“Um homem que desiste de si mesmo para outra pessoa viver. Perder a vida para conceber a vida. Morrer para ser a vida de Rachel. Viver com sua estupidez e com sua sabedoria. Alegrar-se com sua alegria.”
O trecho de abertura de um dos capítulos do novo romance de Raimundo Carrero, Seria uma sombria noite secreta, é uma síntese do próprio livro. O camelô Alvarenga nutre uma estranha paixão pela prostituta Rachel. A estranheza vem do fato de não haver nada de carnal nesta admiração. Tudo está revestido por um manto de necessidade de proteção, de canina devoção. Ele se anula para fazer nascerem todos os caprichos da moça atormentada pelo passado e por suas crenças.
Filha de uma classe média decadente, Rachel estuda em um dos melhores colégios do Recife e cursa uma faculdade de história, onde se encanta pela teoria do corpo social francesa. Toda sua adolescência é passada em um sobrado da praça Chora Menino, onde o pai anda de ceroulas e suspensório, mantendo viva sua macheza. Tudo em sua volta, sobretudo a misteriosa morte do pai, cria expectativas de desilusão e misérias, da negação à solaridade natural da cidade onde vive.
O oposto da solaridade, por outro lado, acompanha desde sempre seu amigo Alvarenga. Sua mãe viveu na miséria e foi abandonada pelo pai de seu filho. O menino chega a estudar, mas premido pelos extremos da timidez e do medo, vive sob a provocação dos colegas. E mesmo quando consegue se destacar em um jogo de futebol, é vitimado pela brincadeira de um outro menino e passa a desfilar estoicamente com um sapato de cada cor, numa das mais belas representações literárias dos princípios de Zenão de Cício.
Essas vidas opostas se encontram na praça Chora Menino, onde a adolescente Rachel mora e passa a caminho do colégio e o já maduro Alvarenga vende sorvetes e toca uma corneta. Há breves separações e um reencontro nas ruas de prostituição do Recife Antigo, onde vive a moça encantada pela teoria do corpo social. E aqui se define todo o sentido do romance.
Carrero trabalha com aquilo que determinada corrente teórica convencionou chamar de “obra de pensamento”, ou seja, uma literatura voltada para o debate de uma vertente teórica. No entanto, seu interesse maior é mesmo mergulhar na condição humana, na alma e nas inquietações de seus personagens, quase sempre sínteses do conjunto de crenças do próprio autor. No caso específico de Seria uma sombria noite secreta a crença está na grandeza da tese do corpo social formulada pelos revolucionários franceses de 1789. O feixe filosófico saído daí e que, de certa forma, reestrutura os desígnios da democracia, por outro lado quebra todo sentimento de posse que ainda dominava o mundo adolescente de Rachel. Sua transformação em prostituta, puta, como ela gosta de dizer, parte desta compreensão, mas tem um sentido superior.
Resignação
Como é básico em toda obra de Raimundo Carrero, a resignação religiosa está por traz de todas as atitudes de Rachel e Alvarenga. As entregas de Rachel são humilhantes e doloridas, são purgações aos vários incestos insinuados no antro de sua família e mesmo ao desmedido apetite sexual do pai. A submissão de Alvarenga e sua condição de apaixonado resignado e conformado com a incapacidade de tocar seu objeto de desejo têm reflexo da religiosidade também. Ele parece apenas pagar pela vida de previsíveis fracassos que não conseguiu reverter. Seu pecado, enfim, foi a falta de ambições e a resignação à miséria.
Estamos assim diante de um belo jogo de poder e submissão. Rachel, mesmo involuntariamente, se arma de poderes, apesar da degradação da atividade que escolhe para si. E como tudo nesta escolha nasce do desejo de confirmar uma teoria, ela mantém o controle de seus passos que, de sorte, são entristecidos e sombrios. Alvarenga é sobre quem recaem as provas do poder de Rachel. Ele toca sua corneta, agora não mais para vender sorvetes, mas para chamar os clientes, para avisá-los de que a moça está preparada e pronta para atendê-los. E como recompensa ganha dela um peixe dourado de chocolate, como uma foca amestrada qualquer que, sem vontade nem forças, apenas cumpre seu papel neste estranho circo.
O interessante de toda obra de Raimundo Carrero é sua capacidade de envolver o leitor numa narrativa não linear. Ele arma sua prosa com uma estrutura onde as informações surgem nos momentos necessários, quando o leitor já está em ponto de se desesperar pela falta de sentido de algumas ações dos personagens. É daqueles escritores que sabem tirar da literatura uma função maior e mais nobre que o mero entretenimento. Seu trabalho é deleitar sim, mas com sobriedade e nobreza.
Além desta carpintaria refinada, há o texto manipulado em favor de uma literatura conseqüente. Carrero se permite determinadas licenças poéticas e outras tantas traições às regras da boa escrita como maneira de trazer originalidade à sua obra. Ele sabe exatamente onde reverter o óbvio e assim cria novas iluminações e prazeres ao leitor. Trabalha com a repetição de palavras e frases, dá novos sentidos aos termos desgastados pelo uso, inova e traz novas cores para a língua.
Um bom exemplo deste exercício está na descrição do Recife. Desde a praça do Chora Menino até o Marco Zero, no bairro do Recife Antigo, convivemos com uma cidade sonhada, idealizada. Suas misérias, seus cheiros, seus hábitos viveram ou ainda vivem pelos recantos da metrópole, mas o que interessa é sua transmutação em metáfora. Ou seja, não importa a Carrero uma descrição rigorosamente sociológica da cidade, mas o que seus costumes influenciaram na formação da alma de sua gente. Por isso Rachel e Alvarenga são recifenses universalizados, que estão além dos limites restritos oferecidos pela comunidade que os criou.
Seria uma sombria noite secreta é um romance curto, de fácil leitura até, mas exige do leitor uma dedicação sacerdotal, do contrário ele perde toda a profundidade humana que resguarda cada uma de suas páginas.