Matias Nimrod tem uma dor, com certeza. Aliás, mais de uma, várias — físicas e emocionais. Para Leminski, ele devia ser um cara elegante. Para mim, é triste. Chegou longe em sua carreira, é fato. Mas êxito no trabalho não garante felicidade a ninguém.
O protagonista de Três traidores e uns outros, do gaúcho Marcelo Backes, é um tradutor de renome e também um escritor fracassado metido a filósofo que volta a sua cidade natal, mutilado no corpo e na alma. Cinqüentão, acaba onde tudo começou, mas sem a arrogância e o nariz empinado do jovem sonhador que partiu. Morou em vários lugares, experimentou várias mulheres. Não se fixou — nem nos lugares, nem nas mulheres. Não que ele não quisesse, mas a vida é assim, às vezes rema para o lado oposto, e nos deixa boiando em círculos. Então, voltou derrotado por si mesmo. Amargurado, solitário e sem alguns dedos do pé.
Com uma cuidadosa escolha de palavras, Backes constrói um livro consistente e intrigante. Matias é um pouco mais velho, mas tem muito em comum com seu autor, Backes. Um é o traidor do outro: Matias tem a mesma profissão, vai para os mesmos lugares, lê os mesmos livros que seu criador. Divide as mesmas angústias, as mesmas certezas. Até que ponto a história de Marcelo interfere na de Matias, ou vice-versa, não se sabe. E será que faz tanta diferença assim? Afinal, os livros não são realidades inventadas — ou invenções reais?
Em uma primeira e descuidada olhadela, Três traidores parece um livro de contos. Mas o leitor que não se engane. Contada em cinco capítulos — que funcionam bem como narrativas independentes — a história é uma só. Todas as partes dão conta da vida de Matias Nimrod. O trunfo, aí, é a estrutura narrativa. À medida que o livro avança, Matias vai ficando mais jovem. Não como o Benjamin Button de Fitzgerald. A história é que está contada do final para o começo. Quando o conhecemos, Matias está vivendo em Anharetã — cidade onde nasceu e de onde saiu para se firmar como tradutor — e está quase amaciado, divagando sobre o paradeiro e a possível desistência da vida por parte de seu amigo Toz.
No capítulo seguinte, estamos em Stoelen, cidadezinha alemã que abriga a Academia Européia de Tradutores. Ali, Matias Nimrod é considerado um dos grandes! (Aliás, o sobrenome do protagonista é especialmente interessante: reza a lenda que Nimrod foi o descendente de Noé que iniciou a construção de Babel.) Mas sua casca é quebrada pelas lembranças (ou seria amor?) de Latica, ex-aluna num curso de tradução que virou uma grande escritora. Aqui temos mais contato com o Matias tradutor — ofício, aliás, compartilhado com seu autor, Backes. Realidade e ficção se embaralham: Matias tem a mesma profissão, vai para os mesmos lugares, lê os mesmos livros que seu criador. Divide as mesmas angústias, as mesmas certezas. É um o traidor do outro.
A próxima “história”, no Rio de Janeiro, nos apresenta o aleijão. Matias fica sem os dedos dos pés depois que se separa, depois que fica sem referência. É a tradução física do que a alma perdeu. O capítulo é seguido por outro, também no Rio, em que conhecemos um Matias mais jovem, morando no quartinho da casa de um amigo, tentando pagar suas contas com a tradução. Ele se mete a traduzir as angústias de um empresário alemão para seu psicanalista brasileiro.
No epílogo, Matias está novamente em Anharetã, levando nos ombros todo o peso dos anos que já se foram — traduzidos várias e várias vezes — e imaginando o futuro. Aquele que ele teria, se já não tivesse passado. Viver é difícil. Algumas pessoas não conseguem. Desistem no meio do caminho — até antes. Não, Matias não desistiu. Pelo menos, não ainda.