Meditações de um não-leitor

A leitura de uma ficção exige, antes de tudo, liberdade anterior; entram em jogo instinto, cegueira e impulso
Ilustração: Tereza Yamashita
01/09/2011

Volto de Londres e, na correspondência acumulada em meu escritório, encontro uma carta de Lygia Bojunga enviada justamente da capital britânica. E escrita no mesmo dia, 5 de junho, em que lá desembarquei. Podíamos ter nos encontrado em algum pub. Falhamos em uma longa conversa que não tivemos. Enfim, no lugar do pub, veio a carta.

A sincronia me leva a ler a carta de Lygia não com dois, mas com quatro olhos, nela procurando algo que a ultrapasse. Usando-a — como quando se lê uma ficção — como um telescópio, que aponta através do mundo e para fora dele. Mas para onde? Fechamos o livro e continuamos a não saber, e só por isso que ficções nos seduzem e arrastam.

Leio a amorosa carta de Lygia com emoção e nela encontro, à primeira pista, uma referência a A maleta de meu pai, livro do turco Ohran Pamuk, traduzido no Brasil pela Companhia das Letras. Livro que li com grande entusiasmo. Semanas antes, ao embarcar para Londres, Lygia — sincronizando o título com o objeto — colocou em sua maleta de mão o livro de Pamuk. Não chegou a abri-lo durante a travessia do Atlântico. Leu outro livro, que não me diz qual foi, e só um mês depois, naquele 5 de junho que agora nos liga, terminou, enfim, a leitura adiada.

Também eu, que segui desde Londres para uma viagem de dez dias pela Rússia, levei em minha maleta de mão um romance, Sob os olhos do Ocidente, de Joseph Conrad, relato ambientado justamente no país que visitaria. Levei-o e, como Lygia, também não o li. Ao contrário dela, não o substituí por outro livro. Embarquei muito cansado, tomei duas taças de vinho e simplesmente dormi durante toda a viagem.

Nessa segunda sincronia (carregar na mala livros que não lemos, depois de nos falarmos sem nos ver), Lygia, ao menos, se corrigiu. Quando, afinal, lerei o romance de Conrad? Sua carta me levou a pensar nos livros, quantos livros, que já planejei ler e, por uma série caótica de motivos, nunca cheguei a ler. Livros de que, de alguma forma, também “sofro”, não porque eles tenham me abalado e rompido alguma coisa em meu espírito, mas porque estão sempre a me escapar.

Lembrei-me, então, de um amigo, B., a quem não vejo há muitos anos e sequer sei por onde anda. Leitor apaixonado, orgulhava-se, em particular, não de um grande livro que leu, mas de um grande livro que não leu: Cem anos de solidão, o romance que Gabriel García Márquez lançou em 1967. Já terá, enfim, o lido? Não creio, pois em seu caso o orgulho parecia maior que o desejo.

Todos recordam do sucesso com que Cem anos de solidão foi recebido. Nessa época, eu e B. éramos colegas na reportagem do Diário de Notícias. Lembro que comprei o livro e, nos intervalos das apurações jornalísticas, eu o devorei. Comentei isso, entusiasmado, com meu amigo. B. logo comprou também seu exemplar, mas o mantinha fechado, como um talismã, sobre sua mesa de trabalho. “Não vai começar a ler? Você não sabe o que está perdendo.” Não me respondia, limitava-se a resmungar: “É, todos dizem que é ótimo. Preciso ler”. Mas ficava nisso.

Alguns meses depois, em um tedioso almoço profissional, alguém comentou a respeito de Márquez e seu grande livro. B. foi ríspido: “Já sei, vão repetir que é uma maravilha e que é imperdível. Justamente por isso eu não o li. E nem vou ler”. Chamei-o, depois, para um café, ansioso para que me explicasse melhor suas razões de não-leitor. Foi ríspido: “Passei a não gostar do livro, é só isso. Se todos gostam, se todos se sentem obrigados a gostar, prefiro não gostar. Não gostar e não ler”.

Ainda tentei argumentar que são muitas, e dispersas, as razões pelas quais apreciamos um livro. E, também, pelas quais deixamos de apreciar outros. Mas B. tinha ódio à unanimidade. Confesso que entendo sua aflição, que somos muito parecidos. No início dos anos 1980, quando Memórias de Adriano, o romance mais célebre de Marguerite Yourcenar, foi lançado no Brasil, o mesmo sentimento me dominou. O livro era um sucesso, todos o adoravam — e, embora o tivesse comprado, adiava a leitura, sem entender por que fazia isso. Ninguém me impedia de ler, eu mesmo me impedia. Mas por quê?

Por fim, um dia, motivos profissionais me obrigaram, a contragosto, a ler o romance de Yourcenar. Preferia persistir no estranho tabu que dele me afastava, mas meu chefe me escalou para escrever uma resenha. E o que eu temia aconteceu: senti uma grande decepção. Escrevi sobre Memórias de Adriano uma resenha neutra. Não aprecio os mornos, mas a mornidão tomou conta de mim. Quase tão famosa quanto sua tradução, a tradutora brasileira do romance, dias depois, apareceu de surpresa em meu apartamento. Queria me agradecer pelo artigo.

Lembro que não tive coragem de recebê-la e que, pelo interfone, dei alguma dessas desculpas odiosas que, por cansaço, ou por pudor, nos sentimos obrigados a dar. Não havia motivo algum para não recebê-la e, na verdade, cometi uma grosseria. Meu motivo secreto era inconfessável, se eu o revelasse, por certo, ela se sentiria pessoalmente atingida: simplesmente não gostei do romance. Antes tivesse persistido na posição de não-leitor! Seria mais reconfortante dizer não para os outros, mas para mim mesmo: “Um dia desses, lerei”.

Naquele dia, pude entender a resistência de meu amigo B. à leitura de Cem anos de solidão. A leitura de uma ficção exige, antes de tudo, liberdade anterior. Entram em jogo instinto, cegueira e impulso. É muito difícil ler uma ficção com um revolver apontado para a alma — seja o primeiro posto em uma lista de best-sellers, ou o elogio consagrador assinado de algum crítico de prestígio.

A melhor leitura é “sem motivo”. Você segue em frente até o fim, seguindo apenas seus instintos mais cegos. As mesmas forças secretas podem, como no caso de meu amigo B., impedir uma leitura. Cria-se, nesse caso, um ódio sem explicação. Não sei se a palavra correta é ódio. Talvez seja medo — o que me leva a pensar que a literatura não é nem para preguiçosos, nem para medrosos. Devo admitir, por fim, que jamais li Memórias de Adriano e que, provavelmente, nunca lerei.

P. S.
Li, sim, Memórias de Adriano, tanto li que escrevi minha resenha. Mas continuo a afirmar que não o li. Fiz o que costumo chamar de “leitura a seco”. Uma leitura técnica, por obrigação, sem chegar a atravessar o corpo do livro. Quantas vezes fui obrigado, por motivos profissionais, a fazer, a contragosto, “leituras a seco”! Como isso me desagradava!

NOTA
O texto Meditações de um não-leitor foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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