Herança profunda da Ibéria, o picaresco tornou-se uma espécie de coringa literário. Sempre que plana uma certa mesmice, alguém ressuscita o esquecido. E aí, como em qualquer movimentação cultural, o espaço se divide entre a genialidade e a mediocridade, sempre com mais abundância da segunda, infelizmente. Isso se dá por conta da dificílima construção de uma obra picaresca. Ela requer reflexão e profundidade nos temas que aborda com humor e graça. Esta linha tensa ligando o riso à análise por onde caminha o escritor muitas vezes se parte, transforma-se em armadilha.
Deixando de lado os fracassos, o melhor é olhar, sob este prisma, toda obra de Ariano Suassuna, certamente o mais freqüente e conseqüente de nossos autores picarescos. O Romance d’A Pedra do Reino é sempre a primeira lembrança quando se fala no assunto, no entanto suas peças, sobretudo O auto da Compadecida, são geniais reinvenções do picaresco. O auto, por exemplo, além de reconstruir a saga do amarelinho sabido, ladino, tão própria dos folhetos de cordel como dos romances clássicos do gênero, como A Celestina, de Fernando de Rojas, e A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades, de autoria anônima, faz uma mordaz crítica não à Igreja Católica, mas à forma como ela era conduzida por volta de 1930, época em que se passa a ação.
Em seu romance de estréia, Prosa de papagaio, a escritora Gabriela Guimarães Gazzinelli busca suporte neste lado mais tradicional e conseqüente do picaresco, a aliança entre o humor e a reflexão. Narrado por um papagaio falastrão, o livro olha com impiedade para uma sociedade emoldurada por necessidades fúteis. Todos os espaços são preenchidos por vazios e todas as ações parecem verdadeiramente voltadas para a construção da inutilidade. Ou seja, estamos diante de um retrato da realidade classe-média mais moderna e brasileira. E o narrador, o papagaio, insere-se bem no contexto ao trabalhar, divertidamente, com elementos caros à hipocrisia, como a constante defesa do modo de vida de seus personagens. Não há qualquer atitude de nenhum deles que não mereça sua ferrenha defesa, mesmo quando isso lhe custa contradição e mesmo o desdiz, fazendo-se assim uma brilhante arquitetura picaresca.
Gabriela, com formação em letras e filosofia, soube temperar sua prosa com um riso sutil. Fugiu do escracho mais berrante típico de alguns autores que enveredam pelo gênero. Não se apegou às fórmulas tão fáceis quanto desgastadas de descrever tórridas cenas de sexo, por exemplo. Seu picaresco prende-se à sutileza, ao ar blasé de intelectual bem formado que cerca seu narrador. Ele, o papagaio, torna-se o centro do romance, mas na verdade é seu olhar, sua visão de mundo que define todo sucesso da obra. Este olhar está preso mais às leituras, aos conhecimentos que digere, que propriamente a uma vivência real, factual. Ou seja, seu olhar é estrábico, nasce com outros olhares. E a dosagem entre o real observado pelo leitor e a verdade em que acredita o narrador promove o divertimento e a leveza da leitura.
Com propriedade, o escritor Luiz Ruffato, que assina o texto da contracapa fala em Machado de Assis. Não há como fugir deste paralelo, até porque mesmo o papagaio narrador freqüentemente se mostra admirado com a prosa do sempre festejado Bruxo do Cosme Velho. A dedicatória que faz em Memórias póstumas de Brás Cubas — “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas” — é sempre a primeira citação quando se fala do humor do escritor. Este humor sutil e delicado, no entanto, está por toda sua obra, sobretudo nas crônicas. No volume Bons dias, a reunião de crônicas políticas, há uma em que ele parabeniza um amigo. “Antes de mais nada deixem-me dar um abraço no Luís Murat, que acaba de não ser eleito deputado pelo 12o distrito do Rio de Janeiro. Eu já tinha escovado a casaca e o estilo para o enterro do poeta e o competente necrológico; ninguém está livre de uma vitória eleitoral.”
Bisneta
Gabriela pode ser vista como uma espécie de bisneta do humor machadiano, então. Sobretudo porque trabalha numa linha perigosa. Explico. Seu papagaio é um intelectual, já se disse. E claro que esbanja erudição, que pousa de indiferente diante de tudo e de todos. O perigo está em transformar este perfil em pedantismo, o que tornaria o romance algo pesado, onde a graça seria jogada no lixo. A escritora, no entanto, dribla a armadilha rindo do excesso de intelectualismo que domina os ambientes universitário e literário por onde caminham os donos do papagaio.
“Ultimamente ando meio meditabundo. Tenho pensado muito sobre coisas graves e importantes, como a vida, o universo, a sociedade, o belo, o tempo, o ser, o espaço, o papagaio.” Esta é uma mostra de como Gabriela ri do excesso de importância que os espelhos de seus personagens dão a si mesmos. Quando o papagaio insere-se numa lista onde estão a vida e o universo, formaliza um saudável deboche sobre escritores e professores.
A estes grupos pertencem os donos do papagaio. Horácio é um professor universitário permanentemente às voltas com suas aulas, suas alunas, seus congressos, suas palestras. Sempre que viaja de avião carrega no bolso uma folha de alface, pois acredita que é impossível acontecer o inusitado de o avião cair levando alguém com uma folha de alface no bolso. Ou seja, os modos excêntricos do personagem são expostos com toda a carga risível que carregam.
Sílvia, sua mulher, é poetisa e uma espécie de musa das vanguardas literárias de plantão. O papagaio não chega a mostrar nenhum de seus poemas, mas deixa nas entrelinhas, mesmo tecendo grandes elogios, que a personagem imponha-se mais por sua beleza e vaidade que pelas qualidades literárias, coisa não tão rara. Isto fica bem mais claro quando lemos a relação da poeta com Sibila, sua “feroz editora”. É esta quem determina cada passo a ser dado, cada presença em cada congresso, em cada lançamento, tudo enfim.
Aqui se olha o mundo literário, cada vez mais artificial, cada vez preso aos espaços das amizades e conveniências. É um olhar frio e real, não resta dúvida, no entanto necessário, pois o belo que tanto o papagaio defende é que deveria ser o núcleo e o norte da arte literária, hoje tão entregue aos sabores da vaidade. E contra isso se insurge a autora numa crítica velada e contundente, embora, mais uma vez, a faça com os requisitos da sutileza, da discrição. Nada no livro, de certo, parte da agressividade, da arrogância, o que o engrandece ainda mais.
Em meio a tudo isso sobrevivem Laura e Celina, as filhas gêmeas do casal. Todas as suas preocupações são pautadas pelo glamour do consumo. O papagaio as esnoba e está sempre numa posição de superioridade. É uma relação marcada pelo amor e a inveja. Ou seja, os sentimentos típicos da classe média em busca de ascensão social são bem interpretados pela autora que, mais uma vez discreta, vai moldando um mundo profundamente incoerente, maluco mesmo, onde os afetos são sempre relegados a um segundo plano em favor de vantagens promovidas pelas oportunidades momentâneas.
E voltamos a falar de sutilezas. Gabriela é mineira e o sentido da mineiridade doma o livro. Não que ela fale de um capiau à beira de uma estrada. Longe disso. Sua preocupação é mesmo com o espaço urbano e como isso vem afetando as pessoas. Se desfazendo de qualquer arrogância professoral, ela busca a estrada do riso. Daí a importância do picaresco como estilo primário de seu trabalho. E nisso consiste seu grau de mineiridade, saber rir das vaidades e pontuar a simplicidade como caminho mais curto para a satisfação plena.
Prosa de papagaio, de Gabriela Guimarães Gazzinelli, enfim, é uma reflexão serena e graciosa sobre o universo das vaidades intelectuais. Naturalmente que outros autores já transitaram por esta temática, mas o que coloca a autora numa posição inovadora é como ela doma as palavras; e mesmo tendo um narrador falastrão, ela consegue ser sintética, dizer somente o necessário. Um texto que, pelo riso, nos leva à reflexão.
3 Perguntas – Gabriela Guimarães Gazzinelli
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
É difícil singularizar qual foi meu primeiro contato com a literatura. Lembro as histórias de saci, dragões, fadas, vampiros, sereias, fantasmas. As leituras de Alaíde Lisboa, Ziraldo, Ângela Lago, Monteiro Lobato. Na minha primeira infância, a felicidade suprema era ficar em casa lendo e escutando, numa vitrolinha, histórias como Chapeuzinho Vermelho, O patinho feio, Os jardins do imperador, da coleção Disquinho. Aos sete anos, descobri que poderia criar minhas histórias. Para uma feira de ciências do colégio, resolvi escrever um livrinho, O pequeno planeta verde, uma saga de quatro gerações. Uma saga, veja só! Era uma história bem bobinha, de criança. Então, o que mais me preocupava era o objeto livro; queria que tivesse capa, formato brochura (desajeitadamente grampeado), ilustrações a cada página (devidamente numerada). Desde essa época, a leitura e a escrita foram se fazendo vitais. Talvez sejam o que tenho de mais constante no dia-a-dia.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
A escrita é um projeto íntimo. Permite-me pisar outros mundos. Num curto intervalo, posso experimentar um concurso de paixões sucessivas. Encontro-me em estado de suspensão, entregue aos prazeres da imaginação. Quando escrevo, portanto, de súbito, me subtraio ao comum das preocupações. Afora essa dimensão emotiva, a escrita é uma forma de puxar conversa com outras pessoas, com o meio em que me encontro. E também, naturalmente, uma forma de papear com outros livros e escritores. Em Anatomia da crítica, Northrop Frye diz que “só se pode fazer poemas a partir de outros poemas, novelas a partir de outras novelas”. O apreço pela conversação é um valor que nos é caro no Brasil. Graças à “vacina antropofágica”, valorizamos nossa diversidade, buscando sempre estabelecer diálogo e troca entre os diferentes legados que integram nossa identidade.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Antes de escritora, sou leitora e leitora sobretudo de romances. Talvez seja por isso que tenha me aventurado a escrever um. Mas comecei escrevendo contos (e continuo) e já experimentei um pouco com poesia. Há alguns anos, participei de uma oficina de literatura infantil. Foi uma experiência muito gostosa, e o resultado me agradou. Penso em retomá-la algum dia. Isso dito, o estado de enlevamento propiciado pela escrita é prolongado na criação de um romance. É um projeto a ser empreendido com vagar, em que se pode demorar na concepção de tal ou qual personagem, amadurecer a estrutura narrativa, apreciar sem pressa o desdobramento literário de certas idéias, polir a linguagem. A incorporação desse tempo do vagar na escrita, embora interessante, apresenta desafios. Durante o processo de elaboração, mudam-se idéias, opiniões; e escolhas feitas há alguns meses às vezes já não parecem tão acertadas. São as delícias de (re)escrever!