Condição
1.
E aqui estou escrevendo mais um livro.
Não sei até quando escreverei mais um livro.
Não posso saber,
não pertenço à raça irritada e depressiva
dos profetas.
O que sei é que venho tentando escrever livros
desde que respirei pela primeira vez
conscientemente
o ar da sala em que meu pai,
colhendo a abrindo misteriosos objetos
de longas e altas prateleiras,
mergulhava no concentrado silêncio em que
(eu o soube depois)
conversava com Platão,
Eça, Proust, Huxley,
Pessoa, Homero, Skakespeare,
Voltaire,
Roger Martin Du Gard,
Pierre Van Paassen,
Rubem Braga,
Camões, Sosígenes Costa,
Bandeira, Cecília, Drummond, Quintana,
Bertrand Russell,
Vieira,
por exemplo.
2.
Na verdade, houve um antes
de tentar decifrar aqueles objetos mágicos
de que fala muitas vezes Borges
relembrando Emerson.
Para tanto,
por meses e meses,
minha mãe me guiou entre os primeiros e hostis
hieróglifos.
E com infinita paciência,
pois desde o início bem sabia que eu não me chamava
Jean-François Champollion.
3.
Penso estas coisas
enquanto, mais uma vez, escrevo,
muito depois de meu pai se tornar
memória luminosa,
como aqueles com quem conversava em silêncio,
e a paciência de minha mãe
finalmente já ter merecido
o devido descanso.
4.
Sim, novamente escrevendo.
Sem saber, como sempre, aonde estou indo,
se é que estou indo a algum lugar.
Às vezes me ocorre
que escrever é exatamente isto: ofício
de quem não sabe aonde ir.
E, como não sabe, tateia
na névoa
à espera de encontrar alguma coisa
que não só não sabe onde está
como não sabe o que é
e que talvez seja uma parte da alma que ficou perdida
na travessia
entre sombras ancestrais
e a vida.
5.
Ao contrário do que versejou o poeta Drummond,
a literatura não estragou as minhas melhores horas de amor.
Ao contrário: deu-me algumas das minhas melhores.
Amor de muitos textos admiráveis,
muitas mulheres, muitos heróis
e mundos além do mundo.
Vasto sonho carregado de sonhos,
em que eu mesmo fui e sou meus sonhos
e o sonho nos meus sonhos.
Sim, também sofrimentos.
Sim, também horrores.
Sim, também abominações.
Mas é que os sonhos são coisas da vida,
nascem da vida,
não se pode sonhar senão com a vida,
que talvez seja também sonho, como acreditava
Calderón de La Barca.
6.
A sala mágica de meu pai se desfez no tempo,
que é,
como diz Wystan Hugh Auden,
sempre o culpado.
Conservei alguns dos seus objetos,
outros fui amealhando ao longo dos anos.
Agora estou aqui, em minha própria sala mágica,
de que alguns se queixam por causa do mofo,
da poeira e dos ácaros,
que não sei se existem e se existirem
também são mofo, poeira e ácaros
mágicos.
Sinto-me melhor aqui do que em qualquer lugar.
Meu pai certamente se sentia ainda melhor
em sua sala prodigiosa,
pois não lhe faltava pedaço nenhum da alma
e só precisava escrever as peças jurídicas necessárias
ao nosso sustento.
Quanto a mim, estão vendo,
continuo tateando
na névoa.
7.
Continuo, continuo.
Assim creio que será o tempo que ainda me resta.
Não se trata de resolução, mas de condição.
Que não desejo a ninguém, porém não preferiria outra
qualquer.
Olho em torno,
nas estantes,
os velhos e novos rostos amigos,
densos de sabedoria, aventuras, dúvidas, angústia,
revolta, nostalgia, esperança, lirismo.
Felicidade também, para quem sabe reconhecê-la.
Como eu,
que tenho tantas limitações,
materiais e de espírito,
tanto me preocupo com família
e amigos,
e trago muitas perdas e perenes saudades
e chagas de injustiças
e às vezes não sou senão um vale
de lágrimas,
mesmo quando elas não me surgem
nos olhos.
8.
Sim, aqui, entre as paredes forradas
por milhares de objetos inesgotáveis
em maravilhas e espantos,
reconheço que sou feliz.
Creio mesmo que sempre fui feliz,
inclusive nos momentos em que me sentia
e me dizia
infeliz.
E, neste momento, escrevendo
não sei o quê,
nem para quê,
sem porto de origem ou de destino,
sinto-me plenamente feliz,
como feliz também quando, daqui a pouco, sair para janeiro,
que, além da varanda,
sonha coqueiros à brisa e mar e céu
azuis.