Reflexões sobre as antigas reflexões sobre o conto (1)

Afinal, quais características são fundamentais na construção de um conto?
Cíntia Moscovich, autora de “Essa coisa brilhante que é a chuva”. Foto: Maria Elisa Faccioli
01/09/2011

O mundo dos vivos é sempre matizado, jamais em preto-e-branco. O pessoal da área de humanas percebeu isso milênios atrás e o pessoal de biológicas e exatas, áreas mais jovens, percebeu isso no século passado. Então o desafio mais desgastante em qualquer época é tentar definir o contemporâneo (o tempo atual, o mundo dos vivos). Sempre que ouço alguém definindo, por exemplo, o conto ou o romance contemporâneos, um sinal de alerta começa a piscar em meu cerebelo. Qualquer definição é por definição um enunciado em preto-e-branco que faz vista grossa para os muitos tons de cinza existentes. O reconhecimento de padrões é isto: selecionar arbitrariamente num cenário caótico poucos pontos estratégicos e formar com eles um desenho reconhecível.

O que nós chamamos de literatura contemporânea é na verdade a soma de muitas literaturas diferentes, às vezes antagônicas. Se você colocar um romance de Evandro Affonso Ferreira ao lado de um romance de Adriana Lisboa, ou um conto de Luci Collin ao lado de um conto de Cíntia Moscovich, eles brigarão feio. São temperamentos fortes que não toleram vizinhos de diferente plumagem. Mas certas etiquetas ainda muito usadas hoje em dia — poesia marginal, prosa experimental, romance histórico, literatura engajada, literatura de invenção, etc. —, apesar de simplórias, ajudam bastante na rápida identificação desses muitos temperamentos. Longe de atrapalhar, esses rótulos ajudam a organizar o caos. Mas devem ser usados com inteligência, sem histerismo.

O aspecto mais interessante de parte da literatura contemporânea — falo da parte que mais me desafia e estimula — é a tentativa de voltar às origens. Não se trata de uma tentativa consciente e planejada. Todos nós sabemos que o retorno às origens é algo tecnicamente impossível. O que acontece com parte da literatura contemporânea se parece mais com o fenômeno gravitacional. No início da jornada humana, bem antes da invenção da escrita e da construção das primeiras cidades, todas as artes estavam reunidas. Para a humanidade primitiva, do período paleolítico, as muitas representações do mundo sagrado e profano passavam por uma mistura de música, dança, teatro, pintura, escultura, prosa e poesia. Na pré-história as manifestações religiosas, artísticas, científicas e políticas andavam umas dentro das outras. Mas com o passar do tempo essas manifestações foram conquistando autonomia. Hoje, quando teóricos, artistas e escritores falam em desfocar as fronteiras na crítica, na arte e na literatura, eu escuto o chamado silencioso das origens, a força gravitacional tentando nos atrair para aquele núcleo antigo, mais instintivo.

Desfocar as fronteiras literárias é permitir que certos procedimentos da poesia trabalhem, por exemplo, num conto ou num romance, e vice-versa. Os escritores modernistas fizeram bastante isso. Do início do século 20 para cá, as categorias da lírica (ritmo, rima, assonância e aliteração, eu lírico, subjetividade e ambigüidade) contaminaram muitas ficções, e as da ficção (personagem, enredo, narrador, tempo, espaço, objetividade e exatidão) impregnaram muitos poemas. O texto científico e o jornalístico também foram convocados pelos poetas e pelos ficcionistas. A palavra de ordem, para esse grupo de escritores, é miscigenação. A fronteira entre as artes também foi desfocada. Poetas e ficcionistas contrabandearam para seus trabalhos literários elementos das artes visuais, da música, do teatro e da publicidade.

Essa abertura para a miscigenação é muito recente, e está restrita a certo nicho alternativo da criação literária. Não pertence ao senso comum. Quando a maioria das pessoas pensa em poemas, contos ou romances, elas ainda têm em mente a forma clássica desses três gêneros literários. Ainda hoje, pra muita gente, a mistura desnorteia. Quanto mais as formas híbridas se afastam das convenções acadêmicas clássicas, menos certeza as pessoas vão tendo da natureza literária dessas obras misturadas. Um exemplo extremo: esse princípio da incerteza literária sempre rondou as narrativas híbridas de Valêncio Xavier, mesmo quando ele publicou parte de sua obra por uma editora de projeção nacional.

Afinal o que é um conto? Perguntinha simples, não? Mais ou menos. É como perguntar: o que é o tempo? O que é o amor? Todo mundo sabe o que são essas coisas. Mas se desafiados a definir o tempo ou o amor, logo nos embananamos e gaguejamos, vítimas da tautologia. O que é um conto? Muitos contistas talentosos teorizaram sobre o gênero, propondo sua receita para a criação de um bom conto. Citarei rapidamente apenas seis: Edgar Allan Poe, Anton Tchekhov, Horacio Quiroga, Ernest Hemingway, Julio Cortázar e Ricardo Piglia. Apesar dos diferentes pontos de vista, todos respeitaram a estrutura de base do conto clássico, hegemônico, deixando de fora a miscigenação.

Para Edgar Allan Poe (1809-1849) um bom conto é a revelação de um acontecimento extraordinário e seu ponto principal é o desfecho, o final, que precisa ser surpreendente. Muitas vezes Poe concebia primeiro o final de um conto, para só depois planejar o início e o meio. O clímax deve comandar todo o resto, dizia ele. Outro ponto importante: a extensão ideal. O conto deve ser uma narrativa nem muito curta nem muito longa, sua leitura deve ficar entre meia hora e uma hora e meia. Para Poe tudo num conto deve ser organizado em função do que ele chamava de unidade de efeito. Então o mais importante é a relação entre a extensão do conto — narrativa pra ser lida numa assentada — e o efeito que a leitura deverá provocar no leitor: sentimento de terror, tristeza, compaixão, humor, volúpia, etc. Essa é a teoria clássica do conto. A ficção que mais plenamente se manifesta nessa teoria é justamente a de detetive, inventada por Poe em meados do século 19. Esse subgênero literário, mais do que qualquer outro, não tem como existir sem um acontecimento extraordinário — o crime — e um final surpreendente — a revelação do criminoso —, manejados para causar no leitor um efeito único e intenso: a surpresa.

Anton Tchekhov (1860-1904) concorda com Poe quanto à extensão ideal e à unidade de efeito, mas discorda totalmente quanto ao acontecimento extraordinário e ao final surpreendente. Os contos de Tchekhov são interessantes justamente por tratarem de acontecimentos banais da vida sem graça de pessoas comuns. São narrativas quase sem ação, em que nada parece acontecer. O acontecimento extraordinário, quando existe, está fora da moldura do quadro. Aconteceu antes, e o que o narrador pretende revelar ao leitor são os efeitos daquele acontecimento desconhecido. Essa é a teoria modernista do conto. Desaparece o conto de enredo e surge o conto de atmosfera.

Horacio Quiroga (1878-1937) escreveu um irreverente Decálogo do perfeito contista, misturando mandamentos sensatos com disparates. Durante muito tempo eu levei bastante a sério esse decálogo, até ouvir do professor Wilson Alves Bezerra, estudioso da obra do uruguaio, que a intenção de Quiroga nunca foi doutrinar, mas ironizar os manuais que pretendem orientar a prática literária. Quiroga ri do exagero das regras. Seu decálogo, avisa Bezerra, não deve ser lido de modo literal. Ele não é um conjunto pretensioso e questionável de dicas sobre a prática ficcional. É uma obra metalingüística coordenada pela ironia.

CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho