Se o leitor se dispuser a ler os fragmentos aqui transcritos da obra A poética do conto, de Charles Kiefer, talvez se intrigue como eu. Com a promessa introdutória de não arriscar uma “poética” do gênero conto — pois muita gente já falou sobre isso (nomeia ao menos 30 teóricos); com a recusa em examinar a evolução histórica do gênero conto — embora, estranhamente reconheça a premência de tal trabalho; com a negativa em fazer a exegese — ou seja, a análise dos contos de autores escolhidos (aliás, tarefa máxima do intérprete acadêmico), o que sobra para Kiefer estudar e ensinar nas 400 páginas deste volume?
É, assim, grande a decepção com o título da obra, que promete o que o autor abre mão de nos oferecer. Aliás, não é essa a primeira vez que título e obra teórica de Charles Kiefer não se harmonizam. O tão anunciado Para ser escritor, ao contrário do que sugere, não ilumina aprendizes do texto, nem aborda aspectos do processo criativo, como podem supor esfalfados professores.
Nesta obra — na origem, a tese de doutorado de Kiefer (2004) —, o autor afirma que examinará um tipo de conto, “nascido com a industrialização, filho da locomotiva e da imprensa”, a que chama de “variante da modernidade ocidental”. Para a tarefa elege não exatamente certos contos escolhidos de Nathanael Hawthorne, Edgar Allan Poe, Julio Cortázar e Jorge Luís Borges. A longa tarefa em que se debruça Kiefer é “resenhar e classificar” estudos de Poe sobre Hawthorne (capítulo 1), estudos de Cortázar sobre Poe (capítulo 2), leituras e palestras de Borges sobre todos os anteriores (capítulo 3).
Se não há análise dos textos ficcionais de tão essenciais contistas, tão somente extensas paráfrases; se não há desejo de definir uma nova poética do conto, o que aprendemos nesta obra de teoria literária? Lamentavelmente, tão bom ficcionista que é, Kiefer nos oferece quase que somente aspas. Sim: aspas, pois transcreve (com muita competência, é verdade) o que um escritor diz do(s) antecessor(es). Ou seja, Kiefer nos conta, usando a voz dos próprios escritores na quase totalidade do trabalho, como estes compreenderam e analisaram seus antecessores. O autor foi, assim, um hábil tecelão das vozes alheias através das quais pretende marcar a tal “variante da modernidade ocidental”:
O que Poe valoriza nessa obra [‘Wakefield”, de Hawthorne] é a “análise dos motivos” da loucura do marido e “as possíveis causas de sua persistência”. (…) Antes de finalizar a segunda resenha, apresenta ainda alguns senões, como o tom de melancolia e misticismo “por demais geral e predominante” e a falta de versatilidade nos assuntos. Elogia a “pureza de estilo”, a “força narrativa” e a “alta imaginação” de seu companheiro de ofício.
Onde está a voz do autor? Onde se esconde a voz crítica de Kiefer? Ela se esconde, como se vê facilmente, por trás de páginas e páginas de transcrições e de resumos (sim, resumos) dos contos de todos os escritores eleitos, além de quadros — inúmeros — com títulos, tipo de foco usado, espaço, tema e tempo dos contos eleitos pelos escritores. Tal voz pessoal, pela qual anseia o leitor de um livro-tese (aliás, espaço eleito das proposições e hipóteses a comprovar) aparece tímida, muitas vezes em rodapés. Por exemplo, quando comenta o que Cortázar chama de “intensidade de outra ordem” (…) “na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente do que conta”, Kiefer, perdendo a chance de melhor analisar a recepção teórica do escritor argentino, acrescenta em rodapé: “Parece ter escapado a Cortázar que a intensidade de ação corresponde à unidade de efeito, enquanto a tensão interna é dada pela atmosfera. No limite, são resquícios da oposição entre épica e lírica, dinâmica e estática”.
Ou adiante, quando nos conta que Cortázar afirma nascerem certos contos do “état second” (estado de transe), toma a voz deste: “Este homem porá uma folha de papel na máquina e começará a escrever”; e completa em nota: “Nesse aspecto, a poética de Cortázar entra em flagrante contradição com a poética de Poe, que preconiza exatamente o contrário”.
Ora, ao leitor apegado ao tema que o fez abrir o livro, vale menos concordar ou não com o pesquisador e muito mais lidar com a agudeza das suas observações, como algumas dessas, tiradas a fórceps dos ângulos da obra. Ou seja, o esquematismo ralo (e me penitencio pela aridez da expressão) pelo qual Kiefer optou não dá a este trabalho a estatura que o nome do ficcionista merece e que sua experiência demanda.
Riscos
Há grandes riscos em construir uma obra com esses parâmetros. Diferentemente do que alguns resenhistas deste livro afirmaram — de que Kiefer merece aplausos por “destrinchar” (leia-se resumir) Twicke-told tales (Hawthorne), Tales of the grotesque and arabesque (Poe), O bestiário (Cortázar) e Ficções (Borges), e nos contar o que cada um analisa na produção do antecessor —, eu penso no professor e no aluno leitor: se sou professora, conheço, é claro, a crítica: já li as resenhas de Poe (aliás, incluídas no anexo do volume), já li as teorias borgianas, já estudei as especificidades do conto de Cortázar e já recorri, há décadas, às teorias de Benjamin, Adorno e Todorov. Se sou aluno, vale-me ter acesso apenas a frações escolhidas por um autor, que reconta o que este disse daquele? Ou devo procurar os originais e sacar minhas próprias conclusões? Quero assim dizer — com todo o respeito que merece o ficcionista Kiefer — que, de tão escondido o pesquisador nas aspas, não se sabe bem para que ou a quem serve este livro.
E, para não cometer a imprudência da má leitura, li todos os resumos, todas as biografias, acompanhei o arsenal teórico (bastante sabido) de que fez uso o autor. Acabei encontrando, por trás de uma referência a Cortázar, uma rápida, porém, interessante, definição de conto: “Estruturalmente, nenhum conto de Cortázar pode ser confundido com crônica. Em todos, a existência cristalina de narradores, personagens, temporalidade, espacialidade e enredos definidos, embora de difícil síntese, define-os como contos”.
Entretanto, não consegui encontrar, e isso é muito intrigante, um conceito definidor do conto que Kiefer chamou de “variante da modernidade ocidental”, segundo ele, “o conto nascido com a industrialização, filho da locomotiva e da imprensa”. Qual é o conto nascido da “locomotiva e da imprensa”? Seria o gênero criado por Edgar Allan Poe na primeira metade do século 19? De qual locomotiva e imprensa se fala? Da nascida na Inglaterra no início do mesmo século ou aquela que seria símbolo de modernidade muitos anos depois? Seria esse o gênero que leva em consideração “o leitor como cliente”, no dizer de Kiefer, como se lê adiante?
Há, nessa postura [de Poe], uma evidente preocupação com o leitor. Esse respeito demonstra o quanto estava atento às novas relações sociais no interior da sociedade capitalista. Nela, o leitor é um cliente, um consumidor do produto artístico, e não quer, e não deve, e não pode ser enganado. O título, proclama o contista, deve fazer referência a tudo o que a obra contém.
Não se discutirá, infelizmente, o cenário fulcral criador da obra de Poe, as épocas conturbadas da “locomotiva” e da imprensa”, nem a América Latina do século 20, de Cortázar e Borges. As referências sociológicas da literatura estão só pinceladas, bastante carentes de maior aprofundamento. Na conclusão, Kiefer afirma sem recato:
No mundo da automação, a máquina sabe o que fazer. Este novo aprendiz não tem necessidade de mestres. Na medida em que a lição de vida, o ensinamento moral e a história exemplar perderam prestígio, o conto assumiu uma função hedonística e de entretenimento, como de resto a literatura. Sem aura, o conto virou mercadoria.
A que se refere Kiefer? O gênero conto e toda a literatura viraram mercadoria no mundo da automação de que século? Intrigante.
Com tantas inquietações, fiquei atenta às hipóteses iniciais do autor, a saber: a) o que o contista A gostaria de encontrar no contista B? ; b) o que o contista A encontra, de si, no contista B?; c) a leitura que o contista B faz do contista A ajuda o B a aprofundar ou não seu próprio padrão? d) o resultado dessas poéticas pode servir de modelo a novos contistas?
Tais questões terão respostas um pouco decepcionantes — porque aparentemente óbvias:
Em nenhum dos casos examinados, a leitura dos contistas levou-os à recusa de seus próprios padrões. Antes pelo contrário, o outro, a alteridade reforçou neles as convicções que já traziam. (…) O outro, a rigor, confirma a autoridade do que eles próprios já diziam, ou faziam. Deste modo, como pólos magnéticos invertidos, atraem-se pelo que se lhes assemelha.
E as “ilações” com que Charles Kiefer encerra a obra produzem o mesmo efeito sobre o leitor, que já avançou 400 páginas: “Contistas são elos de uma mesma corrente”; “os elementos narrativos são poucos, mas produzem combinações infinitas”; “a leitura devotada reforça no contista o que já estava nele”. Onde afinal se escondeu Charles Kiefer — ficcionista e acadêmico, que leu contistas, que leram outros contistas? Quanto ao esforço, do autor e nosso, este emperra no que leio na página 20: “Todos, dos assírios e babilônios a Nathaniel Hawthorne, dos gregos, árabes e judeus a Edgar Allan Poe, dos chineses e tibetanos a Julio Cortázar, todos, indistintamente, escrevem o mesmo conto. Ou sonham que o escrevem [grifos meus]”.