Dia desses um amigo telefonou: “Luiz, me separei. Estou um pouco triste, mas isso está me fazendo crescer”. Se separação fizesse alguém crescer, eu já teria uns cinco metros de altura e Madre Tereza de Calcutá não daria nem pra saída. São besteiras dessa magnitude que conseguem exterminar qualquer quantidade de tolerância de um ser humano não iniciado no esoterismo e em outros escapismos perniciosos. É graças a esse exército de tolos que os livros de auto-ajuda são mais e mais consumidos.
Pois entrei pra turma. Acabo de ler um “furioso livro de auto-ajuda”, A arte de ser desagradável, do americano Jim Knipfel. Se Whitman avisou que ao tocar em seu livro o leitor tocaria num homem, Knipfel não fez nenhum alerta, mas quem ler A arte de ser desagradável também tocará num ser humano, pele e alma. Mais pele, muito mais.
Knipfel revela suas memórias, e não é para dizer que em uma de suas vidas passadas foi um faraó e na seguinte, um rei e que ainda se lembra de quando foi um rico fazendeiro. Não, A arte de ser desagradável não o fará desperdiçar seu tempo com bobagens dessa ordem. Embora não pareça, trata-se de um livro extremamente sutil. E não acredite na esparrela que aponta facilidades em ser sutil num estilo mezzo Bukowski, mezzo Hemingway. É na profundidade da temática que se vislumbrará a delicadeza angustiada desse autor.
Não pense que Jim Knipfel embarca na canoa das obviedades e cita esses dois autores a torto e a direito. Falei em sutileza, lembra? Ele cita, algumas vezes, Samuel Beckett. E ao citar o autor irlandês, as mazelas físicas e existenciais de Knipfel nos levam a Winnie, de Dias felizes, a mulher vaidosa e enterrada. Ela fala da vida, relembra seu passado e, enquanto isso, afunda até ficar apenas com a cabeça para fora. Resignada ou otimista? Ela diz: “Ah, hoje é um dia feliz!”. Winnie conserva algumas ilusões, é óbvio, mas Knipfel parece tê-las perdido muito cedo.
Por outro lado, A arte de ser desagradável conduz a Esperando Godot. A diferença está no fato de agora não termos como protagonistas dois vagabundos perdidos entre reflexões filosóficas e nonsense. Quem está no comando é Jim Knipfel, que, apesar da quantidade de bobagens que profere, não se perde jamais. Tampouco se deixa iludir pela redenção que ainda espera. Nada disso, o personagem é seco, sarcástico, nojento no início, sem perder a ternura jamais. Knipfel também remete ao Tolstói de A morte de Ivan Ílitch, ao abordar a morte e as dores morais.
De repente a pilha de roupas gritou para mim.
— Você aí! Conlicem!
Parei e virei para trás, tentando decifrar o que acabara de ouvir e confirmar se realmente tinha ouvido.
— O quê? — perguntei. Foi então que vi um rostinho minúsculo e esquálido no topo da pilha.
— Eu disse: “Você aí. Com licença, poderia dar um cigarrinho para uma velha?”
Ela foi tão educada que não pude recusar. Quando retirei um cigarro do maço e passei para ela, a mulher ergueu os olhos e examinou meu rosto.
— Oh — disse ela. — Vejo que você também está chorando.
Passei o dedo no rosto. Ela estava certa. E eu nem tinha percebido.
Jim Knipfel, com A arte de ser desagradável, por mais desagradável que pareça, pintou o meu, o seu, o nosso retrato. Assume que às vezes tem ímpetos de empurrar alguém vidraça adentro, que detesta papos espirituais, que não acredita nessas questões além-matéria. Nós, por “medo do castigo divino” tentamos incansavelmente negar nosso lado sórdido, nossas mesquinharias, o quanto conviver com o outro nos incomoda. Tentamos, tentamos, e o pior, aí também fracassamos.
Descrente leitor, você precisa mergulhar nas páginas de A arte de ser desagradável. É na introdução desse livro que o autor manda essa: “Sempre que ouço a palavra ‘espiritual’ saco o meu revólver”. Para sobreviver, ele faz uso daquilo que se convencionou chamar de “budismo para cachaceiros”. Depois dessa nada poderá surpreendê-lo, o aviso foi dado. Seguirá um relato seco, cruel e repleto de humor. Narrado por um homem maduro incapaz de se render às limitações físicas, entre elas a cegueira, A arte de ser desagradável é um livro de memórias completamente desprovido dos convencionalismos comuns ao gênero. Imprescindível. De se ler, rir e chorar.