Uma introdução à nova edição — que se anuncia, pela Editora Bagaço — da esgotada tetralogia de Hermilo Borba Filho (Um cavalheiro da segunda decadência) deveria ser inteiramente desnecessária, para tal obra e tal autor, mesmo levando-se em conta que é o Brasil um país desatento e desmemoriado, culturalmente falando.
Porém, por muitos motivos se torna necessária, como texto prévio à leitura da reedição mais que oportuna, com a intenção de preparar principalmente os mais novos para o encontro com uma obra tão sólida quanto negligenciada pela crítica retrospectiva, em cujo campo vem encolhendo, nos últimos anos, o ressoar do nome do escritor referência tanto do nosso teatro quanto da literatura que foi paixão igual, para ele, igual à do palco, no seu coração encravado nessa tão sofrida Palmares (cidade que o rio Una castigou duramente, no inverno passado).
Encravado lá, no torrão de “Ascensão”, mas também rolado pelas ruas do Recife e de São Paulo, para se dilatar até o universalismo que é marca hermiliana acima de tudo, nesses romances nos quais o motivo biográfico é trabalhado à maneira do retrato ficcional de um “cavalheiro da segunda decadência”, conforme o título geral buscado num dos volumes do Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell.
Mas, vamos por partes — segundo costuma se atribuir ao estripador também britânico. Primeiro, lembremos que o poeta (e ficcionista) Jorge de Lima lembrava: tudo é biografia. Depois, façamos de conta que eu não usei o chavão das “partes” — porque não aprecio chavões de qualquer tipo, incluindo a recorrente bobagem que quantifica (e, quem sabe, de certo modo quase estigmatiza) Pernambuco como uma “terra de poetas”. Será?
Que aqui nós temos uma linhagem que vem do mar de naufrágio da Prosopopéia, isso ninguém discute, pois ela existe e se espalha pela costa de acidentadas pedras — na educação pelas mesmas —, entre estrelas da tarde e trens subindo a serra etc. Sem nenhum estreito bairrismo, não me lembro de outro estado que possa alinhar três poetas modernos e já clássicos como Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo e João Cabral, porém isso não autoriza generalizações de superfície, através das quais arrisquemos a cristalização da idéia-chavão literariamente imprecisa, sociologicamente equivocada e historicamente sumária, de que “temos poetas mais do que gente”, ou de que teríamos, por comparação, poucos ficcionistas nascidos cá nestes antigos domínios nassovianos do século 17.
Gente, nós somos urbis desde tal tempo — bem remoto, a esta altura. Há, pois, um sedimento aqui, uma lama, uma exsudação de paredes suadas de experiência humana, em ruas e praças de nativos e imigrantes, judeus e gentios, Clarices e Augustos dos Anjos palmilhando pontes incertamente iluminadas que também viram Orson Welles cantando a Marselhesa (por que diabo o hino francês?) em madrugada compartilhada com Tomás Seixas, Benício Dias e Caio Souza Leão… E todo esse depósito, tudo que fermenta nesse limo bom de estranhamentos e entranhamentos, oferece um caldo de cultura que teria de fermentar no trabalho de contistas e romancistas, inevitavelmente.
O advérbio é esse. Porque é inevitável que tanta história, tanto sol, tanto mar, tantas levas de recém-chegados e pós-desaparecidos como o amigo de Marcel Proust que Matheos de Lima foi descobrir como misterioso pensionista no Hotel do Parque (onde funcionava um restaurante japonês no qual vi Hermilo pela última vez, almoçando com Leda, acenei-lhe e ele devolveu o aceno com aquele seu fraterno sorriso embigodado), tanta recordação e tanto húmus rurbano de quatro séculos não deixariam de desembocar em ficções criadas com base no inconsciente coletivo de um Recife já urbe, sob Maurício de Nassau.
A cidade tornou-se complexa cedo. Com Francisco do Rego Barros, com o francês Vauthier, com o inquieto Delmiro Gouveia e suas visões antecipadas de um “shopping” (no Derby), no último quartel do século 19, ela, a capital do Leão do Norte, viria a esplender como Vésper iluminada, para bem ou para mal, entre outras modernidades que forjariam inclusive um ciclo recifense de pioneiros do cinema etc.
Foi esse Recife que acolheu o Hermilo de Palmares, vindo da mata crescendo nos pastos da noite confundida pelos cavalos atraídos pelo canto-limite do oceano Atlântico, à beira do qual tivemos o destino mais ou menos determinado pela proximidade da Europa influente, antes da América do Norte de poderes ainda mais fortes, depois da Segunda Grande Guerra.
Voltando aos séculos da formação brasileira, nós éramos já um ensaio de metrópole, portanto, quando a futura São Paulo ainda patinhava na produção de bandeirantes dispostos a assassinar índios como quem esmaga formigas, com a pesada bota branca de pregos de ferro. Com isso, eu quero lembrar que tivemos, desde logo, o material — feito de pedra e carne — que também gera ficção de alta qualidade, a par da poesia da “terra de poetas” da imagem cansada por sobre inexata.
Desde um Carneiro Vilela contando a história da emparedada da Rua Nova até os romancistas atuais — que se dispersam em muitos caminhos, todos saídos do porto de lembranças diante da fileira de mastros do cais da capital que evoca ao mesmo tempo Alexandria e Dublin, Tânger e Glasgow —, Pernambuco é o estado de origem de ficcionistas de status maior, entre os quais cito Luís Jardim e Osman Lins, destacadamente. Os dois escreveram duas das obras-primas do romance brasileiro: Jardim — o talentosíssimo Luís, vindo das flores de semi-incestos de Garanhuns — lapidou o diamante exemplar de observação psicológica intitulado As confissões do meu tio Gonzaga, que Gilberto Freyre não cansava de elogiar (ele que tentou ser o seminovelista de uma seminovela — Dona Sinhá e o filho padre — semi-realizada como semificção), sem que seus elogios sinceros despertassem a atenção que o magnífico Gonzaga segue merecendo. Quanto a Osman, não é preciso lembrar mais do que o moderníssimo Avalovara, romance do qual já foi feita sutil aproximação de sua estrutura até com o sistema Windows de “janelas” — isso quando a computação estava ainda muito longe das nossas praias, e Lins já trabalhava as “molduras intertextuais” e outros conceitos que antecipavam, no tempo, os estudos mais avançados da estrutura da narrativa (no que coincidia com as preocupações do Cortázar “francês” dos jogos verbo-visuais etc., ao pugnar também por um leitor que não fosse passivo diante do texto).
Tivemos também Lucilo Varejão — acomodado na imaginação provinciana —, o caruarense José Condé mergulhando em facilidades (algumas, saborosas) e o Tomás Seixas do belamente híbrido Sonata a Lilian, que é, para mim, mais do que prosa poética: em parte funciona como o romance que nem Seixas nem Renato Carneiro Campos escreveram (embora juntassem material e talento à beça). Nomes mais recentes são Gilvan Lemos, Maximiano Campos, Raimundo Carrero, Luzilá Gonçalves, Nagib Jorge Neto e outros.
Então, esse negócio de “terra de poetas” é coisa de poetas interessados em poetas.
Pernambuco é terra de ficcionistas, simultaneamente, e um dos seus narradores mais completos — e o único que adotou a narrativa confessional como mainstream — é o Hermilo Borba Filho autor desta tetralogia de primeira grandeza, destemidamente jogada no rosto do ambiente convencional no qual o escritor de Palmares era um estranho no ninho, a desovar livros lançados com impacto, na época, e em seguida travados, em termos editoriais, por questões de espólio só há pouco francamente resolvidas.
Quem conheceu Hermilo é que pode melhor avaliar o quanto ele apreciava a franqueza. Isso marcou a sua vida pessoal, e está, é claro, presente na obra literária que deixou, além das marcas do convívio com ele — fundamental para um Ariano Suassuna, por exemplo. Hermilo foi o intelectual, um pouco mais velho, que orientou as leituras do então jovem dramaturgo de Taperoá. Para outros talentos, também foi determinante a influência de HBF, conforme reconhecido por autores e diretores teatrais com passagem pelo Grupo Gente Nossa, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), pelo Teatro do Estudante de Pernambuco, pelo Movimento de Cultura Popular e pelo Teatro Popular do Nordeste.
Estamos tratando aqui, entretanto, da literatura de Hermilo e, nuclearmente, da tetralogia admirável que é Um cavalheiro da segunda decadência, texto de natureza confessional número um das nossas letras. Hermilo odiaria saber que Pedro Nava se suicidou pelos motivos que todos ficamos sabendo: o médico memorialista de Baú de ossos estaria sendo chantageado por um dos seus parceiros no “amor que não ousa dizer seu nome”, segundo a expressão pundonorosa que Wilde tornou clássica. Como? Quer dizer que Nava escreveu suas “memórias” pela metade, devidamente disfarçadas e maquiladas? Isso mesmo. Assim como Álvaro Lins também redigiu as dele, sem fazer uma única menção do crime de morte que cometeu, movido pelo ciúme…
A literatura confessional brasileira — e até a nossa memorialística retocada — padece da falta de coragem que aniquila a prosa (como a pressa que aniquila o verso, da primeira estrofe de um poema do Edmir Regis que morreu do lado errado, no aeroporto da bomba disfarçada). Costumamos contar as coisas pela metade, e a metade que expomos é a metade “boa”, segundo a receita que o poeta-diplomata Neruda preferiu para escrever o seu Confesso que vivi (e “que comi todas as mulheres do mundo”, acrescentemos ao Neruda de cartolina do livro) falso como uma nota de quatro dólares.
Se é para deixar os nossos retratos quando jovens, quando maduros e quando velhos, então façamos como Borba Filho: contemos tudo, em forma literária se possível tão atraente quanto a desta tetralogia-catarse, que vem do cenário da primeira formação do autor, no território de descoberta do mundo e do sexo, e prossegue para o Recife do rapaz interiorano julgando que a capital era enorme e enigmática até chegar à São Paulo cinzenta e imensa como um céu de concreto sob a cabeça das gentes que vão desfilando perante leitores aturdidos como pela colmena de Cela. Entre tais “gentes”, Hermilo compõe um irretocável retrato de Alberto Cavalcanti — o injustiçado-mor das nossas telas — no volume (O cavalo da noite) que é, para mim, o mais feroz da tetralogia, destacando-se o Capítulo quatro daquele alfabeto mental desfiado como quase poema de enumeração caótica que nos prova: estamos diante de literatura com “L” maiúsculo, e não da vida descrita em tom menor.
Se é para ser fiel à verdade (e a que outra coisa poderíamos prestar fidelidade?), o caminho não é o da semi-qualquer-coisa, mas o da transfiguração da experiência. Literatura não se faz sem arriscar o pescoço, e o menino da zona da mata expôs a nuca, a cara, o peito, a barriga, a genitália, as pernas e os pés bem recordados do massapê da zona da mata e do asfalto recifense e paulista, sem recuar para a margem dos disfarces.
O mais admirável nesta obra é que ela não nos anima a duvidar de uma única vírgula das suas confissões ficcionalmente tratadas — com algumas delas até indo contra o narrador que, por exemplo, sem dúvida ofendeu o cosmopolita Cavalcanti com preconceitos (“Ruth detesta veados”) de palmarense católico, aqui e ali em dúvida sobre a existência de um Deus que permite pensar que tudo é permitido, e, portanto, pode seguir sem Ele…
O cavalheiro da decadência segunda — conforme analiso — é também um cristão sem orações e sem choro nem velas. Sua tetralogia em muito me lembra o único roman fleuve da literatura do Brasil, até agora: a Tragédia burguesa, do hoje esquecido Octavio de Faria, escritor mergulhado na solidão de onde contemplava os mundos mortos da fé, no século da descrença. Ou seja, aquele que acabou de passar, e ainda nem acreditamos que tenha ido e levado tanta coisa com ele — incluindo certa qualidade essencial que, grosso modo, a arte de hoje não tem, ou não parece ter (uma vez que os juízos “em cima da perna” são sempre incertos e passíveis de ajuste pela perspectiva do tempo).
Hermilo compôs a sua “tragédia” com menos volumes do que a que Octavio continuou a escrever, sozinho em casa, solteirão talvez angustiado, como Nava, diante da sexualidade e outras dúvidas que também acompanharam Lúcio Cardoso, o Machado de Assis número dois de uma literatura que precisa de certezas e incertezas. Borba Filho, quanto a isso, palmilhava o terreno sexual com a confiança dos garanhões das campinas e, como Henry Miller, acreditava que a cópula podia oferecer uma ascese. Cópulas e espelhos são seus temas de vertente não-borgeana (nas mãos dele), e Hermilo se interroga com desarmante sinceridade, na medida em que é possível um cristão ou um não-cristão conhecerem, socraticamente, a si mesmos. Seu substrato é tudo menos platônico, e ele poderia ter dito aquilo que Marguerite Yourcenar rabiscou como constatação tão óbvia quanto sutil: “não pode escrever bons livros quem só se dedica a escrever livros”.
O ficcionista pernambucano que aqui cumpriu com as nossas melhores tradições também na prosa, dedicou-se a viver plenamente, apaixonado pela vida como o Durrell do Quarteto que Hermilo tanto admirou nas “Alexandrias” da vida. E seu acostamento, nos portos da escrita, é o de um eterno interessado nas pulsões existenciais que ainda nos desconcertam, como se repetisse com Ciro Alegria: “grande e estranho é o mundo”. Daí para o seu final interesse pelo realismo mágico dos contos derradeiros, foi, talvez, um pulo (se é que podemos falar de “pulos” na trajetória desse homem para quem nada foi fácil, realmente).
Grande e estranha é esta tetralogia de um cavalheiro da nobreza literária maior de Pernambuco. Tal é o lugar que ele merece, e que a reedição (pela Editora Bagaço) virá reafirmá-lo, em alto e bom som, dando a conhecer aos mais novos um dos nossos escritores de talento à altura dos méritos poéticos de Bandeira, de Cardozo e de Cabral, através desta prosa de matiz milleriano, embora trabalhada no trópico abaixo do equador sem pecado — desde que pecar tornou-se uma forma de rezar por todos os poros, indiferente às mais difíceis decadências.