Não admiro, tampouco invejo, aqueles que alardeiam não ter medo da morte. Não temer a morte é não ter medo de morrer. Essas pessoas me assustam. Temo a morte e as maneiras de morrer. Li e reli Sêneca: “Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu, talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”. Não funcionou.
Uma fração do todo, de Steve Toltz, é um livro descontraído e pretensioso. Descontraído por se tratar de uma comédia, pretensioso por pretender abarcar mais que uma fração do todo. Vai de uma análise profunda da solidão ao exame pormenorizado da vida em sociedade. Consegue ser trágico, irônico e engraçado. Ao mesmo tempo. Na dose exata às pretensões do mercado. Tudo bem visível, tudo na superfície. Sim, é ficção, eu sei. Mas de ficção desse teor o inferno está cheio.
Uma fração do todo é de ruborizar o livro de Murakami, aquele sobre corrida. Steve Toltz mostra que não brinca em serviço, está bem preparado fisicamente. Recomenda-se o mesmo treinamento aos leitores, pois estarão a cada página frente a um novo acontecimento. Tal aspecto aliado a características dos personagens, sobretudo Terry, faz de Uma fração do todo um tardio representante da novela picaresca. Imprevisibilidade é outra característica da obra de Toltz, reviravoltas e mortes que mudam o rumo da história. Sim, o leitor jamais sentirá o tédio tentando lhe seduzir, ao mesmo tempo se perguntará: mas pra que tudo isso?
Optei pela morte, pelo medo da morte. Mas precisava tanto para tão pouco?
Não interprete, freudiano leitor, por favor não interprete. Isso não significa que este aprendiz ame livros sonolentos nos quais pouco acontece, como Beckett e o tédio-mor de Clarice Lispector. Nada disso. Toltz escreveu um livro para os irmãos Cohen, fique atento, cinéfilo leitor. O trágico e o engraçado referido anteriormente, lembra? Lá no começo.
Irmãos Cohen, irmãos Dean. Martin e Terry Dean. Opostos, extremamente opostos. Martin, filósofo pessimista, Terry, líder da “cooperativa democrática do crime”. Martin, o taciturno, a ausência de movimento. Terry, o bandido carismático, a inquietação.
A história é narrada por Jasper Dean, filho de Martin. Jasper é o resultado das influências familiares extremamente opostas. Tudo leva a crer, no entanto, que se as influências viessem apenas de seu pai, o resultado não seria muito animador. “Ele me tirou da escola com a intenção de me educar ele próprio e, em vez de me deixar pintar com os dedos, lia para mim as cartas que Van Gogh escreveu para o irmão Theo pouco antes de cortar a própria orelha.”
Jasper é praticamente a cobaia de Martin. Cobaia de filósofo existencialista, convenhamos… O garoto sobrevive, assim como outras cobaias sobreviventes, ostentando seqüelas.
A orelha de Van Gogh é uma das traduções da obra de Toltz, trata-se de uma fração. Ao final da leitura, restará ao leitor a possibilidade de optar por uma fração: escolhi o medo da morte. Você tem várias outras: análise engraçadinha sobre a Austrália e os australianos, tratado sobre relações familiares, retorno ao ideal quixotesco, pitadas de Policarpo Quaresma, e pasme, reflexões acerca da solitária atividade intelectual. Repleto de novidades, não?
A outra tradução: o inconformismo de Martin. Submeter uma criança ao cansaço dos professores é exigir extrema submissão. Com a palavra Jasper: “…depois de oito meses no jardim de infância, decidiu me tirar de lá, porque o sistema educacional era ‘embrutecedor, emburrecedor, arcaico e materialista’. Eu não sei como alguém pode chamar pintura a dedo de arcaico e materialista”.
Depende, Jasper, depende. Mais uma: o livro traz inúmeros questionamentos, humor, interpretações de inestimável relevância, que beira a auto-ajuda.
Percebeu, exigente leitor, um livro de mil e uma utilidades. Bom proveito.