Duas horas da madrugada, terça-feira
Ontem fui ao centro da cidade. Fiquei lá, vasculhando os sebos. Saí de mãos vazias. Isso nunca tinha acontecido. Estou acostumada a encontrar o que procuro, ou a ter novas descobertas e desejos pelo caminho. Nunca vaguei entre as coisas, como se não houvesse um rumo para mim. Mas, naquele dia, perambulei entre livros e poeiras, e não sei, de verdade, o que procurava ou mesmo se procurava. O único momento em que me senti realmente buscando algo, sabendo o que era e onde encontrar, foi quando atravessei a rua para tomar um café. Até então, aquele havia sido um dia sem liberdades. Como é simples: um desejo, um objeto, uma direção, uma atitude — e basta, para começar ou acabar um novo mundo. Nas mãos, o sim ou o não da conquista. Isso, sim, é ser livre.
Mas, como nenhuma procura e nenhum desejo é inocente, mesmo os mais indefesos e recolhidos, eu sabia, e muito bem, o que queria. Queria que caísse em minha mente — como um livro pronto cai no chão, em toda a sua concretude — a idéia clara e definitiva do meu romance. Como se só o fato de estar entre outros livros pudesse me inspirar a escrever. Como se a existência dos livros ao redor contribuísse para dar forma e nascimento ao meu, que ainda não existe. Que ainda está em estado de latência, em outro plano. No vazio. Na ponta dos meus dedos, na palma deserta de minhas mãos.
Meia-noite, sexta-feira
Depois de dias sem esperança, consegui escrever duas páginas razoáveis. O razoável pode não nos dar a ilusão das alturas, mas, às vezes, é o bastante. Ao menos, me fez entrar numa livraria com a impressão de estar mais perto dos livros, como se estivéssemos enfim nos aceitando com menos desconfiança. Contra todas as expectativas, descobri que o razoável, pode, às vezes, nos levar ao êxtase. Bastaram duas páginas para eu vislumbrar a plenitude. Quando voltei à realidade e me fixei em alguma coisa, vi, com repentina nitidez e detalhes, numa prateleira, um exemplar de Diário completo, de Lúcio Cardoso.
Não só já havia ouvido falar muito desse livro, como já o havia procurado em vão. E, de repente, lá estava, na minha frente, em um dia que não o procurava. Era como se ele estivesse me esperando, como se fosse ele quem tivesse vindo ao meu encontro, e não ao contrário. Peguei o livro, com a estranha certeza de que ele seria muito importante para mim. Como quando se encontra pela primeira vez a pessoa que se amará e por quem se será inevitavelmente amado. Está lá, no primeiro olhar, todos os outros.
Abri uma página ao acaso. 10/05/1950: “Não são os acontecimentos que fazem um diário, mas a ausência deles”. Li a mensagem, o rosto vermelho, como se tivesse levado um tapa. Sim, o que tenho feito além de registrar o que não faço? Ou o que tem me parecido impossível fazer? O que escrevo aqui, a não ser as minhas irrealizações? Fechei o livro sem coragem de abrir outra página, e o levei, com uma sensação entorpecida, até o caixa.
Em casa, coloquei-o na estante, ao lado de O viajante, livro póstumo e incompleto de Lúcio Cardoso, com o qual ele se debateu por nove anos, em várias versões, sem conseguir acabar de escrever. Lúcio desabafou: “Lamento o tempo que desperdiço ou que não encontro para escrever O viajante. Tão presentes sinto seus personagens que às vezes vou pela rua e sinto que não sou uma só pessoa, mas um acúmulo, que alguém me acompanha, repetindo gestos que agora são duplos, embaralhando minhas frases, com uma ou outra palavra, que não pertence à realidade, mas ao trecho que me obseda”.
O mais assustador é que Lúcio Cardoso não ficava envolvido só com o Universo que criou, como também não era só uma pessoa, mas um acúmulo. Isso lembra Fernando Pessoa e seus outros “eus”. Mas os “eus” de Cardoso não traçavam limites entre a vida e a obra. Penetravam em ambos, criatura tomando conta do criador para depois cair mais uma vez em suas mãos e ser novamente dominada por ele, e logo após voltar a perfurar a sua individualidade, num interminável ciclo de renascimentos e mortes.
Cinco da manhã, quarta-feira
Desde que comecei a ler o diário do Lúcio, tenho tido sonhos violentos, com pessoas em transe, almas ensanguentadas que se buscam. E, neste meu romance, quero escrever sobre a delicadeza, afetos que se esgarçam e se entrelaçam, não sobre a brutalidade da vida. Ultimamente, porém, pouco tenho escrito, só faço ler. Não. Escrevo sobre o que leio e sobre o que não estou escrevendo. Faço meu diário, ou faço ficção de mim mesma. “Este diário contém uma única nota: a tentativa de justificação de alguém que não conseguiu nada, e que provavelmente nunca conseguirá dominar as forças contraditórias que o movimentam. Alguém que procura, que examina sem descanso os próprios impulsos e os dos outros, alguém que sofre de uma única melancolia, a de estar vivo, num mundo de signos indecifráveis”, disse Lúcio, digo eu.
Três da manhã, sábado
Não consigo largar o livro do Lúcio Cardoso (L. C. daqui em diante). Praticamente abandonei a escrita do meu romance. Nem lembro qual foi a última coisa que escrevi. Às vezes, acho que estou fugindo desse momento de sentar e escrever. Esse momento que exige tanto. Outras vezes, sinto que estou me diluindo, deixando de existir em meio ao que leio. Vou lendo e pensando sobre a literatura, e quanto mais penso mais ela me parece sem sentido. Como quando repetimos mil vezes uma palavra até desgastá-la de seu significado, a ponto de a acharmos absurda. Como disse Virgínia Woolf, citação do próprio L. C. : “As pessoas sem palavras é que são felizes”.
Duas horas da madrugada, terça-feira
“Tenho a sensação de já ter vivido muito”, escreveu L. C., “e de necessitar agora de um pouco de recolhimento para coordenar tudo o que vim recolhendo no caminho”. L. C. quer o silêncio, estar disponível para a criação. Há a necessidade de “(se)-recolher”, transformar tudo em matéria-prima para o sonho, a imaginação, a escrita.
Quero também me sentir assim, disponível para o imaginário. A um passo da solidão ou do isolamento, da criatividade ou da loucura.
Meia-noite, domingo
O silêncio é absoluto. Só os meus pensamentos fazem barulho. Tenho certeza de que esta noite encontro a minha escrita. Estava pensando que quanto mais escrevo sobre o que não escrevo, menos escrevo sobre o que realmente quero escrever. E mais escrevo sobre essa pessoa que não sou eu e que sou — quer dizer, este diário sobre outro diário, esta viagem sobre outras viagens, que me força a encarar isso. Isso que não sei. Talvez eu esteja fugindo, de cara para o abismo, de cara para o espelho. É ficção, não é. É tentador, ao mudar os pensamentos de mim para outros seres imaginários, ao ocupar-me mais com eles do que comigo, livro-me. E, ao mesmo tempo, me preencho, é essa minha esperança, será a de todos que escrevem? Li uma vez que os escritores que fazem diário o fazem para recordar de si mesmos, de quem são quando não estão escrevendo. Mas o estranho é que fazem isso com o próprio elemento do esquecimento: a escrita. Como se precisassem sempre desse movimento, o de lembrar e o de esquecer, a ficção que fazem do mundo, e a ficção de si mesmos.