O romance Pequena biografia de desejos, de Cezar Tridapalli, apresenta algumas questões relevantes. Ele nos faz refletir sobre a vulnerabilidade humana que permeia a existência de pessoas comuns, diversas entre si, e excepcionais dentro dessas diferenças, em seus conflitos e suas estratégias de sobrevivência.
Desidério Santos dos Santos, o protagonista da trama, é um desses cidadãos comuns em torno do qual se estabelecem as ações e as construções temáticas e problemáticas do texto. A narrativa é conduzida por um narrador onisciente que tem um domínio absoluto sobre a interioridade dos personagens apresentados. Isto não acontece apenas por descrições sumárias, mas pela relação que estabelecem entre si e, cada um a seu modo, consigo mesmo, com a cidade que habitam e com as obsessões que alimentam. Desidério é um porteiro humilde de um edifício de Curitiba, onde residem pessoas da classe média. Mora na periferia da cidade, no bairro Boqueirão.
Vivia duas realidades: de um lado, o trato direto com as pessoas, vulgar, rotineiro, em que usava alguns monossílabos e, quando muito, algumas frases de três ou quatro palavras (…) Por outro lado, desde que começara a ler romances, com mais regularidade desde 1989, criara uma outra realidade, imaterial (…) Esse imaterialismo paralelo só encontrava perpendiculares quando trazia algum dado do mundo concreto para as abstrações desse seu outro mundo.
De um lado, o porteiro vivia como trabalhador, cidadão prestador de serviços, anônimo em seu rotineiro cotidiano. Por outro, a partir da leitura e de seus recursos imaginativos vai criando para si uma outra realidade, esse imaterialismo paralelo da ficção, que muitas vezes se encontra ou se confronta com a outra realidade vulgar de um mundo concreto. Da leitura compulsiva parte para a escrita secreta, numa paixão desenfreada pela fabulação dessa outra possibilidade de existência.
O romance é composto de doze capítulos. Especialmente os primeiros apresentam os principais personagens. Eles se entrelaçam na realidade cotidiana de Desidério e por sua vez, de alguma forma, têm influência sobre sua outra realidade, a imaterial. Vive com a mulher, Macária, um casamento sem paixão e, muitas vezes, sem sentido, e com um velho pai ausente e sofrido pelo abandono da mulher, mãe do protagonista. Esta, no dia do aniversário de 15 anos do filho, abandona a família para sempre. O fato marca de maneira decisiva a vida do rapaz e do pai que se fecha para o mundo e torna-se, de princípio, um ausente presente, como um morto vivo. Quase tudo que se sabe do protagonista, ou do que ele se tornou, data do momento posterior aos 15 anos e do abandono da mãe e do pai. Uma rara exceção é a referência a Antônio, um amigo de infância morto afogado num rio da cidade. O episódio é quase pontual e o menino morto é só uma lembrança rápida do primeiro contato com a morte e de um tempo no qual sua espontaneidade de comunicação ainda não havia sido bloqueada. Antônio passou muito rápido pelo romance, teve vida curta nas duas realidades transitadas ou construídas por Desidério.
Santiago é o professor catedrático, orgulhoso de sua sabedoria livresca, que se coloca acima dos demais e que, sem saber, deixa para Desidério uma valiosa herança. Depois de um incêndio em seu apartamento, joga no lixo sua biblioteca atingida em parte pelas chamas. O personagem é cheio de técnicas de persuasão sobre alunos, público de suas palestras e, principalmente, alunas. Sua história de vida e de sucesso traz também uma crítica severa aos mecanismos de projeção dos “gênios” acadêmicos, estabelecendo uma relação intertextual com contos como A teoria do medalhão, de Machado de Assis, e O homem que sabia javanês, de Lima Barreto. “(…) aprendeu já cedo a confirmar a opinião consensual, a falar mal de intelectuais que se sentavam em suas escrivaninhas”.
Adele, professora também de italiano, apaixonada pela literatura, encontra na guarita do prédio onde mora outro leitor voraz e com ele tenta se comunicar. Ela tagarela sem parar e ele dá sinais de interlocução, longe de um diálogo. Ela fala enquanto ele emite monossílabos no plano da realidade concreta. Mas do ponto de vista da realidade inventada, ela se torna a musa inspiradora de mais um texto sem fim, dos tantos que o porteiro ousara ensaiar escrever, a segunda parte de um livro perdido a ser encontrado. Ele vive por ela uma paixão arrebatadora que o lança a um mundo novo de sensações e desejos há muito adormecidos.
Metaficção
Durante todo o romance o aspecto metaficcional é de grande relevância. A ficção se debruça sobre o processo de escrita e da criação artística do protagonista na busca de sentidos e de domínio técnico, sem esconder a precariedade dessa busca. Logo no primeiro capítulo a metáfora da aranha seca ilustra essa questão. “(…) talvez até inventasse um trecho do livro apenas para poder colocar a associação entre as aranhas secas e as palavras que não dizem mais nada.”
Até que ponto a biografia é dos desejos? É um questionamento que pode ser feito sobre a propriedade do título do romance. Desidério vem de desejo, é um ser desejante como as outras criaturas que com ele contracenam. Mas isso será suficiente para defini-lo? As histórias que aqui se narram falam de desejos, mas também de frustrações, de incomunicabilidade, da inércia frente aos obstáculos que a vida inexoravelmente impõe. Que papel teriam os desejos nesse conjunto paradoxal de sentidos, sentimentos, paralisações, ações e reações? Que expectativas do leitor são satisfeitas ou frustradas nesse processo? Cabe, estabelecer as diferenças entre surpresas produtivas e hermetismos impenetráveis. Neste sentido o narrador de Tridapalli esforça-se para garantir coerência em meio a tantos paradoxos.
A biografia fala de histórias de vidas que se cruzam no espaço urbano de uma cidade grande brasileira, Curitiba. Portanto, geograficamente localizada, dentro do contexto histórico dos últimos anos. Trata-se de uma biografia nada tradicional, não obedece a uma linearidade temporal, na qual nascimento, vida e morte se sucedam numa lógica formal. Muito menos parece pretender apenas traçar a trajetória previsível de um sujeito comum. As histórias de vida do protagonista e demais personagens se configuram como “pré textos” para outras discussões. Talvez a palavra pequena seja uma maneira de suavizar a pretensão maior de biografar desejos de muitos personagens simultaneamente. Mais do que a vida vivida, a vida sonhada, a vida desejada, a vida imaginada como provável, mesmo que impossível, estão em foco. A cada capítulo, novos personagens vão sendo apresentados. Transitam pelo tempo num vai e volta, sem ordem cronológica rígida, da mesma forma que caminham pela cidade. O estabelecimento de uma cartografia orientando os passos desses homens e mulheres não se dá enquadrando-os num espaço físico ou num tempo linear, apenas. Quando as ruas são nomeadas, o centro e os bairros são citados, parte-se da necessidade de contextualização e localização territorial. Estas, entretanto, são submetidas a um movimento oscilante e permanente, como o pêndulo de um antigo relógio que teimosamente não congela o instante nem o ponto fixo no mapa. “O Boqueirão do final dos anos 80 é isso, um bairro múltiplo em seu provincianismo (…) Um trajeto de ida e volta, toda a extensão da avenida (…) que o trazia para a periferia e o levava para o vórtice, movimento pendular entre o centro e a margem (…)”
O que importa é a cartografia de desejos que não se deixam mapear. Como analisa Suely Rilnik, no prefácio de Cartografias do desejo, dela e de Félix Guattari, “independentemente das datas, tais cartografias têm em comum a busca de saídas na constituição de outros territórios, para além dos territórios sem saídas, outros espaços de vida e de afeto. São, elas todas, obras dos tais inconscientes que, atrevidos, protestam.” É importante considerar que a criação artística, com toda a sua precariedade e a sua indefinição de sentidos, oferece a tais inconscientes atrevidos a possibilidade de protestarem com a reinvenção de outros espaços de vida e de afeto.
3 Perguntas – Cezar Tridapalli
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
A primeira — e vaga — memória é de minha irmã, três anos mais velha, com livros ricamente ilustrados. Eu tinha uns cinco anos. Mas, como não freqüentamos pré-escola e só aprendemos a ler bem com sete ou oito anos, o primeiro livro que eu li de fato foi na 2.ª série, o inesquecível Cachorrinho Samba na floresta (da grande trilogia Cachorrinho Samba, da Maria José Dupré!). Na 5.ª série, a obrigação de ler dois livros por mês foi algo bom para mim, que me fez ler obras importantes para a idade. No Ensino Médio eu gostei de estudar a Semana de Arte Moderna e seus autores, embora só lesse trechos de obras, em livros didáticos. Lembro também de ter ido a uma palestra com o Paulo Venturelli na Biblioteca Pública do Paraná. Aí, depois, já na faculdade de Letras, tive aula com ele, fui apresentado a Dostoiévski e toda essa turma. Estava dada a bússola. Tudo isso me transformou em um leitor, mas não no estereótipo do bom leitor. Perdi a bússola e vou abrindo picadas a esmo. Eu queria ser mais obsessivo e disciplinado; em vez disso, sou um leitor lento (embora veja aspectos positivos nisso) e sazonal. Às vezes passo semanas sem ler literatura e vou para outras leituras, sem nenhuma sistematização. Depois, há períodos em que leio bem e bastante — para o meu ritmo. Embora instável, já li o suficiente para saber que a literatura alarga modos de ver as coisas, nos deixa menos obtusos, nos coloca diante de conflitos que nos fazem sempre cotejar o fingimento da ficção com a vida. E isso nos torna menos fundamentalistas, o que não é pouco, uma vez que os grandes e pequenos fundamentalismos são o que de mais tosco a humanidade já produziu.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Se não sou um leitor compulsivo, ao menos sou um leitor ruminante, daqueles que o Machado de Assis dizia, em Esaú e Jacó, que têm quatro estômagos no cérebro e por lá faz passar e repassar o que lê. E as leituras que me tocam sempre fazem com que eu fique cheio de exclamações, interrogações e reticências dentro da cabeça, que forme algumas certezas provisórias e muitas dúvidas permanentes. É a essa coleção mal ajambrada de pensamentos que eu tento dar forma, é isso que eu tento recriar artisticamente e oferecer a quem estiver a fim de participar dessa conversa entre subjetividades. Embora o leitor leia solitariamente, ele está sempre fazendo uma leitura compartilhada com muitas vozes que se escondem e reaparecem renovadas na voz do narrador de um romance, por exemplo. Então… O que eu pretendo? Pretendo tecer enredos usando criativamente a linguagem e contando histórias que signifiquem algo para as pessoas. Ou: pretendo ser lido.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
É uma resposta puramente especulativa, não tenho nenhuma certeza dela: acho que o romance funciona melhor — para mim, é claro — na apreensão das complexidades do mundo. O romance te dá mais tempo e espaço para “enredar enredos”, e eu acho que não conseguiria fazer isso de modo tão denso e concentrado como fazem os contos e os poemas. Outra resposta possível e simples é que o romance tem sido o gênero literário que eu mais leio.