Capítulo 13
Seis anos antes
Quarta-feira, 25 de janeiro de 1984
17h34
A multidão foi abrindo espaço para o homem em cadeira de rodas. Quem não o via, de olho pregado no palanque ao longe, ouvidos tentando captar as palavras que os ecos das dezenas de alto-falantes por vezes embaralhavam, indiferentes à intermitente chuva fina, era avisado pela pessoa ao lado, ou a de trás, todos solícitos, um ou outro chegando mesmo a tocar seu ombro, ou oferecendo a mão em cumprimento sem se incomodar que ele a ignorasse, sentindo uma súbita afinidade, porque até um cidadão com inequívocas limitações de mobilidade fizera questão de estar presente naquele lugar, naquele momento. Mais um brasileiro para dizer basta.
Acima dele, adiante dele, à volta dele, penduradas em janelas, amarradas a postes, presas a grades de ferro de lojas, coladas em paredes e portas, carregadas por grupos, exibidas por indivíduos, duplas, trios, turmas de jovens, filas de senhores de terno e gravata, viu adesivos, faixas de tecido e plástico pintadas, panfletos, cartazes impressos, folhas de cartolina escritas com canetas hidrográficas, volantes, bandeiras do Brasil, bandeiras vermelhas com a foice e o martelo, bandeiras vermelhas com estrelas brancas. As ruas que desembocavam na praça em frente à igreja de estilo neogótico estavam cheias. E mais gente chegava.
Atingiu um ponto de onde não era mais possível avançar. Uma das rodas estancou sobre uma elevação de grama, inclinando a cadeira para o lado. Estava rodeado. Recuou até se colocar totalmente sobre o canteiro.
Deve ter mais de vinte mil pessoas aqui, calculou. Bem mais. Umas trinta mil.
Olhou de novo à sua volta.
Mais de trinta. Mais de quarenta mil. A praça da Sé tem perto de cinqüenta mil metros quadrados. Todos os espaços estão ocupados. As ruas e avenidas próximas, o viaduto Dona Paulina, idem. Quando as fotos de nossos agentes forem reveladas, poderei calcular melhor. Mas passa de quarenta e cinco mil, com certeza. Ou cinqüenta.
O grande palanque ao fundo fora construído alto o suficiente para ser visto de qualquer ângulo. Sobre ele se espremiam algumas dezenas de pessoas. Políticos, sindicalistas, artistas. Vários, muitos, vestiam camisetas amarelas. Um locutor anunciava as suas presenças, dizia palavras de ordem, chamava um ou outro à frente, para discursos ou incitações. Reconheceu-o pela voz, que se habituara a ouvir em transmissões esportivas: Osmar Santos.
Às vezes acenando, freqüentemente se falando com familiaridade, viu aqueles cujas fichas no seu setor do Serviço Nacional de Informações só faziam aumentar, desde os anos 1960. Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio da Silva, Chico Buarque, Henfil, Fernanda Montenegro — os subversivos de sempre e alguns mais recentes.
Meu irmão deve estar aqui, considerou. Se Paulo voltou do exílio, deve estar aí nesse meio. Junto desse tipo de gente. Mas continua na Suécia. Eu teria sido informado, se Paulo tivesse voltado.
Todos os discursos eram aplaudidos, alguns com maior entusiasmo. Como o do líder sindical Luiz Inácio da Silva. Em certo momento houve as palmas para a passagem de um cortejo levando um caixão preto onde Antonio leu a palavra “Indiretas” em letras brancas.
O governador de São Paulo pegou o microfone.
Me perguntaram se aqui estão trezentas ou quatrocentas mil pessoas, Franco Montoro gritou, agitando a mão esquerda no ar. Mas a resposta é outra. Aqui estão presentes as esperanças de cento e trinta milhões de brasileiros.
Foi ovacionado. Alguém puxou um coro ao qual se juntaram milhares de vozes.
Um, dois, três,
Quatro, cinco mil,
Queremos eleger
O presidente do Brasil.
Eles perderam o medo, pensou Antonio. Depois da anistia, da volta dos terroristas que estavam no exterior, da interrupção das detenções secretas e dos interrogatórios no DOI-CODI, do fim da vigilância aos órgãos de comunicação e da retirada dos censores nas redações, eles estão pondo as cabeças para fora de suas tocas. Os ratos estão saindo dos esgotos.
Os primeiros acordes do Hino Nacional começaram a ser transmitidos pelos alto-falantes. Muitas pessoas levaram a mão direita ao peito. Algumas tinham lágrimas nos olhos. Quase todos cantavam.
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas,
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da liberdade em raios fúlgidos
Brilhou no céu da pátria nesse instante.
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó Liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte,
Ó pátria amada, idolatrada…
Pobre pátria, refletiu. Entregue de bandeja a essa gente por um presidente inepto, incapaz de impedir que a crise internacional derrubasse nosso projeto de um Brasil Grande. Um cavalariano medíocre, ungido pelo Pastor Alemão dividido entre aceitar a inevitabilidade da repressão para a construção do Brasil de Primeiro Mundo iniciada em 1964 e a desordem de uma suposta liberdade em prol de uma ainda mais suposta democracia. Vamos acabar nas mãos desses corruptos, desses comunistas e socialistas apeados do poder depois de tanto planejamento, vinte anos atrás. Duas décadas jogadas no lixo. Em outros tempos, teríamos podido colocar uma bomba no meio desta multidão. Ou provocar alguma pancadaria para desmoralizar publicamente este comício. Temos agentes à paisana espalhados aqui pela praça da Sé e gente nossa lá no palanque, mas de que servem? Todos proibidos de agir. Viramos bonecos. Viramos coniventes. Pior. Viramos cúmplices.
Girou a cadeira, deu as costas para o palanque. As pessoas à frente abriram espaço para que passasse.
Na esquina da rua Rangel Pestana cruzou com quatro policiais militares vestidos em fardas de combate. Havia muitos, em vários pontos. Inúteis, todos inúteis, concluiu Antonio, afastando-se.