À cata da palavra brasileira

O "Catatau" de Leminski encena a crise da cultura européia ao mesmo tempo em que registra o nascimento de outra, a nacional
Paulo Leminski por Osvalter
01/03/2011

Há livros de restrita circulação por longos anos que insistem em serem bem citados por sua força e importância incomuns, mas resistem em serem lidos pela dificuldade de acesso. É comum que a dificuldade de acesso ao livro esteja acompanhada por certa dificuldade de leitura do texto, o que explica um pouco a baixa circulação. Basta, no entanto, tornarem-se clássicos para que se editem, senão aos montes, pelo menos muitos exemplares da obra que, até recentemente, era lida de amigo para amigo.

É possível que uma história parecida aconteça ao Catatau — um romance-idéia (1975), o primeiro livro de Paulo Leminski. Em sua quarta edição, esta talvez seja a primeira a ser bem distribuída para as livrarias. Demorou 35 anos: tempo suficiente para se acostumar com a existência de obra tão singular? Talvez não. Acontece que, passadas essas décadas, a releitura da prosa do poeta paranaense encontra os leitores de hoje dispostos a buscar boas obras independentemente da forma ou do estilo utilizados para compô-las. Afinal, parece não haver estilo ou forma que garantam, de saída, a qualidade de uma obra. Por isso, é preciso reconhecer que o lugar da obra de Leminski, que surgiu aclamada como o então mais recente avanço da vanguarda brasileira, mudou. Assim, vai buscar seus leitores em outras áreas, mais largas, do Brasil. E este é um destino desejado pelo Catatau: um livro lendo o e lido pelo Brasil.

Desde o projeto, a estréia de Leminski procurava os requisitos para se tornar um clássico. Um pouco como uma obra de arte conceitual, cuja idéia conta mais que a execução, o “romance-idéia” imagina a passagem do jovem René Descartes pelo território brasileiro em companhia dos holandeses que ocuparam, liderados por Maurício de Nassau, no século 17, parte do que hoje é o Nordeste brasileiro. O filósofo de fato viveu 20 anos de sua juventude na rica e liberal Holanda da época, integrando lá o exército de Nassau, embora não conste que tenha vindo ao Brasil. Esta ficcionalização de passagens obscuras da história é própria da tendência contemporânea do romance histórico. A concepção é semelhante, mas a execução não faz do Catatau um romance histórico.

Não faz porque o que está em jogo no livro não é a narrativa — que quase não há — e sim a linguagem: o jovem Descartes, rebatizado à maneira latina Renatus Cartesius, encontra-se todo o tempo à espera do amigo Arciszewski, contemplando com uma luneta a fauna e a flora locais e ainda fumando uma erva de efeitos inesperados recomendada pelo amigo esperado. Nesta situação, a linguagem cartesiana (em todos os sentidos) entra em curto-circuito. E o que se lê é o delírio lingüístico de um filósofo (ou aspirante a) sem razão abaixo do Equador. Assim, é na linguagem — no modo como é escrito o Catatau – que se encena a crise da cultura européia e, ao mesmo tempo, o nascimento de outra cultura, a do Brasil. A idéia constitui o livro — que se diz “romance-idéia” — e o coloca no lugar de intérprete do Brasil, lugar clássico por excelência em nossa história literária.

Exuberância
Que nova linguagem o Novo Mundo devolve à mente cartesiana? Chamar de prosa experimental é apenas um modo de nomear imprecisamente a profusão de recursos utilizados nesta escrita. Como diante de uma floresta tropical, o leitor perde de vista a variedade e a exuberância da linguagem, precisando atravessá-la sempre atento às feras ou ferrões que poderão surgir durante a aventura. Como diante dos corpos miscigenados dos brasileiros, o leitor encontra no romance a idéia, na prosa a poesia, na escrita a fala, em uma palavra a mistura de duas outras, na língua portuguesa o latim etc. Por fim, como diante de algum arquétipo brasileiro — o Macunaíma, por exemplo —, o leitor encontra o tom geral relaxado e brincalhão da linguagem, utilizando a todo momento gírias, expressões idiomáticas e frases feitas ao jeito malandro de quem as desmonta em trocadilhos e disparates. O Brasil é imaginado pelo jeito de escrever de Leminski, e este talvez seja o principal traço que faz desta uma obra de imaginação poderosa. Senão, vejamos o começo da empreitada textual:

ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui
presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, — vejo o mar,
vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais.

O começo é especialmente representativo, a começar, em minúscula, no meio do caminho da sentença clássica e, de tão repetida, já caricata de Descartes: Cogito ergo sum, ou “Penso, logo existo”. A palavra cogito, o “penso”, está ausente do começo do livro, sendo, portanto, anterior ao romance-idéia. E, de fato, trata-se de um começo impensado, pois a expressão ergo sum constitui um ato falho do narrador a ser corrigido, em português (“aliás”), pela apresentação em latim: Ego sum Renatus Cartesius. Assim, a miscelânea de português e latim, o ato falho com o Cogito e a brincadeira, tão sutil, com Renatus (o “re-nato”, ou seja, o renascido em terras brasileiras) dão o tom da velocidade estonteante com que a escrita de Leminski produz significações ao longo de todo o livro. Trata-se de uma velocidade própria à fala, melhor dizendo, à tagarelice, o que se confirma, neste caso, por não ter o trocadilho sido “corrigido” pelo escritor: na fala, muitas vezes não temos tempo de nos corrigir antes de falar (conhecemos a expressão “falei sem pensar”). A certa altura do Catatau, em meio à tagarelice alucinada do narrador, lemos: “Onde é que nós estávamos mesmo? Falando.”

São frases como esta que permitem ao leitor se localizar no delirante fluxo verbal que compõe o livro, pois alguns temas se repetem e, principalmente, tornam-se imagem do próprio texto: “Aqui se fala muito, falar é viver: dizer pode ser um céu”. Um certo lirismo mágico, que se tornará uma das marcas dos poemas de Leminski na década de 1980, comparece neste primeiro livro: “Muito tenho escrito desde então, e se por muita pena se virasse pássaro já há muito teria voado embora minha mão direita”. Sobretudo, são estas frases que, ao se referirem ao próprio texto, referem-se, por extensão, ao Brasil, já que o texto se quer imagem da cultura: “Que espécie de lugar é este que nos pergunta onde estamos? Ainda se arroga?”. Este, portanto, é o lugar do “labirinto de enganos deleitáveis”.

Que se torna tanto mais labiríntico quando surgem trechos em holandês seiscentista — sem nota de tradução — ou em outras línguas tão conhecidas quanto. Ou quando as repetições sonoras tomam a rédea do narrador e ao leitor resta se deixar levar pelo ritmo da escrita: “Cresce de salto o sol na árvore vhebehasu, que pode ser enviroçu, embiraçu, imbiroçu, aberaçu, aberraçu, inversu, inveraçu, inverossy, conforme as incertezas da fala destas plagas onde podres as palavras perdem sons”. Aberração e inverossímil são palavras que se ouvem de repente nesta seqüência e que nomeiam a própria escrita.

Há dívida com a poesia concreta não pela espacialização das palavras, que não há, mas pelo trato com a palavra ao carregar de sentido o texto pelo uso intensivo e excessivo do significante lingüístico. A diferença está em que Leminski utiliza todos esses recursos com muito humor, o que representa uma homenagem e uma ironia — o que fortalece a homenagem — à poesia concreta: “mamas ampliam: MAMÕES” ou “Em foco, Tatu, esferas rolando de outras eras, escarafuncham mundos e fundos”. É possível mesmo ler o Catatau como uma expansão da poesia concreta rumo à imaginação da cultura brasileira, não para tratar do pitoresco ou do exótico, claro, mas para procurar o lugar da linguagem brasileira como deslocamento da européia; lugar este encontrado no exagero e na irregularidade da linguagem construtiva da poesia concreta, a modo de barroquizá-la.

Cansaço
A quase ausência de narrativa, somada aos intermináveis e tão engraçados trocadilhos e jogos de linguagem, pode cansar o leitor ao longo das 200 páginas do Catatau, no que, aliás, a obra faz jus ao título. Se isso por um lado é conseqüência do seu caráter conceitual, fazendo com que o salto de páginas não prejudique a leitura do livro, por outro parece sintoma da paralisia em que se encontra Renatus Cartesius diante do assombroso enigma brasileiro. Crise da razão européia sim, mas também crise da linguagem brasileira que, neste livro, só se mostra pelo avesso da fala do branco europeu.

A reedição da Iluminuras tem o mérito de por em circulação mais ampla o livro de estréia de Paulo Leminski, e ainda continuar o projeto de reedição do autor ao incluir, ao final do livro, a seção Alguma fortuna crítica, com fragmentos, resenhas ou ensaios completos dedicados ao Catatau. Demonstrando cuidado no projeto editorial, a capa recria a da primeira edição, mantendo parte da imagem milenar egípcia de luta entre duas figuras humanas, e a fonte do título que, estilizada, ressalta a repetição das letras.

O livro de estréia de Paulo Leminski chegou, em 1975, para tocar em feridas e alargar a cultura: poesia concreta e cultura brasileira, arte conceitual e romance histórico, filosofia européia e literatura brasileira. Reeditado, chega em 2011 reatualizando as mesmas discussões, agora a partir de outro lugar: lido em retrospectiva, o lugar de linguagem que reserva ao Brasil parece positivo — ao imitá-lo pelo estilo — e negativo — ao resultar da crise do europeu paralisado diante do Novo Mundo. Se a literatura está sempre à procura de outra linguagem, de um novo modo de dizer, então o Catatau é um livro que, com muito prazer, põe para o leitor os problemas prementes da procura, no Brasil e mais além, por uma nova linguagem.

Catatau
Paulo Leminski
Iluminuras
256 págs.
Paulo Leminski (1944-1989)
Escritor curitibano de múltiplas ocupações: poeta, prosador, letrista, tradutor, crítico e jornalista. Além de Catatau (1975), destaca-se sua poesia, com Caprichos e relaxos (1983) e La vie en close (1991), das mais representativas das últimas décadas do século 20 no Brasil.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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