Nos últimos anos, analistas políticos, sociólogos, economistas e demais formadores de opinião parecem ter entrado em consenso a propósito da mobilidade social no Brasil. De acordo com essa tese, teria entrado em cena uma nova classe média, graças, em linhas gerais, ao acesso ao crédito e também aos bens de consumo, que, no passado, não estavam à disposição dessa parcela da sociedade. Para que essa interpretação sobre as mudanças sociais não fique incompleta, talvez fosse necessário acrescentar leituras mais subjetivas, sem prejuízo dos números e das análises sociológicas. Com efeito, a obra de arte é esse “documento” capaz de compor esse retrato de forma mais singular, tanto com as metáforas de seus vícios da esfera privada quanto com a representação de seus dilemas existenciais em público. Mesmo não tendo composto especificamente para esse fim, o autor russo Maksim Górki é desses artistas capazes de sobressaltar o que está nas entrelinhas do que hoje em dia se chama de classe média. Sua obra Pequeno-burgueses acaba de ser relançada pela editora Hedra, com nova tradução e um relevante texto de introdução por Elena Vássina. Pequeno-burgueses, aliás, não é o único livro que ressalta o talento do escritor. Pela mesma editora, A velha Izerguil e outros contos também aparece com nova tradução e um texto de apresentação de Bruno Gomide.
Em certa medida, os dois livros compõem uma análise bastante original de seu tempo, sem o risco de soarem datados ou algo do tipo. A princípio, no entanto, é fundamental atentar para a dinâmica das duas obras em questão. Isso porque, embora assinados pelo mesmo autor, os textos pertencem a gêneros distintos. Enquanto na peça Pequeno-burgueses a descrição de cenários e a apresentação de personagens acontecem em dimensão inferior à tenacidade dos diálogos, na seleta A velha Izerguil e outros contos são as partes em conjunto (descrição, composição das personagens, enredo e diálogos) que provocam no leitor a sensação de que o bom duelo entre autor e narrador é travado no livro. Um bom exemplo disso é o conto que dá título à obra. Ali, o leitor é exposto a uma história narrada em molduras distintas. Assim, logo nas linhas iniciais do conto, o primeiro narrador diz ter ouvido a história que está prestes a contar nos arredores de Akerman, na Bessarábia, à beira-mar. Algumas páginas adiante, esse primeiro narrador concede o relato à velha Izerguil, que é quem assume a voz para contar “uma daquelas célebres histórias nascidas nas estepes”. Trata-se, sem dúvida, de um estratagema de composição narrativa, haja vista que um tom de mistério envolve esse primeiro texto, do início ao fim.
Abordagem distinta se dá em Pequeno-burgueses. Na peça, logo nas primeiras cenas — no caso, nos primeiros diálogos —, o leitor descobre que existe uma tensão na família de Vassili Bessiêmenov. Prestes a explodir, o conflito existe essencialmente porque não há consenso entre a geração de Bessoêmenov, um abastado pequeno-burguês, e a de seus filhos. Bessiêmenov e sua esposa, Akulina Ivánova, não entendem sua prole, suas expectativas, suas hesitações e seus desejos. Com isso, o casal de filhos Piôtr e Tatiana mantém para com os pais uma relação complexa, envolvida em trocas de acusações ao que poderia ter acontecido de forma diferente. É como se os pais, que tudo fizeram para que os jovens fossem realizados no âmbito material, não apenas tivessem suas esperanças frustradas, como também fossem responsáveis pela constante insegurança de seus descendentes. Para tornar ainda mais complicada a relação entre pais e filhos, existem ainda os agregados, cuja dívida de gratidão parece ser maior do que todo o aporte material oferecido por Bessiêmenov. Pelo menos, é assim que ele raciocina, como fica claro em sua indignação com a falta de deferência com a qual é tratado por Nil, que, como bom agregado, vive na periferia do núcleo familiar, fato que ajuda a tensionar ainda mais os dilemas daquela família.
Famílias tristes
Como Tolstói, alguém poderia afirmar, a essa altura, que as famílias tristes são tristes à sua maneira. E, no caso dos pequeno-burgueses de Górki, é inegável como o pensamento demasiadamente materialista e mesquinho interfere na capacidade de julgamento de Vassili Bessiêmenov. Em outras palavras, sua indignação não se dá pela carência de retidão moral de seus filhos ou daqueles que estão à sua volta. O choque acontece exatamente porque suas intenções não são compreendidas por seus filhos; a dúvida que faz com que evitem a visão de mundo maniqueísta e pragmática do pai; e a certeza de que ainda não estão prontos a assumir responsabilidades num mundo em que não estarão para sempre protegidos. Uma hipótese para compreender a ironia do drama de Górki é: Bessiêmenov pode ter sido responsável por gerar dependência naqueles que estão ao seu redor, a mesma dependência que ele acusa os filhos de não superar, como sugere esta passagem: “Quantas vezes você mente para mim por causa deles? Olhe nos meus olhos… Não consegue, não é? É, foi em vão que tentamos protegê-los ao mandá-los estudar”.
Outro aspecto que chama a atenção na peça é a visão politizada de alguns personagens, obedecendo, obviamente, às intenções do autor, tendo em vista a mensagem que Górki desejava perpetuar (contra a burguesia?). Dessa maneira, quando o agregado Nil fala, é possível sentir o discurso inflamado: “Os direitos não se dão, os direitos se conquistam… Um homem deve lutar por seus direitos, se ele não quiser ser esmagado por uma montanha de obrigações”. Já em A velha Izerguil e outros contos, como observa Bruno Gomide, lê-se um Górki exemplar no tocante a seu difuso projeto literário:
A ficção de Górki se moverá alternadamente entre os pólos das andanças e dos trabalhos. Nela, parece não haver espaços intermediários: ou estamos na estepe vasta, na encruzilhada, nos caminhos sem fim, ou nas cavernas sufocantes e espaços claustrofóbicos.
Essa tensão que toma a geografia russa como cenário aparece no conto Makar Tchudrá. Em verdade, o título do texto presta, outra vez, homenagem ao protagonista do conto, que, como se lê, trata-se de um velho cigano que vive na estepe e se propõe a conversar com o narrador da história. O autor utiliza estratégia semelhante em Boles. Nele, no entanto, não há espaço para a inicial ambientação campestre dos outros textos, porém a passagem de bastão de um narrador para outro acontece logo nas primeiras linhas do conto — “Um conhecido me contou a seguinte história” —, para, em seguida, o leitor ser novamente transportado ao relato de outro narrador.
A propósito de ambos os livros, cabe destacar que o texto de Górki não perde qualidade literária, não importa o gênero, adequando-se às características da narrativa curta e às da peça de teatro quando assim é necessário. Nesse sentido, tanto em Pequeno-burgueses quanto em A velha Izergul e outros contos, nota-se não apenas a relevância da literatura do autor, mas, principalmente, sua capacidade de registrar, de maneira simbólica, o que aparentemente são cenas do cotidiano em literatura que permanece como referência para descobrir o que há de subjetivo no universo das famílias, no particular, e na sociedade, de uma maneira geral.