A morte transfigurada

Três obras de Josué Guimarães, um expoente esquecido da literatura fantástica brasileira
Josué Guimarães, autor de “Depois do último trem”
01/01/2011

Franz Kafka é um dos primeiros nomes que despontam quando nos remetemos à literatura fantástica. Na América Latina, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa — ganhadores do Nobel — ou Carlos Fuentes são geralmente lembrados e, no Brasil, Murilo Rubião. Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo selecionaram os textos mais representativos do gênero em Antologia de la literatura fantástica. O que assombra — seja no imaginário dos leitores eventuais ou profissionais, seja na coletânea do trio argentino — é a ausência de Josué Guimarães que, se estivesse vivo, completaria 90 anos.

O escritor nasceu no dia 7 de janeiro de 1921, em São Jerônimo (RS). Estudou em Porto Alegre, trabalhou nos principais periódicos brasileiros, exerceu mandato de vereador na capital gaúcha. Perseguido pelo regime militar, especialmente por sua proximidade com o presidente deposto João Goulart, sobreviveu escrevendo sob pseudônimos e prestando consultorias para empresas.

Parte de sua obra trata de memórias, de relatos de viagem, de considerações políticas, de narrativas para crianças, da identificação ou reconstrução da identidade gaúcha, de situações cotidianas — e, entre esses exemplos, para ficarmos apenas em alguns títulos, estão Dona Anja, A ferro e fogo I (Tempo de solidão), A ferro e fogo II (Tempo de guerra), É tarde para saber e O gato no escuro.

Embora freqüentemente ovacionado em algumas universidades brasileiras, Josué Guimarães não tem sua imagem e seus livros associados à literatura fantástica. Grande equívoco se considerarmos que pelo menos três de suas obras pertencem ao gênero e, dessas três, duas entrelaçam-se à ação política e à defesa da liberdade, denunciando o autoritarismo e a alienação personificada nos manipuladores da opinião pública.

Os tambores silenciosos (ganhador do Prêmio Erico Verissimo) narra as iniciativas de um prefeito do interior que, para promover a felicidade, proíbe a circulação de jornais, a posse de aparelhos de comunicação e a privacidade das correspondências. O enredo, transcorrido em meados da década de 1930, dialoga com a história política e alinha-se a autores internacionais que retrataram o autoritarismo. Entre 1930 e 1945, Getúlio Vargas assume a chefia provisória do Executivo Federal, instala a ditadura e, por fim, concebe o Estado Novo, valendo-se de artifícios populistas para anestesiar a capacidade coletiva de discernimento. A ação de Vargas, que gera discussões em torno da consolidação do slogan de pai dos pobres e de simpatizante dos regimes autoritários europeus, controverte as análises de seus objetivos. Getúlio: estadista ou ditador?

O diálogo com os autores internacionais acontece, por exemplo, com Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, 1984 e A revolução dos bichos, de George Orwell. Huxley e Orwell retratam os gritos de centralização, da falta de aberturas transversais, de desrespeito aos direitos humanos, de menosprezo às conquistas civis, políticas, sociais e individuais. A atitude do prefeito do interior assemelha-se às atividades dos ministérios do governo do Grande Irmão no trabalho incessante de criação de fatos, novidades, situações ou discursos que guiarão o sentimento nacional e suscitarão dúvidas sobre os destinos coletivos, respaldando um liame de identidade grupal. Verdade e mentira são questões manipuladas, transitórias, insustentáveis. Para Montaigne, Verdade e Mentira — assim como outros temas — são vistos sob o prisma da relatividade.

Memória e delírio
As denúncias contra a centralização de poder — renegando o direito de reconhecimento à pluralidade — e do cerceamento de liberdades também são encontradas em Depois do último trem, trama desenrolada numa pequena cidade imaginária que será inundada por uma barragem e, numa mistura de memória, sentimentos, angústias, imaginação, delírios e acerto de contas, revela os grandes percalços que transtornam o espírito de Eduardo.

Depois de dez anos fora em decorrência do relacionamento com uma mulher casada, Eduardo volta a Abarama para rever os pais, os irmãos, os conhecidos e o alcoviteiro Tio Lucas que, reconhecendo-o na estação ferroviária, onde trabalha, transmite uma notícia a queima-roupa: a morte dos pais e a mudança dos irmãos. As forças somem, Eduardo segue para a casa do tio, reconhecendo seu quarto e cada detalhe das divisões, como se jamais tivesse saído dali. A mesma impressão se observa à rua: os habitantes o cumprimentam como se o tivessem visto na véspera ou poucos dias antes. Seu Vidal e Dona Santa, proprietários do armazém, recriminam a conta em aberto de alguns cigarros, mas facilitam seu crédito e dão-lhe mais um pacote.

Talvez um dos pontos mais impressionantes da primeira parte de Depois do último trem fique por conta da surpresa — e o narrador consegue nos surpreender e nos alarmar com grande perícia — ao constatar a casa paterna intacta no tempo. Diferentemente do que alertara Tio Lucas, os pais estavam vivos e os irmãos não tinham fugido. A mãe o repreende carinhosamente ao avistá-lo. A irmã precisando armar o varal no quintal. Onde ele estava? Esquecia-se da família apenas porque morava com Tio Lucas?

À hora do jantar, Tio Lucas aparece fofocando sobre as infidelidades de Dona Zoraide, esposa de 22 anos do Dr. Euríclides, e dando indiretas ao sobrinho. Aquelas cenas já não tinham acontecido, não tinham resultado no abandono da família e da cidade? Como uma mesma cena, de tantos anos, se repetia? “Eduardo seria capaz de jurar que estava ouvindo aquela conversa pela segunda vez.”

A transfiguração metafórica esteticamente elaborada da morte rodeia Depois do último trem. As brincadeiras de Tio Lucas sobre o falecimento dos pais e a fuga dos irmãos aliadas às investidas contra seu antigo caso de adultério alteram o bom humor de Eduardo que, irritado com o tio diabético, mistura as cápsulas e substitui os conteúdos dos remédios. A cidade também vai se acabando à medida que seus habitantes a abandonam. Um oficial e dois soldados fogem — depois de libertarem os presos —, o gerente do banco se transfere para agências em outras cidades, a professora primária escapa discretamente e, agora sim, o irmão de Eduardo opta pela aventura do desconhecido.

Um dos possíveis protocolos de leitura consiste na discussão do tempo: o relógio sempre parado exalaria um suspiro de eternidade, de pouca ou nenhuma pressa, de indiferente preocupação?

O relógio inativo compõe o cenário da conversa durante uma madrugada fria em que Tio Lucas apela para que volte para casa. Em seguida, parte sem se dar conta de que o irmão, a cunhada e a sobrinha estavam na mesma sala. Eduardo acredita que os pais e a irmã quiseram ignorá-lo, mas como o perspicaz e curioso Tio Lucas não os tinha percebido?

Eduardo ignora os gritos dos engenheiros da barragem avisando que a última condução já passara: “Procurou acomodar-se no banco duro. Estava certo de que ia acordar assim que o trem chegasse com o seu ranger de ferros. Se não acordasse, tio Lucas o chamaria”.

Depois do último trem — ao lado de Os tambores silenciosos — mistura realismo fantástico, política, governo, sociedade, direitos humanos, desejo de poder. Mais leituras são necessárias para verificar a intensidade e um eventual projeto (in)consciente de Josué Guimarães de se fixar no campo da literatura fantástica. Se Depois do último trem atesta a maestria de um esboço do fantástico — promovendo a denúncia política de arroubos contra a história, a identidade e, principalmente, a memória das pessoas num esfacelamento material, humano e psicológico de maneira gradual —, Enquanto a noite não chega consagra o que de melhor existe na literatura mundial.

Insuperável
Enquanto a noite não chega
é, sem dúvida, uma absoluta e perfeita transfiguração metafórica da morte. Política, economia, desentendimentos ou confluências grupais, discussões religiosas, sobreposições de poderes, confusões entre público e privado, entre democracia e ditadura, ocupam papel secundário, mas confluem ao mesmo ritmo e na mesma corrente em que memória, filosofia e estética se congraçam para o espanto aristotélico, o quase ininteligível, o magnífico e o insuperável.

Dom Eleutério, Dona Conceição e Seu Teodoro são os personagens que arrastam a beleza deste enredo perpassado de lembranças. Dom Eleutério e Dona Conceição tiveram filhos e netos, mas, por motivos diversos, todos faleceram. Sobraram os dois numa cidade decadente, deserta, caindo aos pedaços e — nas palavras de algumas de minhas alunas de Filosofia no curso de Pedagogia, durante seminário sobre o livro — miserável. A miséria se reporta ao simbolismo da ausência dos bens materiais que representaria, de alguma maneira, o definhamento da vida, mas sem necessariamente comprometer a esperança do espírito.

Seu Teodoro entra na história como o coveiro de idade avançada que aguarda pacientemente a morte de Dom Eleutério e de Dona Conceição para finalmente tomar rumo. Os três mantêm um bom relacionamento. Seu Teodoro freqüenta a residência do casal durante as refeições. E, justamente quando sua falta se avoluma, Dom Eleutério e Dona Conceição caminham ao cemitério para visitar o amigo que, acreditam, esteja de cama em razão de alguma doença.

A parte mais fabulosa repousa certamente ao fim. Dona Conceição e Dom Eleutério encontram Seu Teodoro morto. Pensam em levá-lo para alguma cova, mas já não têm forças para carregá-lo. Fecham-lhe os olhos e pretendem voltar logo para casa, antes que anoiteça. Um cocheiro pára à porta do cemitério convidando o casal para subir na carruagem. Quando estão sentados — talvez remoçados, trajando a roupa do casamento —, Dona Conceição jura que o condutor parecia Adroaldo, um dos filhos mortos. Dom Eleutério confirmaria: “Eu vi logo que era o nosso filho, mas não quis te dizer nada”.

Em uma publicação do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Josué Guimarães apontaria seu livro preferido:

O ponto alto de nossa carreira é sempre o livro que se está escrevendo, ou que ainda se encontra informe dentro da gente. Gosto particularmente da novela, de cento e poucas páginas, intitulada Enquanto a noite não chega. É uma história breve e despojada. Muitas vezes parava num capítulo para curar a fossa por ele produzida. É uma novela tranqüila.

A paixão de leitor de Josué Guimarães me faz concordar novamente na plenitude de sua escolha: Enquanto a noite não chega atinge o ápice do fantástico e, sem dúvida, simboliza o que de melhor se escreveu entre nós nos últimos 40 anos. Esse brilhantismo também se seguiria primorosamente, como mencionado parágrafos atrás, quando Dom Eleutério e Dona Conceição já estão na carruagem: “Entrelaçaram as mãos envelhecidas pelo sol, pelo vento, por todos os gestos de carinho de um para com o outro, para com os filhos e os netos, e sentiram juntos que a noite havia chegado”. Quantos mais designariam tão belamente a chegada da morte?

Depois do último trem
Josué Guimarães
LP&M
144 págs.
Enquanto a noite não chega
Josué Guimarães
LP&M
112 págs.
Os tambores silenciosos
Josué Guimarães
LP&M
224 págs.
Josué Guimarães
Nasceu em São Jerônimo (RS), em 1921. Jornalista, trabalhou em diversas redações brasileiras. Escritor, foi autor de livros como A ferro e fogo I e II, Camilo Mortágua, Dona Anja, Cavalo cego e O gato no escuro, entre vários outros. Morreu em 1986.
Vicentônio Silva

É crítico literário.

Rascunho