As paisagens continuam no mesmo lugar
as folhas rastejam pelo piso do pátio
se acumulam, protegidas, à espera
da rajada
de rodopiar pelos ares
um disparo, o vento
assobiando para ruas desertas
as construções interrompidas comportam-se como prédios bombardeados
os pássaros continuam laboriosos
cantam com mais força
o eco se multiplica
em silêncios letais
que se espalham feito pestes
as paisagens continuam no mesmo lugar
do mesmo jeito
você pode abrir as cortinas para ver
são meus olhos que estão envelhecendo depressa
não a folha que amarela indiferente
sempre no seu próprio tempo
as montanhas já estavam aí milhões de anos antes
talvez os vulcões entrem em erupção agora
talvez eu esteja enganada
o tempo não dará conta de tudo
sinto por você algo antigo
quase extinto quase
uma solidão
não consigo localizar a ferida
ouço os gritos
as palavras que não se dizem
há muito sangue ao redor
………………..
Orquestra
Toda noite me debruço sobre a janela que dá para uma cidade desabitada.
Penso que não cheguei a conhecer nada sobre os moradores dos prédios que margeiam minha rua.
A história não tem importância nenhuma, você diz
as coisas que mais amei na vida são imagens esparsas, perdidas.
A dor se expande no tempo, não no espaço.
Presto atenção no som das estrelas se movendo.
Parece que alteraram a trajetória do planeta.
Abril dura um ano inteiro. Talvez junho se transforme em dezembro. Fevereiro tem a distância de um sonho.
Enxergo Saturno pela aba do chapéu que não enfrenta mais o sol.
Desfaço o coque para recuperar o lápis amarelo.
É possível reger uma orquestra inteira
com um lápis amarelo.
Improviso passos ao som de uma sonata de Mozart
o trajeto da sala percorrido com a vassoura em gala.
Não posso mais me perder por essa cidade
então procuro esconderijos pelos corredores, atrás das portas, dos vestidos compridos
meus ouvidos se esquecem aos poucos dos sons produzidos por uma rua.
Talvez eu esteja ficando surda.
O barulho da máquina de lavar também pode ser uma música
assim como os alarmes que disparam
o cachorro pedindo alguma coisa a um fantasma.
Uma vela está acesa no sétimo andar do prédio da frente.
Os pavios queimam mais devagar do que eu gostaria.
Um enterro. Um réquiem.
Enquanto isso lá fora rostos se cobrem
buracos se abrem.
O céu azul é quase uma ofensa.
Minha avó não foi feliz
enquanto cruzava a Europa tremendo, temendo
e procurando uma bomba invisível
que também não consigo enxergar
daqui da janela
mas está caindo
em silêncio
em algum lugar tão longe
em algum lugar não longe daqui.