“Ó lua, fragmento de terra na diáspora,/ desejável deserto, lua seca (…) Hoje, por preposto de Deus escolho-te,/ clarão indireto, luz que não cintila”. Esses versos de Adélia Prado, que puderam ser lidos na edição comemorativa do Rascunho em abril do ano passado, reaparecem agora na nova coletânea de poemas da autora, A duração do dia. São versos notáveis, que falam ao leitor da claridade difusa que marca presença no livro, não apenas como uma radiância da maturidade, mas como uma das mais belas metáforas da poética de Adélia: tornar suportável aos olhos o fulgor do sagrado através de uma veladura.
A duração do dia é um livro envolto na luz do crepúsculo, oráculo de uma luz eterna, “iminente aurora”. Entre tarde e manhã, no tempo da vigília, Adélia faz coro à voz do evangelista: “Ficai e vigiai comigo”. Sob essa luz branda, esfumada por uma neblina que atenua o contorno das coisas, num indício da proximidade do mistério, pela poeta traduzido na respiração de Deus, a palavra surge como expressão de um bem supremo, um dom do sétimo dia, “clarão inaugural que névoa densa/ faz parecer velados diamantes”.
Nesta hora em que o cansaço recai sobre o corpo na forma de uma bênção, quando “nada é voraz”, também uma tênue claridade doura a memória. Adélia se lembra da mãe lhe ordenando, pouco antes de morrer: “Vai calçar um trem,/ agora mesmo a casa se enche de gente”. Essa mesma lembrança já constava nas primeiras páginas de seu livro Quero minha mãe, narrativa publicada em 2005: “Coitada da minha mãe, tinha tristeza de me ver descalça e a minutos de encontrar o julgamento divino cuidava para que não me vissem com os pés no chão”. Mas é justamente com os pés no chão, misturando-se às coisas deste mundo, sujando-se no escatológico da vida, que Adélia se depara com sua orfandade, a partir dela criando a ponte entre o terrestre e o supra-terreno, entre a imagem e “o real para além da imagem”, entre o corpo falível, histórico, nascido do pecado e da dor, e a eternidade.
A equação poética da qual resulta e resplandece um terceiro corpo, fecundado em amor, na poesia de Adélia, poderia ser sintetizada do seguinte modo: “Ainda que em chão de lua,/ todo destino é o chão”. No entanto, “escreve-se para dizer/ sou mais que meu pobre corpo”. Acontece que a beleza, “a beleza transfixa,/ as palavras cansam porque não alcançam,/ e preciso de muitas pra dizer uma só”. O poema de Adélia desponta de um estado de graça, e assim o faz por um rasgo, uma fresta no tempo, um olhar oblíquo para o abismo que atrai a alma, como a uma noiva, para o júbilo da unidade.
Alimento de Deus
No poema Rute no campo, evocando mais uma vez a personagem bíblica já presente na epígrafe de abertura do livro, Adélia escreve: “Não parecem meus meus pensamentos”. Ao respigar versos do cotidiano em Divinópolis, como Rute respigava entre feixes de trigo, Adélia fala da fome insaciável do corpo, da brancura de lírios e de dentes, do microcosmo que se expande entre formigas, cigarras e varejeiras, e em seu olhar de esguelha para a luz eterna, a poeta fala do corpo oferecido a Deus como alimento e do tremor de ver “Seu rosto sob os vermes”.
Mas não somente o microcosmo do dia a dia interiorano inspira Adélia a falar dos mistérios divinos. Também a realidade cruenta do mundo alimenta seus versos, como é o caso do poema O ditador na prisão, sobre a morte de Saddam Hussein, em que ela escreve: “Eu que vivo extramuros tremo pelo destino/ de quem deprimiu o chão com sua bota de ferro./ (…)/ A misericórdia de Deus é esdrúxula,/ o mistério, avassalador./ Por insondável razão não sou eu a prisioneira./ Minha compaixão é tal que não pode ser minha./ Quem inventou os corações/ se apodera do meu para amar este pobre”.
Mais do que a danação, mais do que os lobos e os fantasmas que assombram por dentro, é uma vida de privação, de pobreza e de silêncio que seduz a poeta. No poema Ofício parvo, Adélia roga à Virgem Maria: “me livra da tentação/ de sofrer mais do que Deus”, versos que fazem lembrar Simone Weil quando dizia cometer o pecado da inveja ao contemplar a imagem de Jesus crucificado. “Desejar o martírio é muito pouco”, diz Simone Weil. “Rezar demais é ter rezado nada”, escreve Adélia. No entanto, a compaixão da poeta vai além de sua vontade, seus pensamentos não parecem ser apenas seus, e o amor que incendeia suas palavras ama também por aqueles que já não amam, tal como “a muda de olhos azuis/ que morava com as freiras/ dava equilíbrio ao mundo,/ porque era muda e eu não”.
Em vez de esconder seu sofrimento e posar entre livros para a típica foto do “escritor no seu gabinete”, a poeta senta sob o sol chupando tangerinas, dando-se em uma pintura viva aos olhos de Deus. À beleza desse gesto, tão natural e pleno, corresponde a luxuosa gratuidade da poesia, que exubera por ser uma oferenda. Assim, prestes a completar seus 75 anos, em seu décimo sétimo livro, honrando uma trajetória sempre regida pela poesia, mesmo nos domínios da prosa, Adélia prossegue em sua via poética, oferecendo a Deus sua “colher de açúcar” como uma das abelhas que Matisse esboçou certa vez em um estudo para os vitrais da Chapelle du Rosaire em Vence.