“Com o narrador de Flaubert morre de vez a certeza épica”, disse a professora de literatura, “mas curiosamente não morre nos personagens a busca incessante por ela”, ponderou, me levando a cogitar se não seria essa busca pelas grandes certezas perdidas a angústia dos últimos séculos, e, principalmente, deste. Em meio a múltiplas possibilidades de mundo, as certezas se fracionaram em pontos de vista, os pontos de vista se tornaram mais absolutos do que os fatos, os fatos incapazes de representar a verdade, e ainda assim, ou por isso mesmo, como disse a professora, resiste até hoje no espírito dos personagens literários o desejo da totalidade perdida.
“Desejo que se direciona não só ao mundo exterior, mas também ao interior”, ela completa. Penso em Dostoievski e nos seus personagens densos, de inédita consistência psicológica, regidos por um narrador que não os domina, pelo contrário, permite que suas complexidades venham à tona de forma descontrolada. “Vemos isso em Crime e Castigo, como em outros romances”, ela lembra, “o personagem do mago russo não sabe explicar totalmente o motivo de seu comportamento, é dominado pelo seu inconsciente, atormentado por si mesmo”. Raskólnikov busca compreender o incompreensível, se debate com a impossibilidade. “O senhor compreende o que quer dizer isso de não ter para onde ir? Porque todo homem precisa ter um lugar para onde ir”, clama Raskólnikov. Depois de Dostoievski, a consciência do personagem literário alcança a vertiginosa certeza das incertezas. Tão longe de Ulisses de Homero, Raskólnikov responde ao caos do mundo e da existência com o seu próprio caos. “Em relação ao narrador, vemos um embate entre a ordem necessária do discurso, e a desordem da consciência psicológica dos personagens”, disse a professora. “Quem ganha com essa queda de braço é o leitor. O resultado é um texto de alto teor expressivo, no qual o inconsciente do personagem muitas vezes explode a estrutura formal da linguagem.”
Em relação a isso, é impossível não pensar em Proust, que virou do avesso a estrutura do romance, trazendo para primeiro plano o mundo interior dos personagens. Por meio da memória, o personagem “está diante de algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz”, como diz o narrador de No caminho de Swann. “Este lugar é o passado”, comenta a professora, “transformado por Proust, em seus romances, no espaço da descoberta de si mesmo, ou da reinvenção do eu por meio das lembranças”. A técnica da descrição encontrada nos grandes romances realistas do século 19 se desfaz diante da perspectiva subjetiva do narrador. A realidade é descrita não como ela se apresenta diante dos olhos, mas como é lembrada. É aí que o personagem, como indivíduo, se refaz a cada memória, numa construção e desconstrução constante. “Isso ocorre também em relação às convenções tradicionais de enredo, espaço e tempo. Todos os elementos da narrativa passam a girar em torno das lembranças, nascem e morrem nelas. A noção de ação dramática e conflito se desintegram totalmente nas mãos de Proust. É o fluxo vital da memória que dá forma ao romance.”
Sempre que escuto a minha professora de literatura falar, penso no caminho criativo de cada escritor, e como sua arte contribuiu para traçar novas perspectivas na escrita literária. Se a estrutura tradicional do romance se rarefez em Proust, ao fazer da memória e de sua subjetividade o chão de sua literatura, outro escritor toca em pontos ainda mais inatingíveis da existência humana: o momento presente. Não seria Ulisses uma busca atordoada e atordoante pelo que há de mais concreto e palpável na existência, o instante?, indago à professora. “De fato, o narrador em Ulisses evidencia a insatisfatória busca do eu, ao tentar retê-lo, de instante em instante, transportando o caos do mundo para a mente do personagem durante 24 horas de sua vida”, ela considera. “Sem mencionar a intertextualidade com o Ulisses de Homero. Na comparação inevitável que se traça, vemos que o que um tem de heróico, o outro tem de ordinário, o que um tem de certezas, o outro tem de dúvidas.” O herói moderno de Joyce não possui uma nobre missão a ser cumprida. A sua meta se faz e refaz a cada instante. Enquanto a odisséia de Homero ocorre no mundo exterior, em um mundo de conceitos absolutos e verdades inabaláveis, a odisséia de Joyce se faz internamente, no estado caótico de um mundo partido de verdades individualizadas e variáveis. “Para essa visão fragmentada do mundo nos deparamos em Ulisses com uma linguagem também feita de mosaicos, fluxos de consciência, recortes de vida interrompidos, que não se acumulam num enredo de causa e efeito, mas existem e possuem valor por si próprios.” Se o fluxo da consciência derruba as fronteiras entre a voz do narrador e a das personagens, permite que os sentimentos, desejos, falas e ações se misturem no texto num jorro descontínuo e desarticulado, onde a figura organizadora do narrador desaparece, se instalando no mesmo mundo incerto em que vivem os personagens. “De Ulisses a Ulisses”, fala a minha professora, “morrem as certezas éticas, estéticas e lingüísticas, mas permanece o desejo de dar sentido aquilo que se faz, que é o que romance pós Joyce continua procurando, nada mais do que a certeza de si mesmo”.