólito ponto de vista dimensiona a estranheza da composição das identidades no romance: a osga narradora, mais tarde nomeada de Eulálio, habita a casa de Felix Ventura, um angolano albino cujo trabalho é criar identidades falsas.

Quase como um escritor. Em Angola, as fronteiras entre o fato e a ficção podem ser indiscerníveis: o vendedor de passados documenta detalhadamente as identidades ficcionais, que passam a fazer parte da história do país, e promove o enraizamento de personagens viajantes. Na construção da história oficial angolana — em que se alternaram diferentes grupos no poder — a substituição de ideologias oficiais, a busca de um modelo cultural de “angolanidade” provocada pela ruptura com Portugal e a coexistência de culturas diferentes (e cada vez mais universais) resultam na fragilidade das identidades — políticas, nacionais, pessoais, literárias.

Se tudo é ficção, até mesmo a nação pode ser, mais do que uma “comunidade imaginada” (para usarmos a célebre expressão de Benedict Anderson), uma comunidade inventada, ficcionalizada em cada uma de suas partes. É assim em Estação das chuvas. O que mais esperar de um país cuja história é feita por poetas?

O leitor mais atento pode concluir que Estação das chuvas é apenas mais um romance que segue a cartilha de boa parte da literatura contemporânea (rotulada de “pós-colonial”), em que se confundem história oficial e ficção, relato historiográfico e realismo mágico, e na qual não podem faltar certa dose de discurso metaficcional e misturas de gêneros textuais. Esse leitor exigente pode evocar certos romances de Salman Rushdie, José Saramago e Pepetela, e não podemos dizer que ele não tenha lá um pouco de razão. Nada disso, porém, desmerece a obra de José Eduardo Agualusa. Escritor de seu tempo, é certo, é preciso compreendê-lo como um novo e necessário passo da literatura angolana. Se antes o momento era o de buscar a essência do que quer que fosse a “angolanidade” e de se criar uma identidade que marcasse a ruptura com a metrópole portuguesa, agora é vez de se olhar criticamente para os longos e sangrentos anos de libertação.

Um pouco como o próprio narrador de Estação das chuvas. Se a geração de Lídia possuía certo idealismo poético e ideológico, o narrador avalia a história recente do país em busca de um sentido para o horror crescente que presencia nas ruas. Mas não o encontra. Resta-lhe o exercício literário — não como arma de guerra ou expressão da nacionalidade — mas como expressão do desconforto e do estranhamento dos exilados em seu próprio país. Afinal, como nos versos de Lídia do Carmo Ferreira, “o exílio é onde em nada nos reconhecemos”.

Estação das chuvas
José Eduardo Agualusa
Língua Geral
344 págs.
José Eduardo Agualusa
Nascido em Huambo, Angola, em 1960, José Eduardo Agualusa escreve romances, contos e peças de teatro. Entre seus livros mais importantes estão Nação crioula, baseado na Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, Um estranho em Goa, As mulheres do meu pai e o recente Barroco tropical. Em parceria com o moçambicano Mia Couto, escreveu a peça Chovem amores na Rua do Matador. Seu próximo romance, Milagrário pessoal, deve ser lançado em Portugal em setembro. É um dos fundadores da editora Língua Geral, dedicada exclusivamente a autores de língua portuguesa.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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