Pós-dramáticos

Sem a presença física de um público, como funcionam artes como o teatro, o circo, a performance, a dança?
Ilustração: Vitor Pascale
01/09/2020

Ler o Teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann, parece agora — à luz de uma experiência de pandemia e confinamento — trazer ainda mais reflexões sobre esta e outras artes do espetáculo. Afinal, sem a presença física de um público, como funcionam o teatro, o circo, a performance, a dança? Durante o isolamento social, a urgência de manutenção de grupos artísticos, embora com inúmeros prejuízos (financeiros e estéticos), levou à busca por adaptações para um meio remoto.

O pós-dramático em essência estimula “métodos de trabalho teatrais que escapem da concepção convencional sobre o que o teatro é ou precisa ser”. Nesse sentido, as alternativas encontradas pela transmissão on-line demonstram grande ímpeto. Mas ainda estamos por saber que tipo de transformação o primeiro semestre de 2020 escavou, para os espetáculos em geral. Creio que virão a seguir estudos com esse direcionamento, e já me sinto curiosa por conhecê-los. Espero que sejam reais trabalhos investigativos e não, como pontua Lehmann, meras atividades vazias de arquivar e categorizar. Afinal, uma pesquisa deve partir de uma “incompreensão interessada (não paralisante), para investigar como um objeto responde a um determinado fenômeno”.

Uma coisa, desde o início, parece crucial: observar em que medida o teatro on-line difere de gravações teatrais, assim como do teatro físico, com presença tradicional (não-virtual, por assim dizer). Também há aspectos relativos às plataformas utilizadas: se são salas de reunião livres ou fechadas, se são trabalhos decididamente implantados no audiovisual ou se a marca híbrida oscila, de propósito — ou não.

Em termos de características do pós-dramático, o livro de Lehmann elenca “a fragmentação da narrativa, a heterogeneidade de estilo e os elementos hipernaturalistas, grotescos e neoexpressionistas”, traços que também comparecem em outros tipos de montagem artística. Muitos aspectos (ambiguidade, recusa da interpretação, diversidade de códigos) se aplicam igualmente a formas teatrais anteriores, e o esforço na direção de uma pluralidade pode ser visto em quase todo teatro.

As definições, portanto, a priori são vagas e só se tornam mais nítidas quando se leva em conta o componente tecnológico: “No teatro pós-dramático, as linguagens formais desenvolvidas desde as vanguardas históricas se tornam um arsenal de gestos expressivos que lhe servem para dar uma resposta à comunicação social modificada sob as condições da ampla difusão da tecnologia de informação”. Pensando num período que começa em 1970 e, para o estudo de Lehmann, estende-se até os anos 1990, constatamos que pelas décadas seguintes estas características só fizeram se intensificar — sobretudo se levarmos em conta o poder da internet, que com o confinamento gerado pela covid19 atingiu o seu ápice.

“O teatro pós-dramático é essencialmente (mas não exclusivamente) ligado ao campo teatral experimental e disposto a correr riscos artísticos.” Muitas vezes, pode dar a sensação de ser despropositado: “Suas novidades não têm de ser plausíveis de imediato, seus resultados podem ficar aquém das expectativas do ponto de vista da realização prática, seu potencial inovador pode se evidenciar pouco, pelo menos a princípio”. Estas indagações certamente vão permanecer, em torno das soluções encontradas pelo teatro on-line, ou teatro-live, exibido durante a quarentena, numa diversidade de experiências de grupos ou trabalhos individuais.

A velha percepção dramática, cujo paradigma era a leitura literária (linear-sucessiva), deslocou-se para um modo simultâneo e multifocal, que é mais abrangente e superficial — basta pensar nas telas de reuniões on-line. O teatro se emancipou da literariedade, nesse sentido, e também a dança e algumas artes performáticas, mas provavelmente não a música, a pintura, o desenho ou a fotografia. Talvez estas, assim como a própria literatura, por constrangimento de tempo e moldura, não possam abandonar o caráter linear…

Entretanto, voltando ao teatro, que é o tema principal deste ensaio, precisamos levar em conta que a sua situação constitui uma totalidade de processos comunicativos evidentes e ocultos: “A representação teatral faz surgir a partir do comportamento no palco e na plateia um texto em comum, mesmo que não haja discurso falado”. Mas, se num teatro on-line, transmitido ao modo de uma live, os olhares dos participantes não podem se encontrar, como se dão esses processos comunicativos mais secretos? Há a presença dos comentários, às vezes, e de recursos de animação, como curtidas, coraçõezinhos e outros emoticons que o público vai soltando, mas eles distraem, dispersam e, certamente, constroem fragmentos díspares no lugar de um discurso coeso.

Muita coisa além de uma mudança de suporte está em jogo; toda uma configuração específica aponta para experiências diversas, com riscos artísticos — vários deles involuntários, devido às (falhas das) tecnologias. Essa espécie de revolução forçada talvez abra um novo gênero. Pode ser que a cena virtual ultrapasse a solução provisória e se torne uma verdadeira tendência do teatro a partir de hoje. Porém, isso não poderá ser feito dentro de uma ingênua ou forçada adaptabilidade; precisa implicar a questão incontornável de “saber o que o teatro tem de inconfundível e insubstituível em comparação com outras mídias”. Claro que sempre haverá aqueles que buscam “o consumo fácil das fábulas sem problemas”, motivados por razões financeiras, e depois acomodados a uma saída que pareceu dar certo. É o que se pode dizer em praticamente todas as áreas: problematizações não costumam cair no gosto popular.

Por outro lado, também é sabido que “a aparição de um novo meio de configuração das formas e de representação do mundo leva quase que automaticamente os meios existentes — que de súbito passam a ser tachados de antigos — a se perguntar o que têm de específico como arte e, portanto, o que deve ser privilegiado de modo consciente após o surgimento de técnicas mais modernas”.

Se, em relação ao cinema, “a profundidade e a dimensão reduzidas da imagem televisiva pouco permitem uma percepção visual intensa”, o que diríamos da tela de um celular, por onde se transmitem vídeos e, agora também, teleteatro? Reduz-se a capacidade “de aplicar libidinosamente a percepção visual, espacial, arquitetônica”. A “aura da presença corporal” elemento que, no teatro, proporciona a sua “irradiação” específica, conforme Lehmann, fica sacrificada nestas condições. Como salvá-la? E, se ela não for salva, ainda se fará teatro — ou mesmo taetro, como provocou Brecht, dentro de outras polêmicas?

Essa reflexão tem potencial duradouro. Vamos acompanhá-la.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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